Mais
de sessenta anos passados das derivas parisienses realizadas por um pequeno
grupo de membros da Internacional Letrista, que resta desses locais e dessa
cidade?
A
Internacional Letrista, surgida em 1952, foi, nas palavras do seu principal
fundador, Guy Debord, «a organização da esquerda letrista» proveniente do
conflito com Isidore Isou [1], por quem, no
entanto, Debord se teria sentido encantado um ano antes. A Internacional
Letrista afirmava-se, a partir de então, como um «movimento novo que deveria
levar rapidamente a uma reunificação da criação cultural vanguardista e da
crítica revolucionária da sociedade» [2].
Evidenciava-se, assim, o espírito do grupo relativamente ao letrismo como uma
rejeição da visão da arte separada da vida e uma afirmação da vontade de
«superar a arte» realizando-a no quotidiano, nomeadamente através da prática da
dérive.
1. Isidore Isou, de nacionalidade romena, foi o fundador do
movimento artístico criado em Paris, em 1945, intitulado Letrismo. Segundo as
suas próprias palavras, este movimento destinava-se a criar um novo género de
poesia e de música não convencionais. Ver aqui.
2. Tradução da autora. Potlatch,
nº 3, 6 de Julho de 1954. In Potlatch 1954-1957, apresentação de Guy
Debord, Gallimard, 1996, p. 8.
Tendo
por base os trinta números de Potlatch
(1954-1957) [3], boletim do
grupo francês da Internacional Letrista [4], revisitaram-se
alguns dos locais eleitos em Paris como os mais recomendados para a prática da
deriva, observando-se as mutações urbanísticas e sociais ocorridas e de que
modo essas mudanças nos falam de um modelo hegemónico de cidade, que se impõe a
todos como reflexo de um sistema capitalista cujo desenvolvimento é a
desagregação. O que vemos em Paris repete-se por toda a parte como resultado de
um sistema que assenta numa infindável especulação imobiliária e na segregação
espacial e social, mas que, ao mesmo tempo, encena sobre estes mesmos processos
discursos sedutores. De facto, o modo de olhar para o que estava a acontecer na
cidade de Paris por parte dos membros da Internacional Letrista e, mais tarde,
pelos que integraram a Internacional Situacionista (1957-1972), sua
continuadora, revela-se-nos hoje de uma actualidade surpreendente.
3. O potlatch
(«presente»), palavra de origem chinook, língua do povo ameríndio cujas terras
ancestrais se situavam na nascente do rio Colúmbia, no Canadá, e hoje sedeado
no estado de Washington, generalizou-se entre outros povos autóctones da costa
noroeste do Pacífico, na América do Norte, com o significado de festa
cerimonial (festim, banquete) em que se procede a uma exaustiva distribuição de
prendas. O governo do Canadá chegou a ilegalizá-lo, entre 1884 e 1951, por
considerá-lo contrário aos «valores civilizados» da acumulação de bens, mas o potlatch nunca perdeu a sua vitalidade.
Como lembra Debord no seu prefácio à reedição de Potlatch na editora Gérard Lebovici (1985), o boletim era enviado
gratuitamente a quem desejasse recebê-lo e nunca foi vendido.
4. Em 2006 foi publicada pela Fenda Edições uma colectânea do Potlatch em português, no entanto a
autora não teve atempadamente conhecimento desta edição, sendo as traduções
contidas no presente texto da sua responsabilidade.
1. «Potlatch
tem o público mais inteligente do mundo?» [5]
Um
dos pormenores que por vezes escapam na análise da actividade das
Internacionais Letrista e Situacionista é que durante dois anos estes
movimentos coexistiram. Quando o último número de Potlatch foi editado (15 de Julho de 1959) a revista Internationale situationniste já existia
desde Junho do ano anterior. A ligação entre as duas publicações foi muito
forte, desde logo na partilha de temas e ideias, tendo sido frequente que os
autores colaborassem em ambos estes títulos. O boletim Potlatch, bem mais singelo, era dactilografado e copiografado em
simples folhas de papel de 21x31 cm, de início distribuídas todas as
terças-feiras e, depois, mensalmente. A Internationale
situationniste, com periodicidade geralmente anual, era claramente uma revista,
ostentando aliás, uma notória sofisticação visual, tendo ficado célebres as
suas capas de variados tons metalizados.
5. Título final do nº 8 de Potlatch, 10 de Agosto de 1954, op.
cit., p. 61
O
pequeno tamanho do boletim Potlatch (duas
páginas, em média), facilitava o seu envio para diferentes locais do mundo,
tendo sido identificadas algumas das pessoas que o recebiam (André Breton, Jean
Cocteau, René Magritte) [6]. Na abertura do
n.º 1, a redacção declara: «Potlatch
é a publicação mais comprometida do mundo: nós trabalhamos para o
estabelecimento consciente e colectivo de uma nova civilização.» [7] Precursor da chamada «edição selvagem», esteve, de
facto, na origem de temas a que depois os situacionistas deram continuidade nas
suas publicações. Da consulta dos trinta números editados ressalta a forma como
são frequentemente abordados assuntos relacionados com o urbanismo e a
arquitectura, expondo três conceitos fundamentais: a Psicogeografia, a Deriva e
o Urbanismo Unitário. [8] Desses números,
dezanove abordam directamente estes temas, sendo as ideias desenvolvidas por
diversos autores, em particular por Guy Debord, Michèle Bernstein, Asger Jorn e
Mohamed Dahou. Para apresentar as suas concepções o grupo recorreu não só aos
artigos que publicava no boletim, mas também a exposições, «instalações» e até
a filmes. Curiosamente, à medida que os anos passam e percorrendo os doze
números da revista Internationale
situationniste, que acabou por suceder ao Potlatch e cuja última edição é de Setembro de 1969 (apenas um ano depois
do mais importante acontecimento político reconhecido pelos seus membros, Maio
de 68), estes temas vão desaparecendo, dando lugar a um maior envolvimento
político e social do grupo, ou do que dele sobrou.
