Numa galeria independente – um lugar com uma história de
perseverança e determinação que remonta há vinte e cinco anos – é-nos
apresentado um retrato acutilante da obra e pensamento de um arquitecto que
passou incógnito aos radares da arquitectura portuguesa. Rui Goes Ferreira (1926-1978),
madeirense, formou-se no Porto com a geração de Álvaro Siza e Alcino Soutinho,
e regressou à sua ilha onde construiu várias obras de referência ao longo dos
anos 60 e 70, colaborando com arquitectos do continente como Bartolomeu Costa
Cabral e Manuel Vicente. A sua morte prematura interrompeu uma obra promissora
e a exposição mostra-nos o que não conhecíamos (a obra), a sua pertinência e
sentido à época em que foi projectada e construída (o pensamento) e a sua
relevância nos dias que correm (a crítica), num contexto em que a paisagem e a
cultura arquitectónica portuguesa estão a saque.
A mostra está estruturada a partir das fotografias de
Duarte Belo, um fotógrafo que nos habituou a observar a paisagem com um olhar generoso
e interrogativo. Duarte Belo usa a fotografia como forma de descoberta,
selecciona e enquadra o que nos rodeia e transporta as coisas que estão à nossa
frente para imagens que as tornam mais claras, objectivas e, como consequência,
mais intensas. É essa intensidade que revela, mostrando um conjunto de obras
que vão desde habitação social a instalações industriais, passando por equipamentos
colectivos e moradias familiares. As fotografias foram ampliadas em vários
formatos, destacando umas em relação a outras. Ao contrário da fotografia de
arquitectura que nos tem assoberbado o olhar nos últimos anos, quem visita a
exposição não tem uma visão evidente dos objectos arquitectónicos. Há imagens
que apenas captam o ambiente quente que uma cortina vermelha produz ao filtrar
a luz, outras que exacerbam a extraordinária textura do betão na forma helicoidal
de uma escada em caracol, outras que nos confrontam com a geologia
extraordinária da ilha. São imagens que nos dão a entender as formas e os usos
dos espaços construídos por Rui Goes Ferreira.
Em paralelo ao universo criado pelas imagens, escondidas
atrás de pequenas folhas de papel vegetal, há um conjunto de fotografias em
pequeno formato feitas pelo próprio Rui Goes Ferreira. São imagens que, quando
desveladas, nos transportam no tempo e nos oferecem uma visão de conjunto (mais
arquitectónica) mais ampla e contextual do que as imagens que dominam a
exposição. Ao invés de escancarar o óbvio, a montagem dos conteúdos procura uma
relação de intimidade com o visitante, acompanhando assim alguns dos
ensinamentos do arquitecto. Nas mesas, há desenhos técnicos que nos fazem
lembrar (ou descobrir) uma cultura construtiva muito própria. Apresentados em
estiradores forrados a papel costaneira, os desenhos estão sobrepostos e
permitem ler algumas plantas (com composições espaciais de grande
inteligência), cortes, detalhes construtivos, fotografias, notas de clientes,
correspondência, enfim, permitem-nos viajar no tempo como se nos sentássemos à
mesa de trabalho com Rui Goes Ferreira. Apenas falta o cinzeiro e o cheiro
característico do tabaco, que apenas se imagina.
Progressivamente, o visitante entra no universo formal e
construtivo de Goes Ferreira, acompanhado sempre pela paisagem exuberante da
Madeira. Uma vez imerso nesse mundo, é possível compreender que as salas estão
organizadas por temas apenas insinuados: a escala e articulação urbana e
paisagística das formas construídas; as texturas, cores e qualidades materiais
dos espaços; a qualidade do uso e o sentido de apropriação individual do espaço
de habitar; e finalmente a sua relação territorial e a ambição cultural do
facto arquitectónico. Por economia, a exposição não procura o inventário nem a
descrição integral de cada obra, nem se dedica a exercícios de filiação
intelectual de referências, inscrição na história ou decifração hermética. A
comissária da exposição, também ela arquitecta, não esconde a relação afectiva
com a obra do seu avô, mas também não são esses afectos (hoje tão em moda) que
conduzem a exposição ou se apresentam ao visitante. O exercício de economia e a
experiência acumulada de um espaço habituado a exposições de arte, permitiu
concentrar o olhar nas qualidades de um modo de fazer e de pensar a
arquitectura. A economia despojou a exposição de aparatos que, tantas vezes,
ocultam mais do que mostram, e o visitante tem a liberdade para construir ele
próprio uma relação visual e física com uma determinada maneira de conceber e
construir.
Ao sair da exposição, de novo na cidade, a arquitectura e
a transformação presente da paisagem madeirense revelam-se cruéis, tornando
óbvio que Rui Goes Ferreira tinha uma outra noção e ambição para construir o
nosso mundo. Ao reconstituir essa imagem, ainda que como miragem de uma ilusão
interrompida, a exposição obriga-nos a pensar de outro modo a construção da
arquitectura, a encontrar alternativas de sentido e o potencial que esta forma
de saber nos continua a oferecer para o nosso espaço de habitar. Essa
consciência é tanto mais necessária quanto os processos de construção e
transformação do ambiente construído são cada vez mais distantes do que eram no
tempo de Rui Goes Ferreira. Ao partilhar com rigor e generosidade uma forma de
saber, esta exposição oferece-nos instrumentos para sermos capazes de exigir
mais e melhor arquitectura.
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Notas da edição
Recensão crítica da Exposição “Rui
Goes Ferreira: imagem de uma obra interrompida” patente até 31 de Março na Porta
33, Funchal, com curadoria de Madalena Vidigal e fotografias de Duarte Belo. Mais
informações no site da Porta 33 onde está igualmente disponível o vídeo da conversa, que acompanhou a
inauguração da exposição a 27 de Janeiro, com Madalena Vidigal, Duarte Belo, Sergio
Fernandez, e André Tavares.
Imagens
1. Abrigo e arranjo do Miradouro do Pico do Areeiro.
1964. Demolido. Fotografia: autor desconhecido, sem data.
2. Casa Rui Menezes em construção. Porto Santo (1971).
Fotografia: Rui Goes Ferreira. 1972
3. Sala 4. Exposição Rui Goes Ferreira. Imagem de uma
obra interrompida. Fotografia: Duarte Belo, 2018.
4.Vista exterior do alçado sul. Habitação para O Sr. Dr.
Ricardo Camacho. Rua dos Ilhéus, Funchal. 1973. Fotografia: Duarte Belo, 2016.
André Tavares
Arquitecto e coordenador da Dafne
Editora. Foi director do Jornal Arquitectos entre 2013 e 2015 e curador-geral
da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2016,
The Form of Form. Autor de vários livros, entre os quais The Anatomy of the Architecutral Books (Lars
Müller/Canadian Centre for Architecture, 2016). É pós-doutorando no instituto
gta, da ETH de Zurique, investigador na Escola de Arquitectura da Universidade
do Minho, e programador de arquitectura na Garagem Sul do Centro Cultural de
Belém, em Lisboa.
Ficha Técnica
Data de publicação:
19.02.2018