A última década provou que o co-housing (co-habitação) deixou de ser
algo só para hippies escandinavos dos
anos setenta! Em vários países da Europa, assiste-se ao ressurgimento da
chamada habitação colaborativa (iniciativas
de co-housing, cooperativas de
habitação, habitação participativa, entre outras), como resposta à falta de
‘habitação acessível’ (uma questão inicialmente destinada aos mais carenciados,
mas que passou a incluir a classe média), à progressiva redução do apoio
financeiro público para a produção de habitação, e às recentes transformações
económicas e sociodemográficas.
Veja-se a experiência
participativa e o sistema de co-propriedade dos Baugruppen na Alemanha e na Áustria; as recentes cooperativas de
habitação em Espanha baseadas no modelo nórdico Andel (no qual o residente, não sendo inquilino nem proprietário,
tem o direito ao uso da habitação por tempo indeterminado); ou o actual movimento
Habitat Participatif em França. Estes
são exemplos de iniciativas inovadoras levadas a cabo por grupos de cidadãos (e
muitas vezes pelos próprios arquitectos) que resolveram mostrar o dedo do meio
ao mercado imobiliário tradicional e à sociedade cada vez mais individualista. Deste
modo, e através de sistemas de financiamento alternativos (bancos cooperativos,
campanhas especiais de empréstimo ou plataformas de crowdfunding), estas “comunidades intencionais”, [1] organizadas
em cooperativas, associações ou até mesmo em empresas, projectam, constroem (ou
reabilitam) e gerem o seu complexo habitacional colectivamente e sem
intermediários, de um modo mais económico, ambientalmente mais responsável, e mais
adequado às necessidades de cada um. Resumidamente, estamos a falar de co-projecto e co-gestão de edifícios de co-housing.
1. Jarvis, H. (2011). Saving
space, sharing time: integrated infrastructures of daily life in cohousing. Environment and Planning A 2011 (43), pp. 560-577.
Estas tendências podem também ser
fruto da crescente expansão da chamada ‘economia colaborativa’ que tem vindo gradualmente
a alterar as noções de ‘propriedade’ e a substituí-las pela ideia de ‘acesso’ e
de ‘partilha’; e reflexo do desejo de muitas pessoas de recuperar uma certa
ideia de simplicidade, possível consequência dos excessos do período pré-crise,
através de uma postura mais "ascética" e sustentável em relação à
vida e ao consumo, na qual “menos é suficiente”. [2]
2. Aureli, P. V. (2016). Menos es suficiente.
Barcelona: Editorial GG.
Em termos arquitectónicos, este
modelo obriga ao repensar do layout
doméstico tradicional e à consequente formulação de novas tipologias
habitacionais. A minimização do espaço individual para maximizar os espaços colectivos
promovendo a interacção entre residentes; a introdução de instalações comuns
(lavandarias, oficinas, cozinhas comunitárias) reduzindo não só as áreas mas,
também, o consumo energético; a construção faseada (abordagem relacionada com a
chamada "habitação evolutiva", largamente explorada nos anos setenta
em países da América Latina, correspondendo a uma habitação mínima flexível,
onde uma área potencial é deixada para expansão futura, dependendo das necessidades
e possibilidades económicas do agregado familiar) e a decisão colectiva de
deixar algumas superfícies ‘inacabadas’ para posterior acabamento são algumas
das características comuns deste novo tipo de habitação colaborativa a custos
controlados. Tudo isto exige uma compreensão da arquitectura, não como um
"produto acabado", mas sim como um processo dinâmico. Em termos
sociais, este conceito procura estimular o sentimento de ‘comunidade’,
‘vizinhança’ e ajuda mútua. Ao mesmo tempo, este modelo valoriza a participação
dos futuros residentes no desenho arquitectónico do projecto e às vezes na
própria construção, através de estratégias ‘DIY’ (Do-it-yourself) e ‘DIT’ (Do-it-together),
e na gestão e manutenção do complexo habitacional.
Bem sabemos que nada disto é
novo. Já todos ouvimos falar de “habitação mínima”, “processos de
participação”, “espaços comunitários”, “habitação evolutiva”, mas é na
combinação destas abordagens com o reconhecimento da necessidade de adaptação
às novas tendências e exigências da sociedade urbana atual que reside a
inovação deste modelo habitacional alternativo. Este permite a personalização
do espaço doméstico, promovendo não só um "sentido de pertença" mais
forte, mas também uma forma de ter acesso a uma habitação de qualidade a um
custo reduzido, uma vez que as decisões colectivas sobre o projecto
arquitectónico, sobre os métodos e as fases de construção (ou reconstrução) e a
posterior autogestão podem ter um grande impacto na redução dos custos da habitação
(e no próprio custo de vida). Podemos concluir que a habitação colaborativa é uma
solução bastante plausível para o cidadão urbano contemporâneo.