6. «Ligne de Communication: Potlatch,
Bulletin d’Information de l’Internationale Lettriste». In Guy Debord, Un Art de la
guerre, Paris, Gallimard, 2013, p. 71.
7. Potlatch, nº 1, 22
de Junho de 1954, ibidem, p. 11.
8. Estes conceitos foram definidos pela primeira vez, de forma
detalhada, no nº 1 da revista Internationale
situationniste, Junho de 1958, p. 13, quando o boletim Potlatch continuava ainda a ser publicado.
2. A deriva, uma «caligrafia pedestre» [9]
«A fórmula para o derrube do mundo não a fomos
procurar nos livros, demos com ela vagueando. Era uma deriva de longos longos
dias, em que nada se parecia com aquilo que a véspera mostrara; e que nunca
cessava».
Guy Debord [10]
A deriva,
uma das ocupações preferidas dos membros da Internacional Letrista, consistia,
segundo as suas próprias palavras, num modo de deslocação na cidade sem
objectivo, baseando-se apenas na influência do ambiente envolvente [11]. Reconheciam-se, assim, os efeitos de natureza psicogeográfica
dos ambientes urbanos, mas opondo-se esta prática aos conceitos de passeio ou
viagem [12]. Tratava-se,
efectivamente, de uma espécie de jogo, um jogo levado a cabo em meio urbano e
que poderia ser praticado tanto a pé, como de táxi. Esse modo muito particular
de contacto com a cidade tinha antecedentes, sobretudo nos surrealistas, mas
também, em parte, na flânerie de que
fala Walter Benjamin. Michael Löwy lembra-o com grande clareza: «A deriva,
inventada pelos surrealistas […] e sistematizada pelos situacionistas, é uma
maneira de percorrer as ruas de uma cidade sem qualquer objectivo particular.
De forma lúdica e irreverenciosa, rompe com os princípios mais sacrossantos da
modernidade capitalista, com as leis implacáveis do utilitarismo e com as
regras omnipresentes do que Max Weber chamava a Zweckrationalität, a racionalidade-com-vista-a-um-fim.»
Acrescentando Löwy: «Sem objectivo e sem razão, sem Zweck e sem rationalität,
é esta, em suma, a significação profunda da deriva, que tem o dom misterioso de
nos devolver, de repente, o sentido da liberdade. A experiência da liberdade no
decurso de uma deriva suscita uma espécie de ebriedade, uma exaltação, um
verdadeiro “estado de graça”. Revela uma face escondida da realidade – e da
nossa própria realidade. As ruas, os objectos, os transeuntes, subitamente sem
a tampa de chumbo do razoável, surgem
a outra luz, tornam-se estranhos, inquietantes – Unheimlich, diria Freud – e, às vezes, pândegos. Podem causar-nos
angústia, mas também jubilação.» [13]
9. Thierry Paquot, «Dérives nocturnes», in Les Situationnistes en Ville. Infolio, 2015, p. 101.
10. Guy Debord, Movemo-nos
na noite sem saída e somos devorados pelo fogo, Fenda, Lisboa, 1995, p. 49.
11. Potlatch, nº 14,
30 de Novembro de 1954, ibidem, p. 91.
12. Guy Debord, «Théorie de la derive», publicado pela
primeira vez na revista Les Lèvres nues,
nº 9, Antuérpia, Novembro de 1956. Esta revista trimestral, de um humor
terrífico (1954-1958, doze números), criada por Marcel Mariën, escritor e
artista surrealista, com Paul Nougé, Jane Graverol, Louis Scutenaire e outros
surrealistas belgas, foi uma das mais importantes publicações revolucionárias
do seu tempo e nela colaboraram alguns letristas.
13. Michael Löwy, «Éloge de la dérive», Médiapart, 16-11-2017.
Caminhar
sem destino (à deriva), deixando-se apenas guiar pelo desejo de descobrir os
recantos «surreais» da cidade de Paris, os bares, os cafés cheios de vida, os
habitantes mais pobres e rebeldes, num jogo inebriante com o tempo que passava
sem compromissos e em que a falta de dinheiro favorecia a aventura empurrando
os «jogadores» para zonas cada vez mais marginais. Segundo Michèle Bernstein, a
deriva de táxi permitia uma extrema liberdade na escolha de trajectos,
facilitando a modificação automática de cenários por não prender o viajante a
determinado percurso, pois o táxi poderia ser apanhado ao acaso e abandonado
num sítio qualquer, numa deslocação que se desejava sempre imprevista [14].
14. Potlatch, nº 9, 10
e 11, 17 a 31 de Agosto de 1954, ibidem, p. 65.
3. A
arquitectura deve ser emocionante
«L´obligation
de l´ordre. Le tracé régulateur est une assurance contre l’arbitraire. Il
procure la satisfaction de l´esprit.»
Le Corbusier, Vers une Architecture, 1923
«La poésie est dans la forme des villes.
Nos allons donc en construire de bouleversantes.
La beauté nouvelle sera DE SITUATION, c’est-à-dire
provisoire et vécue.»
Potlatch,
nº 5, 1954
Depois
dos planos de renovação da cidade de Paris ditados por Georges Haussmann na
segunda metade do século XIX, consubstanciando uma das mais eficazes formas de
controlo urbano, de higienização e expulsão das classes mais pobres do centro,
os anos 50 trouxeram novamente um desejo de modernização acompanhado pela necessidade
de alojar populações deslocalizadas do campo, uma arquitectura que se desejava
útil e funcional. Aos poucos foi-se assim criando uma obsessão pelo ordenamento
do território, imposição esta que se vem acentuando nos dias de hoje, não
deixando de conter, muito pelo contrário, um forte carácter ideológico, neste
caso até com laivos de ditadura, algo que os letristas e os situacionistas compreenderam
muito bem logo nos anos 50. Tratando-se de um grupo profundamente urbano,
centrado em Paris, fica claro que a mudança em questão teria de partir de uma
crítica total ao urbanismo emergente, à forma de viver a arquitectura e a
própria cidade. Importa destacar que a época das derivas parisienses dos letristas
é precisamente o momento em que se assiste, não só ao início da expulsão de
muitos habitantes do interior da cidade, mas também à demolição de áreas
antigas. Em apenas vinte anos, entre 1954 e 1974, 24 % da área construída de
Paris desapareceu, dando lugar a outro tipo de edifícios, ao mesmo tempo que 550.000
pessoas eram transferidas para as periferias [15].
