Para que servem as Universidades ? • Eduardo Côrte-Real





Introdução
Se o petróleo foi a matéria prima mais importante do século XX, as pessoas serão a matéria prima mais importante do século XXI. Esta afirmação poderia conter um grande otimismo não fosse a constatação de que as pessoas já foram a matéria prima mais importante no século XVIII e XIX através da escravatura. É também num estado de coisas em que o número de pessoas “formadas” decidirá o futuro das sociedades humanas que devemos pensar a universidade. O futuro do capitalismo está no futuro das rendas que os humanos pagarão para estarem ligados à rede global.  A revolução da conectividade alterou em tudo os nossos quadros de referência.  Hoje existem sintomas de que a universidade, porque lida com a educação ao mais alto nível, é o principal veículo de uma comodificação dos humanos, uma vez que reclama constantemente a sua absorção tecnológico-comunicacional. Nesta comodificação, existem sintomas de neo-esclavagismo como a obsessão na “empregabilidade”, os “estágios”, o mercado de trabalho ou os case-studies reais. Mas, ainda assim, a universidade, ganhando consciência de qual é, e foi, o seu propósito, poderá inverter esta tendência. O texto que se segue divide-se em três partes. A primeira é dedicada à inteligência e ao estudo. A segunda parte é dedicada à relação entre as universidades e os seus locais de implantação e a terceira parte versa sobre a tentação de criar uma universidade omnipresente.


Universidade e inteligência?
Entre amigos, também professores universitários e investigadores, queixamo-nos amiúde da falta de profundidade ou densidade crítica que os alunos universitários vêm crescentemente mostrando que os impede de desenvolver bons projectos de estudo. Porém, identificado o sintoma, muitas vezes discordarmos da sua origem. Por isso, interrogo-me sobre o que será essa ‘densidade crítica’…Como qualidade, cheguei à conclusão de que a profundidade (densidade) crítica depende de algumas condições:
1. Raramente aceitar como definitiva uma primeira explicação.
2. Procurar mais informação para confirmar que a primeira explicação não era, de facto, definitiva.
3. Identificar outras explicações como sendo ou do mesmo nível (superficiais) ou de um nível mais profundo (contemplando informação menos óbvia ou mais informação cruzada).
4. Perante uma nova explicação com a aparência de definitiva, continuar a procurar explicações, especialmente se parecerem difíceis.

Este modelo dinâmico parece-me corresponder à ideia de inteligência que tinha presidido ao nosso percurso como estudantes universitários. É claro que, ensinando disciplinas de projecto, este aspecto é mais agudo uma vez que o conhecimento tem que ser aplicado após um processo de observação e investigação críticas. Chego então à conclusão de que talvez valha a pena colocar a questão: será que, não possuindo profundidade crítica, os alunos universitários são inteligentes? Relativamente a esta questão, de um modo muito simplista, os meus colegas, amigos e familiares professores dividem-se em duas correntes que declaram:
1. Os atuais estudantes possuem uma inteligência apoiada na miríade de informação de fácil acesso contida na Internet, à qual nós, humanos da pré-digitalização do mundo, somos resistentes e, consequentemente, estamos impossibilitados de aceder.
2. Os atuais estudantes não dominam nenhum dos processos básicos associados com a base da inteligência requerida num nível universitário: leitura, escrita, lógica, desenho/visualização, são, portanto, inoperantes e incapazes de aprender.

A sugestão inerente, resultante de ambas as opções, é que os docentes universitários deveriam aproximar os seus métodos de ensino dos processos pelos quais os estudantes estão habituados a compreender e, logo, a aprender. Depois de considerar a inteligência como qualidade fundamental para o ensino universitário, ponderei então a inteligência como parte do processo de aprendizagem numa perspectiva mais larga, de uma forma quase caricatural. Para fazer esta caricatura, considere-se a noção metafórica de “contentor de inteligência”. Os primeiros utensílios humanos eram capazes de conter inteligência porque incluíam um processo de inteligência expressa na sua feitura e também através da sugestão pela forma do seu uso. Ou seja, de modo dominante, o processo de criar um utensílio é o resultado da inteligência aplicada que se soma à “inteligência” da Natureza que criou os materiais que o constituem e à inteligência de quem usa. De uma forma simplificada, a criação de utensílios é uma característica da inteligência humana de primeiro grau, ainda presente em algumas outras espécies.

