Introdução
Se o petróleo
foi a matéria prima mais importante do século XX, as pessoas serão a matéria
prima mais importante do século XXI. Esta afirmação poderia conter um grande
otimismo não fosse a constatação de que as pessoas já foram a matéria prima
mais importante no século XVIII e XIX através da escravatura. É também num estado de coisas em que o número de pessoas
“formadas” decidirá o futuro das sociedades humanas que devemos pensar a
universidade. O futuro do capitalismo está no futuro das rendas que os humanos
pagarão para estarem ligados à rede global.
A revolução da conectividade alterou em tudo os nossos quadros de
referência. Hoje existem sintomas de que
a universidade, porque lida com a educação ao mais alto nível, é o principal
veículo de uma comodificação dos
humanos, uma vez que reclama constantemente a sua absorção
tecnológico-comunicacional. Nesta comodificação,
existem sintomas de neo-esclavagismo como a obsessão na “empregabilidade”, os
“estágios”, o mercado de trabalho ou os case-studies
reais. Mas, ainda assim, a universidade, ganhando consciência de qual é, e foi,
o seu propósito, poderá inverter esta tendência. O texto que se segue divide-se
em três partes. A primeira é dedicada à inteligência e ao estudo. A segunda
parte é dedicada à relação entre as universidades e os seus locais de
implantação e a terceira parte versa sobre a tentação de criar uma universidade
omnipresente.
Universidade e inteligência?
Entre amigos, também professores universitários e
investigadores, queixamo-nos amiúde da falta de profundidade ou densidade
crítica que os alunos universitários vêm crescentemente mostrando que os impede
de desenvolver bons projectos de estudo. Porém, identificado o sintoma, muitas
vezes discordarmos da sua origem. Por isso, interrogo-me sobre o que será essa
‘densidade crítica’…Como qualidade, cheguei à conclusão de que a
profundidade (densidade) crítica depende de algumas condições:
1. Raramente
aceitar como definitiva uma primeira explicação.
2. Procurar mais
informação para confirmar que a primeira explicação não era, de facto,
definitiva.
3. Identificar
outras explicações como sendo ou do mesmo nível (superficiais) ou de um nível
mais profundo (contemplando informação menos óbvia ou mais informação cruzada).
4. Perante uma
nova explicação com a aparência de definitiva, continuar a procurar
explicações, especialmente se parecerem difíceis.
Este
modelo dinâmico parece-me corresponder à ideia de inteligência que tinha
presidido ao nosso percurso como estudantes universitários. É claro que,
ensinando disciplinas de projecto, este aspecto é mais agudo uma vez que o
conhecimento tem que ser aplicado após um processo de observação e investigação
críticas. Chego então à conclusão de que talvez valha a pena colocar a questão:
será que, não possuindo profundidade crítica, os alunos universitários são
inteligentes? Relativamente a esta questão, de um modo muito simplista,
os meus colegas, amigos e familiares professores dividem-se em duas correntes
que declaram:
1. Os atuais
estudantes possuem uma inteligência apoiada na miríade de informação de fácil
acesso contida na Internet, à qual nós, humanos da pré-digitalização do mundo,
somos resistentes e, consequentemente, estamos impossibilitados de aceder.
2. Os atuais estudantes não dominam nenhum dos processos
básicos associados com a base da inteligência requerida num nível
universitário: leitura, escrita, lógica, desenho/visualização, são, portanto,
inoperantes e incapazes de aprender.
A
sugestão inerente, resultante de ambas as opções, é que os docentes
universitários deveriam aproximar os seus métodos de ensino dos processos pelos
quais os estudantes estão habituados a compreender e, logo, a aprender. Depois
de considerar a inteligência como qualidade fundamental para o ensino universitário,
ponderei então a inteligência como parte do processo de aprendizagem numa
perspectiva mais larga, de uma forma quase caricatural. Para fazer esta
caricatura, considere-se a noção metafórica de “contentor de inteligência”. Os
primeiros utensílios humanos eram capazes de conter inteligência porque
incluíam um processo de inteligência expressa na sua feitura e também através
da sugestão pela forma do seu uso. Ou seja, de modo dominante, o processo de
criar um utensílio é o resultado da inteligência aplicada que se soma à
“inteligência” da Natureza que criou os materiais que o constituem e à
inteligência de quem usa. De uma forma simplificada, a criação de utensílios é
uma característica da inteligência humana de primeiro grau, ainda presente em
algumas outras espécies.