15. David Pinder, «Old Paris is No More»: geographies of spectacle and
anti-spectacle, Antipode,
2000, p. 366.
É igualmente
nesta época que é construído o primeiro «péripherique» (1956), via circular
urbana que irá facilitar, não só essa transferência, mas também o
impulsionamento do novo bem de consumo que doravante passará a dominar as
cidades – o automóvel. Analisando os
textos de Potlatch podemos ter uma
ideia do que era uma cidade em mutação, a Paris que no rescaldo do pós-guerra se
queria moderna, rejeitando por isso as vielas, os bairros populares, os
mercados, enfim, tudo o que lembrasse a pobreza e a miséria de outros tempos.
Interrogamo-nos como seria estar contra esse desejo de «modernização» e quão
difícil seria não alinhar com políticas de higienização, ordenamento e
renovação dos espaços urbanos depois de tudo o que a Europa tinha passado. Se
hoje vemos que é difícil enfrentar esta tendência hegemónica de tudo ordenar
sem direito a contestação, como deveria ser estranha uma tal postura em meados
dos anos 50. Talvez esta seja uma das principais razões para a publicação do
presente artigo, mostrar que este sentimento de despertença terá tido a sua origem exactamente ali, quando, pela
primeira vez, um grupo de amigos encara frontalmente a sociedade do espectáculo em plena aplicação no tipo de urbanismo
que se ia instalando nas cidades. Este urbanismo crescia, e cresce, a par e
passo com as tropas bem alinhadas do capitalismo que desta forma vai
conquistando todo o território, usando para isso um arsenal que talvez até hoje
ninguém como Debord tenha identificado e desmascarado tão bem.
As construções
que se implantavam cada vez mais nos arredores de Paris, aqueles edifícios de
grandes dimensões tão elogiados pelos arquitectos e urbanistas de meados dos
anos 50, eram apelidados de «barracas» pelos letristas. Denunciam os letristas
que apesar de a utilização do cimento armado se prestar a formas flexíveis, as
habitações que surgiam eram desinteressantes, criticando assim frontalmente os
arquitectos: «[…] nas suas obras desenvolve-se um estilo que define os padrões
de pensamento e a civilização ocidental […]. É o estilo “caserna” e a casa de
1950 é uma “caixa”.» O fascínio do
discurso precursor contido nas páginas de Potlatch
é precisamente por ser um testemunho directo do que estava a acontecer nas
cidades, mas também por ser certamente a última vez que um movimento de
vanguarda artística acreditou que, para transformar o mundo, será não só
necessário revolucionar o nosso quotidiano, mas também o ambiente que nos
rodeia, reconhecendo o efeito que ele exerce no comportamento humano. A casa, para
os letristas, deveria ser emocionante [16], referindo-se dois
casos [17] com origens
completamente diferentes mas que, no entanto, partilhavam esse ideal de
«superação da arquitectura», uma liberdade total à escala do sonho e do homem.
16. Potlatch, nº 3, 6
de Julho de 1954, ibidem, pp. 25 e
26.
17. Idem, ibidem, pp.
32 e 33.
Um
destes casos é o «Palácio Ideal», um edifício erguido dia e noite por Ferdinand
Cheval, um simples carteiro de Hauterives, comuna francesa da região de
Auvergne, homem obstinado e apaixonado que conseguiu levar a cabo uma
fantástica construção, executada sem plano nem modelo, sendo apenas o resultado
da sua imaginação [18]. Um texto de Potlatch de Julho de 1954 aborda a obra
com eloquência: «Este Palácio barroco que desvia as formas de diversos
monumentos exóticos, e de uma vegetação de pedra, serve apenas para nos
perdermos. Em breve, a sua influência será imensa» [19]. Outros projectos elogiados pelos letristas no
mesmo texto são os «delirantes palácios factícios» de Luís II da Baviera,
enaltecendo-se, por exemplo, a integração na própria construção de um rio
subterrâneo, que era, ao mesmo tempo, um teatro, assim como a inclusão de
estátuas de gesso nos jardins.
18. Os surrealistas (designadamente André Breton, a partir de
1931), foram os primeiros a interessar-se e a defender a obra de Ferdinand
Cheval.
19. Potlatch, nº 4, 13
de Julho de 1954, ibidem, pp. 32 e 33.
Num
outro texto de 1955 [20] surgem vários
exemplos do que defendiam os letristas para a cidade de Paris, um conjunto de
propostas destinadas ao seu embelezamento, considerando que, entre outras
coisas, em vez de se pensar apenas nas questões construtivas, seria urgente
pensar nas clareiras urbanas. Lançam neste artigo algumas ideias concretas,
como, por exemplo, que se passeasse sobre os telhados de Paris, que os portões
das praças ajardinadas não fossem fechados à noite, que os candeeiros das ruas fossem
munidos de interruptores à disposição do público…
20. «Projet d’embellissements rationnels de la ville de Paris», Potlatch, nº 23, 1955, ibidem, p. 203.