As construções humanas eram também contentores de inteligência. As formas elaboradas de construção a que chamamos arquitectura, ou as formas elaboradas de produção a que chamamos arte, sê-lo-iam ainda mais porque integravam uma ordem “puramente” intelectual, porque estética, e assim de segundo grau. Ainda assim, algumas outras espécies fazem construções e muitas vezes elaboradas. Na dúvida, podemos ainda admitir que entre elementos da mesma espécie possa haver uma apreciação estética das construções realizadas.

Com a escrita criámos um processo de conter inteligência mais próximo da sua pureza. Uma coisa escrita não serve para muito mais do que conter inteligência. Outros sistemas do mesmo género, como o desenho e a matemática, têm as mesmas características. Aqui temos um terceiro grau da inteligência humana totalmente impossível de confundir com qualquer inteligência de outros seres vivos. Escrita, Desenho e Matemática são sistemas abstratos e podem viver autonomamente, sendo assim puros contentores de inteligência e, em consequência, puros geradores de inteligência. Quando o livro impresso foi inventado, foi criado pela primeira vez um objecto - com as mesmas características de produção industrial dos objectos modernos - concebido totalmente para conter inteligência. A produção destes objectos não cessou de aumentar em 500 anos, recuperando em primeiro lugar o conhecimento anterior, e acumulando para a Humanidade um incomensurável acervo de contentores de inteligência e, assim, de ‘inteligências’.

O desenvolvimento dos computadores foi um passo em frente na criação de tais contentores de inteligência. Não há, hoje, nenhum processo de inteligência que não possa existir (ainda que deformado) sob forma digital e albergado dentro de um objecto a que já chamámos “computador”. Mas, enquanto o livro é fundamentalmente um contentor passivo requerendo atividade intelectual ao utilizador, o computador e os seus derivados (nomeadamente smartphones) não são passivos e, sobretudo, não são contentores…Os computadores pessoais não são hoje mais do que portais para um gigante contentor de inteligência a que chamamos Internet. Embora a sua formalização física seja complexa, rizomática e ramificada, a pouco e pouco a Internet corresponde à imagem de uma grande Nuvem, ou mesmo de uma atmosfera que cobre a Terra, na qual existe toda a informação a que acedemos através dos nossos dispositivos. As próprias companhias de produção e gestão de material “informático” têm alimentado essa ideia.

Discretamente, enquanto espécie, temos vindo a transferir cada vez mais inteligência para contentores externos: primeiro para os livros, depois computadores, depois para a “Nuvem”. O que é um facto é que os nossos estudantes confiam cada vez mais que na Internet existe tudo aquilo de que necessitam para complementarem a sua aprendizagem que se inicia na sala de aula… e têm razão. O problema, ainda assim, é que essa esperteza requer a inteligência de saber “escavar” na Internet, por entre uma camada de trivialidades, erros, palermices e plágios cada vez mais espessa. No entanto, para desenvolverem essa esperteza, teriam que ter explorado, individualmente e em grupo, os três primeiros graus da inteligência de que falámos antes: utensílio; arquitectura; livro.