As
construções humanas eram também contentores de inteligência. As formas
elaboradas de construção a que chamamos arquitectura, ou as formas elaboradas
de produção a que chamamos arte, sê-lo-iam ainda mais porque integravam uma
ordem “puramente” intelectual, porque estética, e assim de segundo grau. Ainda
assim, algumas outras espécies fazem construções e muitas vezes elaboradas. Na
dúvida, podemos ainda admitir que entre elementos da mesma espécie possa haver
uma apreciação estética das construções realizadas.
Com
a escrita criámos um processo de conter inteligência mais próximo da sua
pureza. Uma coisa escrita não serve para muito mais do que conter inteligência.
Outros sistemas do mesmo género, como o desenho e a matemática, têm as mesmas
características. Aqui temos um terceiro grau da inteligência humana totalmente
impossível de confundir com qualquer inteligência de outros seres vivos.
Escrita, Desenho e Matemática são sistemas abstratos e podem viver
autonomamente, sendo assim puros contentores de inteligência e, em
consequência, puros geradores de inteligência. Quando o livro impresso foi
inventado, foi criado pela primeira vez um objecto - com as mesmas
características de produção industrial dos objectos modernos - concebido totalmente
para conter inteligência. A produção destes objectos não cessou de aumentar em
500 anos, recuperando em primeiro lugar o conhecimento anterior, e acumulando
para a Humanidade um incomensurável acervo de contentores de inteligência e,
assim, de ‘inteligências’.
O
desenvolvimento dos computadores foi um passo em frente na criação de tais
contentores de inteligência. Não há, hoje, nenhum processo de inteligência que
não possa existir (ainda que deformado) sob forma digital e albergado dentro de
um objecto a que já chamámos “computador”. Mas, enquanto o livro é
fundamentalmente um contentor passivo requerendo atividade intelectual ao
utilizador, o computador e os seus derivados (nomeadamente smartphones)
não são passivos e, sobretudo, não são contentores…Os computadores pessoais não
são hoje mais do que portais para um gigante contentor de inteligência a que chamamos Internet. Embora a sua
formalização física seja complexa, rizomática e ramificada, a pouco e pouco a
Internet corresponde à imagem de uma grande Nuvem, ou mesmo de uma atmosfera
que cobre a Terra, na qual existe toda a informação a que acedemos através dos
nossos dispositivos. As próprias companhias de produção e gestão de material
“informático” têm alimentado essa ideia.
Discretamente,
enquanto espécie, temos vindo a transferir cada vez mais inteligência para
contentores externos: primeiro para os livros, depois computadores, depois para
a “Nuvem”. O que é um facto é que os nossos estudantes confiam cada vez mais
que na Internet existe tudo aquilo de que necessitam para complementarem a sua
aprendizagem que se inicia na sala de aula… e têm razão. O problema, ainda
assim, é que essa esperteza requer a inteligência de saber “escavar” na
Internet, por entre uma camada de trivialidades, erros, palermices e plágios
cada vez mais espessa. No entanto, para desenvolverem essa esperteza, teriam que ter explorado, individualmente e em grupo, os três
primeiros graus da inteligência de que falámos antes: utensílio; arquitectura;
livro.