Outras ideias igualmente subversoras são lançadas pelo
grupo, como quando Guy Debord propõe a demolição de todos os edifícios
religiosos, independentemente das suas confissões, permitindo assim que esses espaços
fossem depois utilizados de outro modo, ou quando Gil J Wolman defende que se conservem
as igrejas, mas tratando-as como edifícios comuns, esvaziando-as de todos os
conceitos religiosos e deixando as crianças brincar dentro delas. Michèle Bernstein,
com a sua habitual ironia, propõe que sejam destruídas apenas parcialmente de
modo que as ruínas não deixem adivinhar qual o seu uso inicial, concluindo, no
entanto, que o ideal seria mesmo demolir completamente as igrejas e, no seu
lugar, reconstruir ruínas.
Sobre
as estações de comboios, pelo contrário, todos concordavam que deveriam ser
conservadas tal como estavam, considerando que «[a] sua fealdade comovente faz
aumentar muito a atmosfera de passagem que constitui a delicada atracção destes
edifícios» [21]. Wolman, no
entanto, reclamava que deveriam ser suprimidas todas as indicações de chegadas
e partidas, para se fomentar a deriva nesses locais. Todos concordavam, sem
reservas, que era necessário acentuar o ambiente sonoro das estações de
comboios através da difusão de sons de outras gares e também de certos portos. Neste
mesmo texto foi igualmente proposta a supressão dos cemitérios, a destruição
total dos cadáveres e desse género de memórias, a abolição dos museus e a
distribuição de obras-primas da arte pelos bares. Defendia-se, ainda, o livre
acesso de toda a gente às prisões, abolindo o sistema carcerário, e a
destruição dos monumentos cuja feiura não permitia extrair deles nenhum
proveito, devendo, por isso, dar lugar a outras construções. O mesmo se propunha
para as estátuas que já não possuíssem qualquer significado.
21. Idem, ibidem, p.
205
Um
dos principais alvos da crítica dos membros da Internacional Letrista foi o
arquitecto, urbanista e artista Le Corbusier (1887-1965), depreciativamente apelidado
Corbusier Sing-Sing [22], um homem que desde essa altura tem sido sempre
idolatrado, mas que os letristas, completamente contra a corrente, consideravam
repugnante, destacando o carácter policial da sua acção e o facto de ele ser,
segundo sustentavam, o símbolo de uma sociedade que continuava a viver sob a
influência da repressão. Curiosamente, em 2015, por ocasião do cinquentenário
da morte de Le Corbusier e da retrospectiva que foi dedicada à sua obra em
França, vieram a público as especiais simpatias do famoso arquitecto pelo
regime fascista de Vichy [23], não sendo
possível dissociar a sua obra de uma certa visão totalitarista da sociedade. Os
projectos mais criticados pelos letristas foram as célebres Unidades de
Habitação, entre as quais a de Marselha que ficou conhecida com o nome
paradoxal de «Cidade Radiosa», um conjunto de imensos blocos de habitação em
altura, que os letristas comparavam a guetos, morgues ou prisões. Criticavam,
igualmente, a moral cristã que transparecia dessa nova arquitectura: «É preciso
ser muito tolo para ver nisto uma arquitectura moderna. Isto não passa de um
regresso em força do velho mundo cristão mal enterrado.» [24]
22. Sing-Sing é uma prisão de alta segurança, construída em 1826
no estado de Nova Iorque e ainda existente.
23. Ver artigo. Ver livros de François Chaslin, Un Corbusier (Seuil, 2015) e de Xavier de Jarcy, Le Corbusier, un fascisme français
(Albin Michel, 2015)..
24. Potlatch, nº 5,
Julho de 1954, ibidem, p. 39.
Outra
das críticas de Potlatch ao urbanismo
dos anos 50 centrava-se na forma como os projectos, ao imporem um ordenamento
das envolventes com o desenho de grandes espaços ajardinados e abertos, colocavam
em causa a rua, algo que, como veremos, é essencial à prática da deriva tão
amada pelos letristas. Como Debord dirá mais tarde, «[o] esforço de todos os
poderes estabelecidos, desde as experiências da Revolução Francesa, para
aumentar os meios de manter a ordem na rua, culmina finalmente na supressão da
rua» [25]
25. Guy Debord, A
Sociedade do Espectáculo, Antígona, Lisboa, 2012, p. 108.
Os
membros da Internacional Letrista foram ainda dos primeiros a ver (em tempo
real) como este novo urbanismo promovia uma vida enclausurada e resignada em
ilhas fechadas e vigiadas, o contrário daquilo que acreditavam ser o mais
importante: a capacidade de insurreição, o jogo e os encontros como forma de
contrariar a imposição da nova ordem urbana. Citando o livro do místico
contra-revolucionário oitocentista Pierre-Simon Ballanche, La Ville des Expiations, «cujas descrições prefiguram as “cidades
radiosas”», os letristas lembravam: «A Cidade das Expiações deve ser uma imagem
viva da lei monótona […] é preciso que nela tudo advirta que nada é estável e
que a vida do homem é uma viagem numa terra de exílio.» [26]
26. Potlatch, nº 5, 20
de Julho de 1954, ibidem, p. 39.