Devo sublinhar no cultivo daquelas inteligências a possibilidade da autonomia. E, sobretudo, o cultivo da virtude da audição atenta que resulta também do exercício da leitura e da escrita.  E, como manifestação suprema destas virtudes, a virtude da disputatio, da discussão e argumentação. Refiro-me sobretudo a qualquer acto em que se possa participar com o uso da inteligência, sem recorrer ao apoio de um dispositivo ligado à Nuvem. Nestas virtudes de atenção auditiva e de argumentação encontra-se subjacente o poder da concentração. A possibilidade do desenvolvimento da inteligência, exigente do ponto de vista da atenção e concentração, é hoje ameaçado pelo fluxo constante e permanente do correio social que requer uma ligação também constante e permanente a uma narração colectiva interactiva sem fim. Chamo ainda a atenção para o desaparecimento de uma função universitária por excelência: o estudo. Ninguém estuda. O conhecido filósofo Giorgio Agamben [1] já notou este facto. Os professores realizam investigação e os alunos fazem trabalhos. Os professores desenvolvem actividades de extensão e os alunos participam.
1.http://www.revistapunkto.com/2017/05/estudantes-giorgio-agamben_17.html
O pioneiro da realidade virtual, Jaron Lanier [2], tem chamado a atenção para a diminuição do humano associada à internet. Criou a designação de “servidão digital”. Como humanos criados livres nos anos 1960 até aos anos 1980, não podemos deixar de notar a dependência dos nossos alunos e filhos ao tempo digital sem alternativa. A conclusão directa é que o problema não está na digitalização do mundo, mas sim na sua disponibilização permanente e invasiva.  Chegados até aqui, devemos falar de uma faculdade que aqueles três graus de inteligência desenvolvem: a imaginação. Não há entidade abstrata que não seja imaginável. Embora não consequente, não há abstração sem imaginação. Em geral, uma abstração é uma imagem que corresponde a outra coisa. Mesmo na Física quântica, que é impossível de imaginar, as fórmulas que a descrevem são visualmente expressáveis e, consequentemente, não só imagináveis como imaginadas. Toda a teoria aplicável, base do ensino universitário, requer imaginação. Sem imaginação não existe o poder de antever o que a teoria prevê…Neste estado de coisas deparamo-nos com estudantes universitários privados da capacidade de imaginar, de ter pensamento abstracto, de memorizar, de escutar e de entender e, no entanto, em potência, com acesso a toda a inteligência do mundo. O ensino universitário, em vez de promover a autonomia cognitiva e a da faculdade de julgar, está condenado a ser, na melhor das hipóteses, um guia para a dependência da Nuvem Digital a nível superior.
2. LANIER, Jaron, You are Not a Gadget, New-York: Vintage Books, 2010
Voltemos então às questões iniciais. É claro que apoiados nos atuais contentores de inteligência e, especialmente com acesso à grande inteligência da Nuvem onde tudo está acessível, os atuais alunos universitários são potencialmente os mais inteligentes da história da humanidade. Em potência, uma vez que a Nuvem é também uma fonte inesgotável de estupidez (em especial aquela legitimada pela indexação), mas sobretudo porque, existindo, diminui as faculdades da atenção, da memória e da imaginação. Em breve, todo esse mega contentor de inteligência será, senão inacessível, pelo menos inoperacional, uma vez que os humanos terão perdido os códigos necessários para o compreender, desbravar e aumentar. O ritmo de produção de conteúdos estúpidos suplanta largamente o ritmo da reprodução de conteúdos já existentes antes da era da digitalização. Por isso, e em conclusão, a universidade deve servir para contrariar esta tendência e, para além de se deixar de sufocar na busca incessante de conhecimento publicável, deve reforçar o seu papel de guardar, cuidar e divulgar a inteligência armazenada em milénios de atividade humana. Deve também propiciar os meios para que os humanos das próximas gerações não percam o contacto e a capacidade de entenderem esse enorme património.


Universidade e Localidade
Nos primeiros 500 anos da sua existência (do século onze ao século dezasseis), as universidades mantiveram uma razoável estabilidade do ponto de vista dos seus conteúdos, da sua organização e do seu propósito social. Neste período, só o número de universidades não foi estável. De uma só universidade (Bolonha) em 1088 passou-se a mais de sessenta em 1500. [3] Este fenómeno foi europeu. Não que outros centros de conhecimento e educação superior não existissem noutras sociedades e até bem mais avançados, mas, com esta designação e características, as universidades têm os seus 400 anos iniciais de existência em exclusividade na Europa. Em 1499, para um total da população europeia, que rondava os 90 milhões de habitantes, existiam em funcionamento 62 universidades, todas relacionadas no seu nome com a sua cidade de origem.  Julgo que todas continuam a funcionar.
3. Penguin History of Europe
A primeira ilação que podemos tirar é que existem hoje, na Europa, 62 instituições com mais de 500 anos. Cada uma delas está associada a uma cidade. Embora fechadas nos perímetros das suas “muralhas”, todas requereram uma autorização papal. Embora com as suas particularidades, unidas pelo Latim, pelos poucos livros, por programas semelhantes, no seu conjunto constituíram uma “universidade cristã” e europeia. Também, todas requereram dinheiro da sua cidade, dos seus alunos e, às vezes até dos seus professores e muitas vezes do soberano da região. As universidades medievais (as originais) reuniam a totalidade (universitá) dos “estudos” de uma cidade e retribuíam-lhe sob a forma de pessoas formadas em Medicina, em Teologia, em Direito, e em “Artes” (gramática, retórica e lógica mais aritmética, astronomia, geometria e música - o trivium e o quadrivium). O investimento era feito para que a cidade pudesse ter quem lhe governasse a saúde do espírito, a saúde do corpo, a saúde da sociedade e desenvolvesse algum conhecimento prático através do quadrivium e do trivium. Algumas reclamaram o estatuto de cidades-universidade como Cambridge, Oxford, Heidelberg, Salamanca ou Coimbra, urbes incapazes de ganhar relevância em qualquer outra actividade, mas servindo reinos ou regiões dotando-as de gente formada. Algumas, como Bolonha e Paris, atraíam alunos e mestres de toda a Europa.