Devo sublinhar no cultivo daquelas inteligências a
possibilidade da autonomia. E, sobretudo, o cultivo da virtude da audição
atenta que resulta também do exercício da leitura e da escrita. E, como manifestação suprema destas virtudes,
a virtude da disputatio, da discussão e argumentação. Refiro-me
sobretudo a qualquer acto em que se possa participar com o uso da inteligência,
sem recorrer ao apoio de um dispositivo ligado à Nuvem. Nestas virtudes de atenção auditiva e de argumentação
encontra-se subjacente o poder da concentração. A possibilidade do
desenvolvimento da inteligência, exigente do ponto de vista da atenção e
concentração, é hoje ameaçado pelo fluxo constante e permanente do correio
social que requer uma ligação também constante e permanente a uma narração
colectiva interactiva sem fim. Chamo ainda a atenção para o desaparecimento de
uma função universitária por excelência: o estudo. Ninguém estuda. O conhecido
filósofo Giorgio Agamben [1] já notou este facto. Os professores realizam investigação e os alunos fazem trabalhos.
Os professores desenvolvem actividades de extensão e os alunos participam.
1.http://www.revistapunkto.com/2017/05/estudantes-giorgio-agamben_17.html
O pioneiro da realidade virtual, Jaron Lanier [2],
tem chamado a atenção para a diminuição do humano associada à internet. Criou a
designação de “servidão digital”. Como humanos criados livres nos anos 1960 até aos anos 1980, não podemos deixar de notar
a dependência dos nossos alunos e filhos ao tempo digital sem alternativa. A
conclusão directa é que o problema não está na digitalização do mundo, mas sim
na sua disponibilização permanente e invasiva.
Chegados até aqui, devemos falar de uma faculdade que aqueles três graus
de inteligência desenvolvem: a imaginação. Não há entidade abstrata que não seja
imaginável. Embora não consequente, não há abstração sem imaginação. Em geral,
uma abstração é uma imagem que corresponde a outra coisa. Mesmo na Física
quântica, que é impossível de imaginar, as fórmulas que a descrevem são
visualmente expressáveis e, consequentemente, não só imagináveis como
imaginadas. Toda a teoria aplicável, base do ensino universitário, requer
imaginação. Sem imaginação não existe o poder de antever o que a teoria prevê…Neste
estado de coisas deparamo-nos com estudantes universitários privados da
capacidade de imaginar, de ter pensamento abstracto, de memorizar, de escutar e
de entender e, no entanto, em potência, com acesso a toda a inteligência do
mundo. O ensino universitário, em vez de promover a autonomia cognitiva e a da
faculdade de julgar, está condenado a ser, na melhor das hipóteses, um guia
para a dependência da Nuvem Digital a nível superior.
2. LANIER, Jaron, You are Not a Gadget, New-York: Vintage
Books, 2010
Voltemos então
às questões iniciais. É claro que apoiados nos atuais contentores de
inteligência e, especialmente com acesso à grande inteligência da Nuvem onde
tudo está acessível, os atuais alunos universitários são potencialmente os mais
inteligentes da história da humanidade. Em potência, uma vez que a Nuvem é
também uma fonte inesgotável de estupidez (em especial aquela legitimada pela
indexação), mas sobretudo porque, existindo, diminui as faculdades da atenção,
da memória e da imaginação. Em breve, todo esse mega contentor de inteligência
será, senão inacessível, pelo menos inoperacional, uma vez que os humanos terão
perdido os códigos necessários para o compreender, desbravar e aumentar. O
ritmo de produção de conteúdos estúpidos suplanta largamente o ritmo da
reprodução de conteúdos já existentes antes da era da digitalização. Por isso,
e em conclusão, a universidade deve servir para contrariar esta tendência e,
para além de se deixar de sufocar na busca incessante de conhecimento
publicável, deve reforçar o seu papel de guardar, cuidar e divulgar a inteligência
armazenada em milénios de atividade humana. Deve também propiciar os meios para
que os humanos das próximas gerações não percam o contacto e a capacidade de
entenderem esse enorme património.
