Há
muitos anos que defendo, de várias formas, a criação de uma instituição,
idealmente estatal, que cuide da cultura da arquitectura em Portugal de forma
livre, isenta e meritória. Publicamente por duas vezes assinaladas. Em 2002 fui
contactado pela candidatura do PS-Porto para ajudar a organizar um encontro no
âmbito da candidatura para as eleições legislativas desse ano onde se discutisse
a política cultural que se propunha para a próxima legislatura. Fi-lo com
agrado, era uma oportunidade única para pôr frente-a-frente políticos e gente
ligada à cultura. Entendi sempre que chamar-me para isso era uma oportunidade
para confrontar o que por meios mais institucionais não se confrontaria.
Vivia-se a ressaca do Porto 2001 e já com o mandato de Rui Rio uma completa submersão
de tudo o que não fosse uma cultura popular e rentável. Propus o Maus-Hábitos
como lugar para o encontro o que foi aceite sem reservas. Convidei gente que
achei que nunca suporia estar naquela circunstância, alguns vieram outros não. Era
um papel secundário o meu, o interesse era confrontar opiniões, coisa que fiz
sempre que me foi proposto pelo simples prazer de ver uma discussão a fluir e
confirmar, ou não, o que disso pudesse resultar. A minha única intervenção foi
no sentido de chamar a atenção para o facto de a arquitectura ser o único campo
da cultura portuguesa que não dispunha de uma instituição cultural que a considerasse.
Já nessa altura se enchia a boca com os feitos internacionais da arquitectura,
Álvaro Siza tinha ganho dez anos antes o Prémio Pritzker, era reconhecida
internacionalmente a arquitectura portuguesa e, no entanto, por cá tudo estava
por fazer.
Não
há um arquivo de arquitectura centralizado e competente, há vários e reféns da
política de cada um; não há uma biblioteca de arquitectura em Portugal, há
várias e todas insuficientes; não há uma política de apoio à edição de
arquitectura, há programas avulsos e disseminados noutros campos. Não há um
sistema ou um programa de exposições de arquitectura, há vários que se vão
encaixando nos programas das instituições que têm horizontes mais vastos de
alcance e que os acolhem nos momentos em que pode fazer sentido trazer a
arquitectura à superfície. Não há uma estratégia para o estudo e investigação
da arquitectura em Portugal. As investigações doutorais fazem-se cada vez mais
incluídas nos programas das unidades de investigação das Faculdades, que são
exactamente isso e não mais, e os programas de bolsas FCT de apoio estão
diluídos entre Arquitectura, Urbanismo e Design e têm de ser congruentes com as
Unidades de Investigação. São elas as apoiadas e não a investigação sobre
arquitectura tout-court. Os arquivos
disponíveis para investigação não estão disponíveis e abertos para quem quer
que seja, são espaços reservados de informação que vivem das políticas que as
instituições que os acolhem definem para si. Não há apoios para investigação
fora dos programas FCT, a Fundação Gulbenkian já os teve, mas há muitos anos
que torna claro, inclusive na informação que dispõe sobre as suas bolsas de
investigação, que a arquitectura está excluída dos seus programas que incluem
todos os outros campos da cultura e da estética (ou quase). Não há da parte do
Estado Português nenhuma manifestação de vontade de considerar esta
insuficiência como um problema a resolver. Não há, também, nenhuma intervenção
das instituições que lidam com a arquitectura, académicas ou outras, nas
políticas educativas que possam difundir a importância que a arquitectura pode
ter nas vidas de cada um, começando pelo momento em que se torna possível
apercebermo-nos do que nos rodeia.
Em
2004 publiquei um texto no JA no âmbito de um prémio de crítica de arquitectura
(que foi depois descontinuado) em que chamava a atenção para tudo isto e
apontava, no âmbito da revogação do famigerado decreto 73/73 (que afinal não se
afastou assim tanto da realidade da profissão) que o passo seguinte seria criar
uma instituição que lidasse com a cultura arquitectónica portuguesa e com os
pontos que atrás enumerei. O texto chamava-se ‘Ground Zero’ e propunha que o
que havia a ser feito sê-lo-ia ‘contra a banalização absoluta’ da arquitectura.
Risco que, hoje mais do que antes, corre, diluída que está entre lifestyle, empreendedorismo, turismo,
estrelato e património. Curiosamente são alguns destes, a que se adicionará a
tecnologia, os campos que os programas de doutoramento apoiados pela FCT
privilegiam. Defendia também, nesse texto, que à Ordem dos Arquitectos cabiam
os assuntos da profissão não os da cultura da disciplina. Mas que enquanto não
houvesse alternativa essa era uma incumbência da Ordem, incumbência reforçada
com o seu compromisso com as políticas para a paisagem e o território que
fizeram parte do acordo feito com o Estado e que a OA assumiu como suas. Mas a
OA tem os seus ciclos e não é por isso um parceiro estável e fiável para esse
compromisso. Não sei sequer se deva sê-lo, a sua é uma natureza distinta,
durante algum tempo decidiu assumi-los, mas pode facilmente deixar de os fazer,
como parece agora acontecer. Passados todos estes anos tudo está na mesma. A
novidade é a abertura da Casa da Arquitectura.
Quero
desejar, pelas óbvias razões, que a Casa da Arquitectura seja o que em Portugal
ainda não existe. Quero que tenha um tempo longo para existir. Quero que seja
aquilo que se propõe ser e fazer e que evolua para todas as outras coisas que
referi e que me parecem fundamentais e ainda que seja ágil a discutir e a
integrar o que apareça e que seja premente, o que é leve e o que é pesado.
Quero que seja aberta e inteligente. Quero que assegure os meios para a sua
consistência e que não seja mais uma vítima das mudanças de políticas, de
elencos governativos ou só de mudança de ares que tantas vezes comprometem o
espaço pequeno que a cultura ocupa em Portugal e que só agora parece ser aberto
também à arquitectura. Quero abraçar efusivamente todos os que conseguiram que
isto acontecesse. Mas quero também lembrar que a arquitectura ainda não
participa da realidade portuguesa, ainda é um espaço discreto e escuso,
inculto. Tudo o que acima está referido é participativo, mesmo que possa não
ser espectacular, para a construção de uma cultura arquitectónica que em
Portugal ainda não existe. Existem só arquitectos e as obras que eles produzem
e isso, como todos sabemos, não chega.
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Bruno Baldaia
Nasceu em Coimbra (1971) é arquitecto (FAUP, 1997) e
doutorando na ETSAB-UPC no Grupo Habitar onde desenvolve tese sob o tema “El
Sucio y el Limpio, Estética y Arquitectura en la Europa Occidental de la
Post-Guerra” sob a orientação de Xavier Monteys. Tem publicado textos de
crítica de arquitectura em revistas nacionais e estrangeiras, foi docente na
EAUM, DACT-UCP Viseu e ARCA-EUAC. É comissário (com Luis Tavares Pereira e
Magda Seifert) do Habitar Portugal 2012-2014.
Imagem
Hans Holbein (o Jovem), Os
Embaixadores, 1533.
Ficha Técnica
Data de publicação: 27.11.2017