Quando a Renascença se transformou em Modernidade, outras instituições reclamaram novas formas de organizar o conhecimento e de o promover. No século XVI, recuperaram a designação antiga de Academia, porque convocavam um novo saber recuperado, em parte, do espírito da Antiguidade. E, a partir de Florença, onde se fundou a primeira moderna academia, conquistaram mais uma vez a Europa, sobretudo através das designações de Academias de Artes, Ciências, Música ou Letras. Esta foi a primeira grande crise da Universidade que persistiu imóvel quase até aos finais do séc. XVIII. Sem alarde, a Universidade absorveu ou esvaziou estas Academias, ao ponto de hoje os professores universitários serem designados por académicos, de um conjunto de universidades ser designado “a academia” ou algumas pessoas vestirem trajes “académicos” e, paradoxalmente, as verdadeiras Academias serem exibidas como instituições retrógradas presas ao passado do ensino “académico”.

As universidades passaram, com a expansão dos povos europeus, para o novo mundo e para o resto do mundo e, de acordo com publicações de referência, ascendem hoje a 16 mil para 7 mil e quinhentos milhões de pessoas. O conhecido ranking QS lista 4359 instituições de seis continentes. Se a primeira universidade do Novo Mundo em Santo Domingo, em 1538, ainda necessitou de uma bula papal, já o Harvard College, quase um século depois, foi fundado sob os auspícios da Colónia da baía de Massachussets e batizado com o nome do primeiro dos seus benfeitores. A famosa universidade iniciou a sua vida como um College, adotando um nome como os colleges de Oxford ou Cambridge, estes normalmente, de cariz religioso. As universidades do Novo Mundo trouxeram designações novas não associadas com cidades, mas fortemente enraizadas nas comunidades geográficas e sociais locais.

Curiosamente, apesar do seu número, a ideia de uma universidade universal é hoje mais forte ainda do que no final da Idade Média. Sistemas de “intercâmbio” de estudantes e docentes, um mercado mundial de conferências, revista científicas, associações de instituições de educação superior e instrumentos reguladores, como a “Declaração de Bolonha” e rankings globais, criaram uma mega criatura que se pode reclamar como “A UNIVERSIDADE” que, cobre todo o mundo, num “justo equilíbrio” entre características locais e a dominância Anglo-saxónica (como antes havia a dominância do Papa).