Debrucemo-nos agora no território
nacional. A provisão de ‘habitação acessível’ é finalmente aclamada como prioridade
do Governo e vários programas de habitação e de reabilitação urbana têm surgido
nos últimos tempos. Dito isto, onde podemos então encontrar iniciativas urbanas
de ‘habitação colaborativa’ em Portugal, que tão bem se encaixam no actual
contexto que vivemos, ainda no rescaldo da crise? Pois bem, não os há. No
máximo, encontramos os restos (alguns mortais) das experiências pós-revolução do SAAL. Se se trata de um modelo com todo o potencial para
ser explorado, porque razão não se fala dele em Portugal? É falta de
conhecimento por parte dos cidadãos? É falta de iniciativa por parte dos
arquitectos, esses poetas do espaço, que
já há muito abandonaram a sua consciência social? É falta de incentivo e acção
por parte do governo e dos municípios, que com tanto património devoluto à sua
mercê, não são capazes de promover sistemas alternativos de ocupação?
Se o co-working já “pegou” em Portugal, já é altura de fazer algo para que
o co-housing venha para ficar. Ou
vamos ter que esperar que venha um grupo de hipsters
berlinenses iniciar um co-housing na
Rua das Flores, para que se torne moda e seja giro viver em comunidade? Não,
tem que surgir de uma necessidade natural. E essa necessidade já existe.
Económica e social. Há falta de habitação a custos acessíveis. Para juntar à
festa, o aumento descontrolado do turismo nas grandes cidades faz com que
muitos portugueses sejam expulsos das suas casas no centro, para se poder ter
mais um Airbnbzito castiço (e caro)
em pleno bairro da Mouraria. [3] Temos, por
um lado, uma população cada vez mais idosa e isolada e, por outro, uma população jovem cada vez mais ausente, por se ver obrigada a emigrar. Tudo isto
destabiliza a dinâmica convencional dos centros urbanos e transforma a estrutura
“tradicional” da família: o que por sua vez deverá traduzir-se em novos modos
de habitar. Lanço aqui o apelo:
3. Ver artigo.
1. Aos arquitectos, que devem tornar-se
mais dinâmicos e renovar o compromisso social da sua profissão, sem se sentirem
travados pela inércia burocrática das próprias instituições que os deviam
incentivar. [4] Este tipo de processo é muitas vezes
iniciado por arquitectos juntamente com a comunidade interessada, sem a
necessidade de intervenientes e através de planos de financiamento
alternativos.
4. Veja-se o exemplo da criação da Bolsa AVAE (promovida pela Ordem dos
Arquitetos) que, logo após o incêndio de Pedrogão em Julho de 2017 previu a
criação de grupos de arquitectos voluntários para a reconstrução habitacional e
urbana das zonas afectadas pelo incêndio. Esta iniciativa, aparentemente tão
dinâmica e “de emergência”, após dois meses da sua criação, ainda não entrou em
acção. Nem os grupos de trabalho foram formados.
2. Aos cidadãos, que devem organizar-se
em associações ou cooperativas para deste modo discutirem em conjunto possíveis
alternativas ao stock de habitação
existente, mais económicas, livres das oscilações do mercado, mais
personalizadas e que promovam uma maior interacção social. Além disso, o
envolvimento dos residentes em processos de projecto é crucial para assegurar
uma construção mais consciente e económica, adequada às suas necessidades e de
acordo com as prioridades definidas.
3. Aos municípios, que devem
criar as condições para facilitar e agilizar estes processos de projecto e
construção de habitação colaborativa. Aproveitar a lufada de ar fresco da recém
(re)criada Secretaria de Estado da Habitação e da “nova geração de políticas de
habitação” para realmente renovar e inovar em termos de legislação associada à
habitação colectiva. Promover um conjunto de incentivos fiscais e facilitar o
acesso aos terrenos e aos imóveis obsoletos. E organizar workshops e sessões informativas sobre o potencial deste modelo de
habitação.
Chegou a altura de voltar a
considerar as ideias cooperativistas da experiência SAAL como ponto de
referência para novas soluções e não como peça estática de museu. E, do mesmo
modo que exemplos de Berlim, Barcelona ou Paris nos podem servir de inspiração
neste momento, que num futuro próximo sejamos nós a influenciar outras
comunidades. Temos os ingredientes todos, a receita, os instrumentos básicos, já
só falta mesmo juntar tudo e “meter as mãos na massa”!
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Imagens
1. Coop Housing Spreefeld, Berlin (fonte: archdaily).
2. Cooperativa La Borda, Barcelona.
3. Cooperativa Sostre Civic, Barcelona.
3. Jardin Divers, Montreil.
4. Le Grand Portail, Nanterre.
5. R50 Baugruppe, Berlin (fonte: archdaily).
Sara Brysch
Após terminar o Mestrado Integrado na
FAUP, trabalhou como arquitecta no Porto, em Berlim e na Cidade do México,
especializando-se em projectos de habitação colectiva. Iniciou recentemente o
Doutoramento em Housing Management na
Faculdade de Arquitectura da TU Delft, Holanda. A investigação intitula-se “Towards a new Existenzminimum: seeking
affordable solutions in current Collaborative Housing in Europe”.
Ficha Técnica
Data de publicação:
15/03/2018