Universidade e Localidade
Nos
primeiros 500 anos da sua existência (do século onze ao século dezasseis), as
universidades mantiveram uma razoável estabilidade do ponto de vista dos seus
conteúdos, da sua organização e do seu propósito social. Neste período, só o
número de universidades não foi estável. De uma só universidade (Bolonha) em
1088 passou-se a mais de sessenta em 1500. [3] Este fenómeno
foi europeu. Não que outros centros de conhecimento e educação superior não
existissem noutras sociedades e até bem mais avançados, mas, com esta
designação e características, as universidades têm os seus 400 anos iniciais de
existência em exclusividade na Europa. Em 1499, para um total da população
europeia, que rondava os 90 milhões de habitantes, existiam em funcionamento 62
universidades, todas relacionadas no seu nome com a sua cidade de origem. Julgo que todas continuam a funcionar.
3. Penguin History of
Europe
A
primeira ilação que podemos tirar é que existem hoje, na Europa, 62
instituições com mais de 500 anos. Cada uma delas está associada a uma cidade.
Embora fechadas nos perímetros das suas “muralhas”, todas requereram uma
autorização papal. Embora com as suas particularidades, unidas pelo Latim,
pelos poucos livros, por programas semelhantes, no seu conjunto constituíram
uma “universidade cristã” e europeia. Também, todas requereram dinheiro da sua
cidade, dos seus alunos e, às vezes até dos seus professores e muitas vezes do
soberano da região. As universidades medievais (as originais) reuniam a
totalidade (universitá) dos “estudos”
de uma cidade e retribuíam-lhe sob a forma de pessoas formadas em Medicina, em
Teologia, em Direito, e em “Artes” (gramática, retórica e lógica mais
aritmética, astronomia, geometria e música - o trivium e o quadrivium).
O investimento era feito para que a cidade pudesse ter quem lhe governasse a
saúde do espírito, a saúde do corpo, a saúde da sociedade e desenvolvesse algum
conhecimento prático através do quadrivium
e do trivium. Algumas reclamaram
o estatuto de cidades-universidade como Cambridge, Oxford, Heidelberg,
Salamanca ou Coimbra, urbes incapazes de ganhar relevância em qualquer outra actividade,
mas servindo reinos ou regiões dotando-as de gente formada. Algumas, como
Bolonha e Paris, atraíam alunos e mestres de toda a Europa.
Quando
a Renascença se transformou em Modernidade, outras instituições reclamaram
novas formas de organizar o conhecimento e de o promover. No século XVI,
recuperaram a designação antiga de Academia, porque convocavam um novo saber
recuperado, em parte, do espírito da Antiguidade. E, a partir de Florença, onde
se fundou a primeira moderna academia, conquistaram mais uma vez a Europa,
sobretudo através das designações de Academias de Artes, Ciências, Música ou
Letras. Esta foi a primeira grande crise da Universidade que persistiu imóvel
quase até aos finais do séc. XVIII. Sem alarde, a Universidade absorveu ou
esvaziou estas Academias, ao ponto de hoje os professores universitários serem
designados por académicos, de um conjunto de universidades ser designado “a
academia” ou algumas pessoas vestirem trajes “académicos” e, paradoxalmente, as
verdadeiras Academias serem exibidas como instituições retrógradas presas ao
passado do ensino “académico”.
As
universidades passaram, com a expansão dos povos europeus, para o novo mundo e
para o resto do mundo e, de acordo com publicações de referência, ascendem hoje
a 16 mil para 7 mil e quinhentos milhões de pessoas. O conhecido ranking QS
lista 4359 instituições de seis continentes. Se a primeira universidade do Novo
Mundo em Santo Domingo, em 1538, ainda necessitou de uma bula papal, já o
Harvard College, quase um século depois, foi fundado sob os auspícios da
Colónia da baía de Massachussets e batizado com o nome do primeiro dos seus
benfeitores. A famosa universidade iniciou a sua vida como um College, adotando um nome como os colleges de Oxford ou Cambridge, estes
normalmente, de cariz religioso. As universidades do Novo Mundo trouxeram
designações novas não associadas com cidades, mas fortemente enraizadas nas
comunidades geográficas e sociais locais.