Há, no entanto, uma persistência da relação entre universidades e lugares. Num universo de instituições em que as mais prestigiadas atraem os melhores alunos, os melhores professores e o “melhor dinheiro”, verificamos que as melhores do mundo são centenárias ou multicentenárias e associadas a uma localidade. Uma geografia particular e um nome secular continuam a ser importantes devido sobretudo à irresistível mundialização. Num universo em que todas se comparam com todas, em que os critérios e a organização tendem para a uniformização, o caráter distintivo do lugar, do nome e da história faz a diferença porque cria identidade. Por outro lado, a localidade ou região reforça a sua importância se contar com uma universidade ou um sistema universitário de prestígio. De entre essas universidades, algumas deixam-nos boquiabertos com a sua importância económica. Os custos operacionais da universidade de Harvard foram de 4.5 mil milhões de dólares em 2016 [4] de acordo com o seu site oficial, cobertos em um terço por um fundo de doações (para se ter mais ou menos uma noção do que significa este número, pode dizer-se que equivale aproximadamente ao volume de vendas de um ano da SONAE SGPS, de acordo com o seu relatório de contas acessível na internet). Segundo Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI, [5] muitas universidades americanas têm fundos de doações cujo valor excede os mil milhões de dólares que, em investimentos alternativos, obtém taxas de 10% ao ano. Neste lado do Atlântico, o total de doações na Universidade de Cambridge foi de 1 296 913 000 Libras em 2015 segundo o seu relatório oficial de contas [6]. Com os falhanços sucessivos das “indústrias financeiras”, assistiremos à ascensão e supremacia da “indústria universitária”? Os críticos do Brexit assinalam as vantagens que esta “indústria” obteve no Reino Unido com a integração europeia e, consequentemente, as ameaças que se avizinham com a sua saída da UE.
5. PIKETTY, Thomas. Capital in the Twenty-First Century.
As universidades, em tempos contemporâneos, servem para dotar o seu território de referência de um cérebro, mas também de um capital de prestígio, conhecimento e mesmo de dinheiro. E, num país socialmente ainda “pobre”, há que reconhecer que a universidade tem um papel essencial na ascensão social de um grande número dos seus habitantes. Ascensão social significa mais riqueza, riqueza para aqueles(as) que ascenderam e riqueza para a região onde criam, produzem, consomem e se divertem. Anotamos, então, que existe esta ligação universidade-território, que é também uma ligação universidade-economia, que se projecta no futuro. Se nos preocuparmos em prever o futuro, talvez não seja má ideia, em vez de tentar perceber quais serão as novas coisas que irão aparecer, assinalar as coisas antigas que se irão manter. A universidade ligada ao território será uma delas.


Universidade versus Ubersidade
Há algo de espantoso naquilo a que hoje chamamos “tecnologia”. A primeira razão de estupor é como a tecnologia é “entitled”, acha que pode mandar, que todos estão ao seu serviço e que qualquer mudança que “ela” determine tem que ser cumprida. A tecnologia chega a uma esplanada e indigna-se de não ser a primeira a ser servida, amesquinha o criado e diz como é que tudo deveria ser feito. A tecnologia é uma espécie de Gordon Ramsey ou Lubomir Stanisic da sociedade. Tudo o que é proposto com a legitimidade da tecnologia nem sequer admite discussão.

 A segunda constatação é que aquilo que chamamos hoje “inovação tecnológica” não passa de um novo modo de usar tecnologias já existentes. O negócio Uber, por exemplo, não é uma inovação tecnológica, mas sim a composição “esperta” de várias tecnologias. Facebook, Instagram e mesmo Google não são, de facto inovações tecnológicas, são «chico-espertices» que aproveitam tecnologias existentes.

A terceira constatação que fazemos é que a “tecnologia” como conceito cultural se assemelha bastante à “biologia” uma vez que ambas designam algo que sabemos que funciona no interior de objectos (artificiais ou naturais), mas que se esconde sob uma capa de “contacto” ou “aparência”. Cada vez mais, a interface entre objectos e humanos é menos agreste e com uma aparência mais amiga e sobretudo menos revelador da “tecnologia” que esconde (e, sobretudo, esconde a infra-estrutura tecnológica que lhes permite funcionar com cabos submarinos de fibra ótica ou mega servidores localizados na Islândia).

A quarta constatação é que a “inovação tecnológica” é apresentada como naturalmente legitimada. Se é tecnológico não se pode contrariar. Isto é, o modo Darwinista de ver o mundo aceita facilmente que o meu smartphone é melhor que o meu Nokia e que este era melhor que o meu velhinho Alcatel e ninguém tem pena destes, simplesmente porque não se adaptaram e, consequentemente, extinguiram-se, como se extinguiram os dinossauros, o tigre dentes-de-sabre e tantas outras espécies. Uma biologia ultrapassada deve ceder espaço a uma biologia mais avançada. Aquilo que raramente consideramos é que o propósito da evolução natural é a diversidade e não o progresso, e que, no presente, animais muito antigos como os crocodilos e as baratas coexistem com espécies mais modernas como o cão ou os humanos. Mas estas são contas de outro rosário.