No nº
15 do Potlatch, de 22 de Dezembro de
1954, num curto, mas muito interessante texto intitulado «Uma arquitectura da
vida», Asger Jorn [27], artista
dinamarquês membro da I.L., afirma: «[…] Os funcionalistas ignoram a função
psicológica dos ambientes […]. Os racionalistas funcionalistas, devido às suas
ideias de estandardização, imaginaram que se poderia chegar às formas
definitivas, ideais, dos diversos objectos que interessam ao homem. A evolução dos
nossos dias mostra que esta concepção estática é errónea. Devemos alcançar uma
concepção dinâmica das formas, olhar de frente esta verdade: toda a forma
humana se encontra em estado de transformação contínua. Não devemos, como os
racionalistas, evitar essa transformação.» Concluindo: «A arquitectura é sempre
a derradeira realização de uma determinada evolução mental e artística; é a
materialização de um estádio económico. A arquitectura é a última parte da realização
de qualquer tentativa artística, porque criar uma arquitectura significa
construir um ambiente e fixar um modo de vida.» [28]
27. Asger Jorn, grande amigo pessoal de Debord, foi um dos mais
relevantes membros da Internacional Letrista e, depois, da I.S. Artista
dinamarquês de grande talento, Jorn partilhou as posições mais críticas
formuladas contra a sociedade de então, tendo sido um pioneiro na abordagem do
tema da psicogeografia e da recusa da arquitectura funcionalista. Curiosamente
Jorn trabalhou com Le Corbusier quando era muito novo, num projecto de
decoração, nutrindo para com ele sentimentos contraditórios de admiração e de rejeição,
quer pela sua postura ideológica quer pelos projectos que considerava desumanos
e mercantilistas. Cf. Jérôme
Duwa, Asger Jorn et Le Corbusier – L’art en architecture
28. Potlatch, nº 15,
22 de Dezembro de 1954, ibidem, p. 95
e 96.
A
ideia de que o urbanismo deveria proporcionar aventuras, um urbanismo concebido
como técnica de criação de ambientes propícios ao jogo livre e apaixonante dos
encontros inesperados, levou a que se equacionasse a questão de duas formas: o
urbanismo existente que deveria ser vivido (as unidades de ambiência
preferenciais existentes na cidade) e o que poderia um dia ser criado de novo –
o Urbanismo Unitário –, que, na definição da revista Internationale situationniste (nº 1, 1958, (contemporânea do Potlatch), era considerado como a «teoria
da utilização global de artes e técnicas que concorrem para a construção
integral dum meio ambiente em ligação dinâmica com experiências de
comportamento». [29]
29. Internacional Situacionista
– Antologia, ibidem, p. 27.
Por
sua vez, a psicogeografia proponha o estudo das leis exactas e dos efeitos
precisos do meio ambiente geográfico, conscientemente organizado ou não, que
age directamente sobre o comportamento afectivo dos indivíduos» [30]. Ou seja, considerava-se que as cidades continham
distintas «atmosferas psíquicas», áreas que seriam atraentes e outras que
causariam repulsa, sendo para tal necessário percorrer esses espaços avaliando
as razões de tais efeitos. A partir desta análise poderiam até produzir-se
mapas psicogeográficos dos locais frequentados, de modo a servir de guias a
futuras derivas.
30. Apesar de não se encontrar no Potlatch uma definição do termo psicogeografia, optou-se por
incluir aqui a explicação de Debord numa outra publicação da mesma época: «Introduction à une critique de la géographie urbaine», Les Lèvres nues, nº
6, Setembro de 1955.
No
âmbito do que os letristas (e depois os situacionistas) consideravam mais
interessante na região de Paris do ponto de vista psicogeográfico,
encontravam-se, entre outros locais, a cidade contígua (industrial e operária)
de Aubervilliers, localizada a norte da metrópole, e várias localizações mais
ou menos centrais de Paris: Bairro Chinês, Bairro Judeu, Les Halles (nome do principal
mercado abastecedor de Paris e respectivo bairro), Square des Missions
Étrangères, Rue Sauvage. Podemos desde logo observar que o ambiente urbano que liga
entre si estes espaços é o facto de serem áreas antigas e populares, fora dos
circuitos das elites de então, chegando os letristas a afirmar que certas zonas,
tais como os bairros 6º e 15º, os Champs-Elysées, L’Opéra ou Montmartre, entre
outras, deveriam ser evitadas. [31]
31. Potlatch, nº 24,
1955, ibidem, p. 208.
4. Vão destruir
a Rua Selvagem!
O
primeiro alerta de que estavam a acontecer alterações profundas na cidade surge
no Potlatch de Agosto de 1954, num
artigo que aborda a iminente destruição da Rua Selvagem, considerada um dos
mais belos locais «espontaneamente psicogeográfico» de Paris, aquele que
apresentava uma das melhores perspectivas nocturnas da capital, implantado
entre a via-férrea da Gare de Austerlitz e um bairro da margem do Sena onde havia
terrenos baldios. Nesse local iriam ser construídos edifícios «debilitantes como
os que são alinhados nos subúrbios para alojar pessoas tristes» [32], esclarecendo os autores que não eram adeptos das
ruínas – «Mas as casernas civis erguidas em seu lugar têm uma fealdade gratuita
que reclama a vontade de as dinamitar.»
[33] De
facto, se hoje visitarmos a zona em questão, podemos constatar, apesar de terem
passado mais de sessenta anos, continua a ser levado a cabo o mesmo processo já
então criticado pela Internacional Letrista, a implantação de um urbanismo agressivo
e hostil que tem vindo a transformar o território numa área descaracterizada,
de prédios gigantescos, vazia de pessoas durante o dia mas onde à noite abundam
festas a bordo de embarcações tradicionais de transporte (as péniches), transformadas em bares. Foi aqui
também, como não podia deixar de ser, que se ergueu um grande e moderno «equipamento
cultural», a Cité de la Mode et du Design, destinado a dourar e a disfarçar o
que é na verdade um processo de pura especulação imobiliária. Entretanto, a
lindíssima Gare de Austerlitz e as edificações anexas, depois de um abandono
prolongado, são agora sujeitas a uma dura operação cosmética destinada a
integrar os centenários edifícios nos actuais conceitos de «modernidade»,
vendendo a ideia que a área sairá valorizada por mais um megaprojecto
imobiliário de 20.000 m2, o projecto «Austerlitz Gare». Quanto aos sinais da mais
visível miséria ali existente, as centenas de tendas de refugiados que por ali
abundam, as autoridades tratarão rapidamente de os apagar, não vá essa visão
afectar os preços dos apartamentos de luxo destinados a outro tipo de
inquilinos. O que realmente fica na memória de quem por ali passa atento aos
sinais é a propaganda que por todo o lado apregoa as virtudes de
empreendimentos que dizem vir trazer vida a uma zona que, efectivamente, já há
muito morreu.
