Sobre uma condição disciplinar em arquitectura • João Costa




No passado dia 6 de Novembro assistimos a uma das conferencia iniciais do Fórum do Futuro intitulada “Primitive Future” do arquitecto japonês Sou Fujimoto. Na sua apresentação, o arquitecto falou sobre uma ideia de cidade-floresta onde os edifícios-árvores se implantam, mostrando-nos uma definição positiva de natureza, mais próxima de jardim do éden do qual fomos separados num momento de pecado original e para onde a humanidade deseja regressar. E não uma natureza agreste da qual nos tivemos de separar para que o animal homo sapiens se pudesse tornar homem. Mostrou-nos também a posição de um arquitecto, que querendo acima de tudo construir obra, apresenta abertamente projectos de concursos cancelados na esperança que alguém da audiência seja capaz de os fazer acontecer. O optimismo, a honestidade e transparência que defende, manifestam-se na sua ideia de arquitectura permitindo rapidamente estabelecer um posicionamento crítico em relação a esta ideia.

Se por disciplina entendemos “um lugar para um conhecimento sobre o mundo” por oposição a uma “actividade puramente privada” [1] da prática liberal, então a apresentação de Sou Fujimoto, enquanto representação “optimista e honesta” do papel actual da arquitectura do estrelato na sociedade, põe em causa a condição disciplinar da arquitectura.
1. Pedro Levi Bismarck. Precisões sobre um estado presente da arquitectura, Jornal Punkto, Julho 2017.
As conferências de arquitectura a que tenho assistido recentemente pouco mais têm sido que uma sucessão de imagens sustentadas em argumentos de autoridade e petições de princípio que se apoiam, principalmente, no sucesso económico do seu produtor como legitimador das suas intervenções. Nestes eventos não parece haver lugar para “cultura como lugar de encontro e resistências” – aqui só há “cimento social” [2]. Neste paradigma – enquanto ideia de arquitectura baseada na relação entre técnica, arte e disciplina – a teoria, por não acrescentar valor económico, não parece ter espaço de actuação.
2. Silvina Rodrigues Lopes, Literatura, Defesa do atrito, Edições Vendaval & Chão da Feira, 2013.
Posto isto, pergunto se ainda existe legitimidade para a classificação da Arquitectura como disciplina de interesse público? Existirá autonomia para um discurso disciplinar próprio que possa ser discutido para além da sua proveniência? Qual a pertinência da exclusividade da sua prática a profissionais que não são mais do que garantia de valor acrescentado? O que a prática liberal da arquitectura produz dentro dos seus actos próprios é essencialmente valor. É em torno desta criação de valor que o mercado actual da arquitectura se estrutura: procuro um arquitecto se o capital investido na sua contratação valorizar o objecto produzido em mais do que o investido. Só nesta esfera faz sentido apontar a defesa da qualidade da produção arquitectónica portuguesa com base no reconhecimento internacional e actuação dos seus prémios Pritzker.

É por entender que existe um espaço de actuação para além da esfera económica da produção de valor que me parece fazer sentido defender a arquitectura como uma prática exclusiva para arquitetos. Esta reserva parte do princípio que existe espaço para uma discussão sobre o objecto produzido em arquitectura que ultrapasse questões de autoria e de propriedade intelectual. Apoia-se na ideia que existe um discurso que se monta no espaço entre subjetividades e que é nesse espaço-entre que se procura uma construção do comum como “figura daquilo que une ou liga os homens entre si sem assemelhar as suas dissemelhanças e sem subsumir as suas diferenças”. [3]
3. Rodrigo Silva, “Apresentação (elegia do comum)”, in A República por vir, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2011, p.16.
O facto da prática da arquitectura estar, hoje, reduzida à actividade privada faz com que, naturalmente, outros profissionais da área da construção reivindiquem o seu direito a praticá-la. Enquanto que ainda é possível argumentar pela via operativa a reserva de algumas actividades a profissionais formados num determinado campo de estudo – direito ou medicina (disciplinas em que existe um corpo disciplinar forte constituído por um conjunto de saberes técnicos cuja execução correta é de alta responsabilidade) – parece-me mais difícil essa defesa no campo da arquitectura. Uma defesa da sua pertinência através das suas competências técnicas parece ser uma luta perdida à partida contra outra disciplinas científicas, que nesse sentido possuem um corpo disciplinar mais forte, como o exemplo da engenharia civil.