A evolução “tecnológica”, desde o século XIX mas, especialmente, desde o início deste século, teve um efeito nas cidades e, ao ter um efeito nas cidades, teve-o especialmente no que a cidade tem de público. Não digo “espaço público” porque as pessoas começam logo a pensar em praças e jardins. Falo de retrosarias e drogarias, de quem são os meus vizinhos, de botecos, cinemas e teatros, autocarros de dois andares que tenham capota e… de um certo tipo de universidade. O que parece ser claro é que o espaço público, ao desaparecer das cidades, passou a existir cada vez mais no mundo digital virtual (não por ele ser digital, mas porque a digitalização facilita não só compressão e arrumação físicas da informação, mas sobretudo a sua transmissão)

Em 2012, Stephan Collini, um professor de Literatura da Universidade de Cambridge, explorava uma ferida institucional ao escrever o livro What are Universities For. [7] Questão da qual deriva este artigo. Collini não responde à questão e tem mesmo dificuldade em responder à pergunta “o que é uma universidade?”, mas expõe uma incomodidade que corresponde ao mal-estar de um grupo importante de atores nas instituições que dão pelo nome de professores.
Um exemplo desta incomodidade está expresso na pressão para que os professores desenvolvam conteúdos digitais que possam ser distribuídos pelo maior número de alunos. O desenvolvimento de MOOCs, Massive Online Open Courses, desejado por qualquer administrador universitário, é visto, naturalmente, pelos professores com suspeição. Os professores intuem, com razão, que virão a ser tão populares como cantores pop e vão continuar a ser pagos como empregados de limpeza. Mas, sobretudo, suspeitam que existe uma qualidade no ensino presencial que se perde nos MOOCs. Mal ou bem, essa qualidade caraterizou a universidade nos últimos 1000 anos. É claro que, apoiada no valor inquestionável da evolução tecnológica, a opção por MOOCs parece fadada a suplantar a opção tradicional de obtenção de graus pelo penoso percurso através de idiossincráticos professores e obscuros assuntos. Uma Ubersidade em que simpáticos professores nos falem diretamente do ecrã do nosso laptop ou mesmo do nosso smartphone e nos avaliem através de múltipla escolha em questionários onde se escolhe o buraquinho certo para colocar a pintinha preta é irresistível. Esta Ubersidade, dá-se ao horário dos alunos, à sua conveniência, pagável por cartão de crédito sem sujeição a sarcasmo, ironia, analogias ou mesmo súbitas explosões de bibliografia relevante. A Ubersidade permite ao estudante gastar o seu precioso tempo em atividades muito mais importantes como seguir o movimento nos seus posts no facebook, matar um dragão que o ameaça, mimetizar comportamentos militares durante as praxes e levar ao extremo o companheirismo tão próprio da idade através da etilização máxima e de comportamentos não recomendáveis. 

Chegados até aqui, na terceira parte deste artigo, tenho que reforçar que em nada sou contra a digitalização do conhecimento. Nem sou contra o uso de suportes tecnológicos tais como emails, apresentações de slides em powerpoint ou keynote. (A este propósito também aconselho uma vista de olhos pelo método dos mnemosine atlas de Aby Warburg, impossível de usar numa sequência de slides) [8]. O que noto cada vez mais é uma desumanização do ato de aprender que tem que ser estancada num certo ponto. Gostaria, portanto, de exigir a presença do humano para guiar outro humano, presente, nesta divina comédia electrónica.
Conectivismo, Trans-humanismo, Pós-antropocentrismo, são buzzwords de um ar do tempo em que as máquinas “inteligentes” participam nos processos de aprendizagem.  Pós-antropocentrismo leva-nos a aceitar não só outros seres biológicos como participantes nos processos de aprendizagem e criação, mas também as máquinas em paridade com os humanos. O Trans-humanismo chama-nos à atenção que os nossos “poderes” aumentaram com as máquinas e que não faz sentido olhar o humano per se hoje em dia. O conectivismo afirma-se como uma doutrina da aprendizagem que entende que as redes são fonte de conhecimento e que a participação em redes onde os nódulos são pontos nevrálgicos de aprendizagem, substituiu as visões tradicionais das teorias da aprendizagem.