32. Potlatch, nº 7, 3
de Agosto de 1954, ibidem, p. 55.
33. Idem, ibidem.
5. Aubervilliers:
um vasto bairro popular
A já
referida Aubervilliers é outra zona exaltada pelos letristas pelo seu ambiente
popular, pela sua ligação ao rio (Canal Saint-Denis), pelos bares frequentados
por marginais e emigrantes, entre os quais a célebre Taverne des Révoltés, onde
se reuniam os anti-franquistas. Ainda hoje, o que é notório nesta cidade, onde
vivem muitos emigrantes, é o seu índice de pobreza, que continua a ser um dos
maiores da região. Não por acaso, foi precisamente nesta cidade, no dia 7 de
Dezembro de 1952, no âmbito de uma conferência [34] realizada por um grupo de companheiros das derivas, que nasceu
a Internacional Letrista. Hoje, a pobreza de Aubervilliers não será impedimento
para a integração desta zona num dos mais cobiçados negócios imobiliários que
Paris jamais conheceu, o megalómano projecto intitulado «Le Grand Paris». Trata-se
de um plano, nas palavras da empresa que o gere, destinado a «pensar a cidade
do amanhã, sustentável, inventiva e solidária», fazendo da Ilha de França uma
metrópole atractiva para o século XXI… Os números são de facto impressionantes:
nos territórios abrangidos pelas novas linhas de metro está prevista a
construção de 70.000 fogos por ano até 2030…Com tais planos
no horizonte, podemos ter a certeza de que o fim de Aubervilliers como cidade
popular, pobre, mas viva, está a aproximar-se. Curiosamente foi dado há pouco
tempo o nome de Guy Debord a uma pequena alameda situada nesta zona à beira-rio,
concluindo-se, uma vez mais, que o grande sistema autofágico tudo integra.
6. Square des Missions Étrangères: uma
praça parisiense
Outro
dos locais exaltados pelo seu ambiente urbano foi o Square des Missions Étrangères,
a praça que Michèle Bernstein, em 1955, viu como «um bom local para receber
amigos que viessem de longe, para ser tomada de assalto à noite e para diversos
outros fins psicogegráficos» [35]. Trata-se de um
espaço onde o tipo de vegetação e os muros altos que o rodeiam, que mais não
são que as traseiras cegas dos edifícios de habitação, lhe conferem, ainda hoje,
um ambiente estranho, recatado e agradável. Será porventura este um dos poucos
locais referidos no Potlatch que
ainda conserva qualquer coisa da atmosfera urbana elogiada pelo grupo da deriva
letrista.
35. Potlacht, nº 16,
26 de Janeiro de 1955, ibidem, p.
110.
7. Les Halles, Bolhão e Mercado da
Ribeira: à conquista de espaço para «consumidores exigentes»
Segundo
os letristas, o mercado de Les Halles era também um lugar a frequentar. Este
enorme espaço, que, na altura, ainda se mantinha activo como principal mercado
abastecedor de Paris (foi definitivamente demolido em 1973), situava-se no
bairro a que deu o nome, em pleno centro de Paris, e era um dos locais mais
simbólicos da cidade. Desde a sua longínqua origem medieval, este mercado foi
sempre uma zona muito concorrida e popular, o coração da cidade, ou o seu
ventre, como lhe chamou Émile Zola num dos seus mais célebres romances, local
que o próprio Napoleão I desejou transformar no «Louvre do Povo» [36]. No mercado de Les Halles aglomeravam-se vendedores
e compradores oriundos de todas as partes, tendo esta comunidade conseguido
resistir até aos planos de Haussman, que se viu obrigado a mantê-lo em
actividade, não deixando, no entanto, de o transformar, através de um novo
projecto em vidro e ferro inaugurado em 1854. Com o passar do tempo e a
afirmação da economia capitalista do pós-guerra, este mercado começou aos
poucos a ser considerado «um problema para a cidade», tanto pelos incómodos
causados pelo excesso de tráfego, como, certamente, pelo tipo de população que
o frequentava, acabando mesmo por fechar em 1969, na sequência de uma decisão
datada de 6 de Janeiro de 1959, sendo a sua importante actividade transferida
para outra localização em Paris (Parque de La Villette) e para a cidade limítrofe
de Chevilly-Larue (Parque de Rungis), onde entretanto já teria de rivalizar com
as primeiras grandes superfícies comerciais. Entre 1975 e 1989, apesar de
vários protestos da população, Les Halles e o seu bairro foram objecto de
enormes transformações. Não tardou que ali surgissem dois novos e enormes
edifícios, o Forum des Halles, um grande centro comercial inaugurado em 1979,
e, como não podia deixar de ser, um pós-moderno centro de arte, o Centre
Pompidou, inaugurado em 1977, associando-se, uma vez mais, a arte e a cultura
aos projectos imobiliários como a melhor fórmula de «calar protestos». O Forum
des Halles foi recentemente alvo de um renovado projecto de arquitectura e
urbanismo, destinado a «adaptá-lo aos novos tempos e aos novos negócios». De
notar que estes novos equipamentos surgem também recheados de boas intenções
culturais, como a inclusão de uma Mediateca, uma Casa de Práticas Artísticas
Amadoras, etc., embrulhando assim em elevados desígnios a sua verdadeira estratégia:
ser a mais moderna e gigantesca catedral de consumo desta metrópole. Os argumentos utilizados pelo poder para justificar
a substituição de qualquer mercado ou zona antiga numa cidade são sempre os
mesmos.