A pertinência da arquitectura como disciplina de interesse público resume-se à inevitabilidade do confronto entre objetos arquitectónicos no ambiente construído, sendo necessário garantir a responsabilização do arquitecto pela manifestação dessa obra no confronto com esta dimensão do comum. Esta reserva só se sustenta se acreditarmos que existe ainda um espaço para uma construção do comum. Daí a defesa de uma condição disciplinar em arquitectura.

Pier Vittorio Aureli afirma que “a tarefa da arquitetura é tornar real, ou seja, transformar em coisas públicas, genéricas e por isso palpáveis – a organização política do espaço, do qual a forma não é apenas uma consequência, mas um dos mais poderosos e influentes exemplos políticos” [4]. Isto significa que, enquanto manifestação de subjectividade política, a intervenção individual traz inevitavelmente consigo uma ideia de construção do comum. A inclusão do produto arquitectónico exclusivamente na esfera de produção de valor económica da prática liberal, na justaposição silenciosa de posições mutuamente exclusivas em troca da expressão máxima das individualidades cristalizadas como garantia de variedade de oferta no mercado, coloca profundamente em causa uma concepção de disciplina, que implica a construção de um conhecimento comum “sem assemelhar as suas dissemelhanças e sem subsumir as suas diferenças” [5]. Esta concepção necessita da existência de um espaço de discussão que ultrapasse a barreira da propriedade intelectual.
4. Pier Vittorio Aureli, The Possibility of an absolute architecture, p.41.
5. Rodrigo Silva, op.cit., p.16.
O discurso disciplinar apresenta-se como o espaço de excelência onde essa construção do comum deveria ocorrer, e por isso a Universidade, como lugar desse discurso, deveria ser a instituição por ele responsável. Estamos perante a falência da disciplina face à mercantilização do objeto e da pertinência do ensino universitário em arquitectura. Tudo o que não prove o seu valor no mercado, que é tido como o “melhor, mais eficiente método de distribuição social dos recursos” segundo o Neoliberalismo, deve ser minimizado ou desmantelado [6]. Que espaço, que níveis de actuação temos à nossa disposição que possam potenciar este espaço de formulação do comum? Terá a prática liberal de arquitectura ainda algum espaço para essa construção ou estará já demasiado absorvida pelo sistema económico de produção de valor? Perante a mútua exclusividade destas concepções de arquitetura, pergunto-me quem serão os “alienados”: os defensores da pertinência da arquitectura enquanto prática disciplinar, ou os defensores da pertinência da arquitectura enquanto pura prática liberal privada?
6. Neil Brenner, “Neoliberalisation”, in Real estates. Life Without Debt, Bedford Press, 2015, p.16
Reconheço que até possa existir uma condição política na atual prática liberal de arquitectura. Mas esta parece aproximar-se mais de uma condição política economicista – da política de gestão neoliberal e não de uma política assumidamente ideológica que procura apresentar um projeto de organização do comum que oriente o desenvolvimento de uma sociedade. E reconheço também que o modelo canónico de conferência, tão disseminado nos dias de hoje, não se preste a uma discussão sobre a construção desse comum. Temos, hoje, em vez desse espaço, um outro, de crítica positiva, onde só há lugar para o reconhecimento de qualidade e para a partilha de sucesso.

João Costa
Nasceu em Guimarães, em 1994. Frequenta o curso de Mestrado Integrado em Arquitectura na FAUP desde 2012. Vive no Porto e em Guimarães.

Ficha Técnica
Data de publicação: 15.01.2018