George Siemens foi um dos criadores desta teoria. Podemos ler um seu artigo publicado em 2004 no site “Elearnspace” [9]. Curiosamente, nesse artigo era anunciado que um website chamado www.connectivism.ca tinha sido criado para explorar este assunto. Se visitarmos hoje esse website encontramos apenas propaganda a straight talk coupons (!?). De regresso a Siemens e ao seu artigo de 2004, ele fala de um índice de obsolescência do conhecimento, que relaciona o conhecimento publicado e validado num determinado momento com novo conhecimento, melhor ou diferente do anterior, publicado num momento seguinte. A diminuição deste índice (half-life of knowledge) é tão acelerada que julgo que em breve o conhecimento atualizado será publicado antes do desatualizado…
Mas, curiosamente, o mesmo artigo dá como exemplo, estando na base do conectivismo, a noção de que quando andámos na universidade nos apoiávamos numa rede de amigos que sabiam mais disto e daquilo ou descobriam novas ideias ou autores. Tal como, quando desenvolvemos as nossas carreiras, criamos redes de colegas e participamos em conferências e congressos. Este era um argumento em favor de uma teoria da aprendizagem que considerasse a existência das redes electrónicas. No entanto, ele baseia-se num valor insubstituível do contacto entre humanos nas salas, refeitórios, bibliotecas, claustros, jardins e bares das universidades e em toda a cidade que as alberga. E aqui começamos a intuir a terceira função vital que deve ser atribuída às universidades. A função de que o conhecimento seja transferido, aumentado e criado entre pessoas.  Talvez o melhor que aconteceu à universidade europeia, desde que S. Tomás de Aquino e Newton aí trabalharam, foi o programa Erasmus. Talvez também tenha sido o que de melhor sucedeu à Europa desde que a princesa fenícia foi raptada por Zeus. Neste programa, criaram-se as bases de um novo cidadão Europeu com a mobilidade de centenas de milhares de estudantes universitários em idade de aprenderem, de se apaixonarem e fazerem amigos para a vida. Isto foi feito com as pessoas a mudarem de sítio e não com a tecnologia a tornar acessível o sítio às pessoas através do seu écran.

Em resumo, as três funções da universidade são/serão:
1. Cuidar, manter vivo e divulgar o conhecimento já acumulado.
2. Dotar as regiões do futuro de liderança intelectual, culta e conhecedora assegurando ascensão social e cultural a uma grande quantidade de indivíduos.
3. Manter-se como um espaço de aprendizagem transgeracional entre pessoas.

Talvez outras instituições venham a existir fazendo exatamente o contrário. É fácil imaginar instituições de Ensino Superior tão obcecadas com o novo conhecimento que esqueçam o antigo. Instituições que se queiram tornar “marcas” globais, indiferentes aos territórios e que se queiram assépticas, promovendo apenas o contacto electrónico. Estas instituições existirão no futuro, se é que não existem já. Julgo é que não se deviam designar por universidades.

Imagens
1.Mapa da Europa com a indicação das universidades em funcionamento em 1500 segundo Roberts, J.M. The Penguin History of Europe, (London: Penguin Books, 1996)
2. As mega regiões da Europa segundo Richard Florida
3. Vistas de uma das janelas da Bodleian Library, Oxford University, desenho do Autor, 2016

Eduardo Côrte-Real
Eduardo Côrte-Real iniciou a sua carreira académica em 1984 como monitor de Desenho na Faculdade de Arquitectura de Lisboa. Doutorou-se em 1999 na mesma universidade depois de períodos de estudo em Inglaterra e Itália. Desde esse ano até 2005 foi presidente do conselho de direcção da Escola Superior de Design do IADE e presidente do Conselho Científico do IADE até 2015. Fundou o centro de investigação UNIDCOM em 2003 e criou o jornal online “The Radical Designist" em 2007 e o doutoramento em Design do IADE em 2012 que coordenou até 2015. Ensina disciplinas projectuais oriundas do Desenho como Desenho de Observação, Ilustração, Banda Desenhada, Storyboard e teóricas na área da Arte e Cultura Visual. Foi membro do Executive Board da Cumulus, International Association of Universities and Colleges of Art, Design and Media entre 2007-2013 e do Council da Design Research Society entre 2003 e 2012. Publicou inúmeros artigos e três livros e orientou mais de sessenta estudantes de Mestrado e Doutoramento.

Ficha Técnica
Data de publicação:  06/11/2017

Ligações
Estudantes \ Giorgio Agamben