Em Portugal, nos últimos anos, também temos vindo a assistir ao saque dos mercados tradicionais e à sua privatização, descaracterização e transformação em «espaços comerciais gourmets» como é o caso do Mercado da Ribeira em Lisboa, baseando-se quase sempre os promotores na necessidade de renovação por questões higiénicas; o papão da ASAE serve bem estes propósitos. As áreas são sempre consideradas degradadas e desactualizadas perante as «novas necessidades de uma população exigente». Este processo transporta consigo quase sempre a exclusão de actividades e grupos sociais que aí se mantinham há muitos anos, remetendo-os para longe do olhar dos novos inquilinos – os muito prestáveis e jovens empreendedores e seus clientes. Foi assim no mercado de Les Halles e será assim no Bolhão, como já antes foi em tantos mercados por esse país fora, surgindo deste modo uma nova realidade cenográfica, «a geografia do espectáculo». É bom aqui lembrar as palavras de Debord: «Urbanismo é esta tomada de posse do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo, que, ao desenvolver-se logicamente como dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário.» [37]
Em Portugal, nos últimos anos, também temos vindo a assistir ao saque dos mercados tradicionais e à sua privatização, descaracterização e transformação em «espaços comerciais gourmets» como é o caso do Mercado da Ribeira em Lisboa, baseando-se quase sempre os promotores na necessidade de renovação por questões higiénicas; o papão da ASAE serve bem estes propósitos. As áreas são sempre consideradas degradadas e desactualizadas perante as «novas necessidades de uma população exigente». Este processo transporta consigo quase sempre a exclusão de actividades e grupos sociais que aí se mantinham há muitos anos, remetendo-os para longe do olhar dos novos inquilinos – os muito prestáveis e jovens empreendedores e seus clientes. Foi assim no mercado de Les Halles e será assim no Bolhão, como já antes foi em tantos mercados por esse país fora, surgindo deste modo uma nova realidade cenográfica, «a geografia do espectáculo». É bom aqui lembrar as palavras de Debord: «Urbanismo é esta tomada de posse do meio ambiente natural e humano pelo capitalismo, que, ao desenvolver-se logicamente como dominação absoluta, pode e deve agora refazer a totalidade do espaço como seu próprio cenário.» [37]
37. A Sociedade do
Espectáculo, op. cit., p. 108.
A
intervenção da Internacional Letrista sobre a destruição das zonas mais antigas
das cidades não se limitou à França. Em 1955, três dos seus membros mais
envolvidos na crítica do novo urbanismo enviaram o seguinte protesto à redacção
do Times contra a demolição do Bairro Chinês de Londres:
«Senhor, o “Times” acabou de anunciar o
projecto de demolição do Bairro Chinês de Londres./Nós protestamos contra tais
ideias moralistas no planeamento da cidade, ideias que, obviamente, vão tornar
Inglaterra ainda mais aborrecida do que tem sido nos últimos anos [...].
Consideramos que o chamado planeamento moderno da cidade recomendado por si é tolo,
idealista e reaccionário. O único fim da arquitectura é servir as paixões do
homem […]. Finalmente, se a modernização lhe parece ser, tal como a nós,
historicamente necessária, aconselhamo-lo a dirigir o seu entusiasmo para áreas
mais necessitadas dele, isto é, para as suas instituições políticas e morais.
Atenciosamente Michèle Bernestein, G.-E
Debord, Gil J Wolman». [38]
38. Potlatch, nº 23,
13 Outubro de 1955, ibidem, pp. 196 e
197.
O Urbanismo Unitário não é uma doutrina
do urbanismo, é uma crítica do urbanismo [39]
«É inútil (…) procurar nas nossas teorias sobre a
arquitectura ou a deriva outros motivos que não sejam a paixão do jogo.»
Debord, Potlatch, nº 20, 1955
A
cidade antiga representa uma possibilidade de fuga ao presente totalitário a
melhor forma de nos perdermos num imenso labirinto exaltado pelos letristas e situacionistas
como a forma ideal de um urbanismo oposto a todas as formas de controlo, uma
cidade favorável ao jogo e ao acaso. Esta sim era a tão desejada cidade
revolucionária e libertária, um território cujo carácter ficava exposto sem
subterfúgios em cada uma das suas vielas sujas, em cada parede arruinada, em
cada café exaltante de gente à margem e onde tudo podia acontecer. A
irresistível atracção pela aventura e pelo risco, associados a um enorme desejo
de liberdade, afastava-se por inteiro dos objectivos utilitaristas dos
políticos, urbanistas e arquitectos de então (e de agora), sempre desejosos de
criar espaços onde as marcas da história social não se façam notar: «Neste
exacto lugar nunca acontecerá nada e nunca nada aqui aconteceu. É evidentemente
porque a história que é preciso libertar nas cidades ainda ali não foi
libertada que as forças da ausência histórica começam a compor a sua própria
paisagem exclusiva.» [40]
39. Internacional
Situacionista – Antologia, op. cit.,
p. 52.
40. A Sociedade do
Espectáculo, op. cit., p. 111.
No
entanto, apesar da admiração pela cidade histórica manifestada pelos letristas,
a edição do boletim termina, paradoxalmente, com a apresentação de dois
importantes textos onde é exposta a necessidade de se criar um urbanismo
totalmente novo. O primeiro artigo, não assinado, intitula-se «Primeiras
maquetas para um novo urbanismo», fazendo referência a uma exposição das obras
de Constant Nieuwenhuys [41] no Museu
Stedelijk de Amesterdão e às suas trinta «construções espaciais» destinadas a explicar
o que se entendia por Urbanismo Unitário. Constant foi, de facto, o único
situacionista que ousou desenvolver uma ideia de cidade completamente
revolucionária – a Nova Babilónia [42] – utilizando maquetas
e desenhos exemplificativos. Essas maquetas representavam, segundo o autor do
texto em questão, «objectos-projectos», uma valorização que se queria mais
complexa do que simples «objectos-mercadorias auto-suficientes e feitos
unicamente para contemplar». Esses «objectos-projectos» deveriam apelar a uma
acção a levar a cabo, uma acção de qualidade superior por dizer respeito à
totalidade da vida. [43]
41. Constant, pintor holandês, ficou
célebre pela abordagem que fez às questões do urbanismo e da arquitectura na
última fase da I.L. Posteriormente fez parte da secção holandesa da I.S.A
Sociedade do Espectáculo, op. cit., p. 111.
42. Cf. Maria Ramalho, «Uma outra cidade para uma outra vida – Constant», revista electrónica Punkto,
43. Potlatch, nº 30,
p. 287, ibidem.
O
segundo artigo do derradeiro número de Potlatch,
da autoria do próprio Constant, intitula-se «O grande jogo que está para vir».
Constant refere que o problema do urbanismo nessa época era que os urbanistas
profissionais se preocupavam apenas com o estudo das questões do alojamento e
da circulação como problemas isolados. A seu ver, a falta de soluções lúdicas
na organização da vida social impedia o urbanismo de se elevar ao nível da
criação, sendo disso testemunho o aspecto morno e estéril da maior parte dos
bairros novos. Pelo contrário, segundo a noção de urbanismo dos situacionistas
(a nova designação do grupo), identificados como agentes exploratórios e «especialistas»
do jogo e do lazer, o aspecto visual das cidades não conta se não estiver em
relação directa com os efeitos psicológicos que esta pode produzir. Por outro
lado, defende ainda Constant, o urbanismo deveria ser encarado como uma
concepção dinâmica e experimental, dando o exemplo da possibilidade de animar
uma rua com construções efémeras que transformassem rapidamente o ambiente dos
locais e dos bairros. Para tal era necessário criar «planos e maquetas de tipo
imaginista», o que, segundo Constant, se poderia apelidar de «ficção-científica
da arquitectura». Associada a esta noção, Constant anunciava, neste último
número do boletim, a importância das inovações técnicas na criação de
atmosferas nas cidades do futuro, dando o exemplo da televisão, do cinema, da
rádio, bem como das deslocações e comunicações rápidas. Essas inovações
poderiam vir a ter um importante papel cultural e lúdico, sendo, por isso,
consideradas como tarefas mais urgentes no sentido da criação de um Urbanismo
Unitário à escala do que a sociedade do futuro exigiria.
No
entanto, pouco tempo depois da realização dessa exposição em Amesterdão e da
defesa de tais ideias, Constant foi expulso da Internacional Situacionista e
viu-se alvo de duras críticas (como era habitual neste grupo), nomeadamente
pela sua exagerada crença no desenvolvimento técnico e no híper-modernismo, a
que não será alheio, uma vez mais, o gosto especial que tiveram os letristas e
depois os situacionistas pela cidade antiga, pela presença viva da história
social nela acumulada. Mas a contradição entre esse gosto «romântico» e
«nostálgico» por tudo o que proporciona a cidade histórica e a necessidade de
uma proposta radicalmente nova não deixará de estar presente no espírito dos situacionistas,
pelo menos até à primeira metade dos anos 60.
O
significado da cisão com Constant é exposto por Asger Jorn num texto de 1960 (não
publicado na altura): […] Contant, que nunca compreendeu a ambivalência de cada
revolução, que é, ao mesmo tempo, o salto para um estádio superior e uma queda
para um estádio anterior; este último aspecto da revolução leva o verdadeiro
revolucionário a nunca inscrever a revolução na óptica evolucionista e
unilateral». [44]
44. «Sur l’antisituation d’Amsterdam», manuscrito de Asger Jorn, 1960. Arquivos do Museu
Jorn-Silkeborg.
≡
Notas da
autora
A autora agradece o trabalho cuidadoso e
amigo de Júlio Henriques na revisão deste texto. O mesmo texto será brevemente
editado na Revista «Flauta de Luz», coordenação de Júlio Henriques,
distribuição da Editora Antígona.
Imagens
1. Folheto da Internacional Letrista. Fundo
da Biblioteca Nacional de França.
2 a. Número 1 de Potlatch.
2 b. Uma das capas da revista Internationale situationniste.
3 a. Café Moineau em Paris. Michèle Bernstein
ao centro com camisa branca. Foto de Ed van der Elsken, 1956, Nederlands
Fotomuseum Rotterdam.
3 b. Fotomontagem de Anne Lefebvre (cortesia
da autora).
4 a. Ilustração inserida no nº 9 da revista Internationale situationniste (1964).
4 b. Palácio Ideal de Ferdinand Cheval.
5 a. Antigos edifícios da Gare de Austerlitz
em processo de transformação e acampamento de refugiado. Maria Ramalho 2017.
5 b. Placa de propaganda ao projecto
urbanístico - interpretação da historia
local. Maria Ramalho 2017
6 a.
Guy Debord com a antiga moagem de Pantin- Aubervilliers em segundo plano. Esta
fábrica foi construída no século XIX e garantiu a distribuição de farinha à
cidade de Paris até ao seu encerramento em 2001.
6 b. A mesma fábrica convertida em
apartamentos e escritórios.
7 a. Square des Missions Étrangères. Maria
Ramalho 2017.
7 b. Square des Missions Étrangères. Maria Ramalho
2017.
8 a. Forum des Halles. Maria Ramalho 2017.
8 b. Número da revista «Charlie Hebdo» de
1971.
9. Poster de uma exposição de Constant em
Estocolmo sobre o projecto «Nova Babilónia».
Maria
Ramalho
Formada em História pela FCSH da Universidade
Nova de Lisboa, Mestre em Arqueologia Medieval pela Faculdade de Letras da
Universidade do Porto. Como investigadora dedica-se sobretudo à Arqueologia da
Arquitectura praticando, no entanto, uma deriva pessoal e apaixonada pelos
legados do movimento Letrista e Situacionista, particularmente este último com
interessantes ligações a Portugal. É autora do artigo «Realizar a Poesia: Guy Debord e a Revolução de Abril», publicado no Jornal Punkto (edição online).
Ficha
Técnica
Data de publicação: 06.04.2018