Curiosamente,
apesar do seu número, a ideia de uma universidade universal é hoje mais forte
ainda do que no final da Idade Média. Sistemas de “intercâmbio” de estudantes e
docentes, um mercado mundial de conferências, revista científicas, associações
de instituições de educação superior e instrumentos reguladores, como a
“Declaração de Bolonha” e rankings globais, criaram uma mega criatura que se
pode reclamar como “A UNIVERSIDADE” que, cobre todo o mundo, num “justo
equilíbrio” entre características locais e a dominância Anglo-saxónica (como
antes havia a dominância do Papa).
Há,
no entanto, uma persistência da relação entre universidades e lugares. Num
universo de instituições em que as mais prestigiadas atraem os melhores alunos,
os melhores professores e o “melhor dinheiro”, verificamos que as melhores do
mundo são centenárias ou multicentenárias e associadas a uma localidade. Uma
geografia particular e um nome secular continuam a ser importantes devido
sobretudo à irresistível mundialização. Num universo em que todas se comparam
com todas, em que os critérios e a organização tendem para a uniformização, o
caráter distintivo do lugar, do nome e da história faz a diferença porque cria
identidade. Por outro lado, a localidade ou região reforça a sua importância se
contar com uma universidade ou um sistema universitário de prestígio. De entre
essas universidades, algumas deixam-nos boquiabertos com a sua importância
económica. Os custos operacionais da universidade de Harvard foram de 4.5 mil
milhões de dólares em 2016 [4] de acordo com o seu site oficial,
cobertos em um terço por um fundo de doações (para se ter mais ou menos uma
noção do que significa este número, pode dizer-se que equivale aproximadamente
ao volume de vendas de um ano da SONAE SGPS, de acordo com o seu relatório de
contas acessível na internet). Segundo Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI, [5] muitas
universidades americanas têm fundos de doações cujo valor excede os mil milhões
de dólares que, em investimentos alternativos, obtém taxas de 10% ao ano. Neste
lado do Atlântico, o total de doações na Universidade de Cambridge foi de 1 296
913 000 Libras em 2015 segundo o seu relatório oficial de contas [6]. Com os
falhanços sucessivos das “indústrias financeiras”, assistiremos à ascensão e
supremacia da “indústria universitária”? Os críticos do Brexit assinalam as
vantagens que esta “indústria” obteve no Reino Unido com a integração europeia
e, consequentemente, as ameaças que se avizinham com a sua saída da UE.
5. PIKETTY,
Thomas. Capital in the Twenty-First
Century.
As
universidades, em tempos contemporâneos, servem para dotar o seu território de
referência de um cérebro, mas também de um capital de prestígio, conhecimento e
mesmo de dinheiro. E, num país socialmente ainda “pobre”, há que reconhecer que
a universidade tem um papel essencial na ascensão social de um grande número
dos seus habitantes. Ascensão social significa mais riqueza, riqueza para
aqueles(as) que ascenderam e riqueza para a região onde criam, produzem,
consomem e se divertem. Anotamos, então, que existe esta ligação
universidade-território, que é também uma ligação universidade-economia, que se
projecta no futuro. Se nos preocuparmos em prever o futuro, talvez não seja má
ideia, em vez de tentar perceber quais serão as novas coisas que irão aparecer,
assinalar as coisas antigas que se irão manter. A universidade ligada ao
território será uma delas.
Universidade versus Ubersidade
Há algo de
espantoso naquilo a que hoje chamamos “tecnologia”. A primeira razão de estupor
é como a tecnologia é “entitled”,
acha que pode mandar, que todos estão ao seu serviço e que qualquer mudança que
“ela” determine tem que ser cumprida. A tecnologia chega a uma esplanada e
indigna-se de não ser a primeira a ser servida, amesquinha o criado e diz como
é que tudo deveria ser feito. A tecnologia é uma espécie de Gordon Ramsey ou
Lubomir Stanisic da sociedade. Tudo o que é proposto com a legitimidade da
tecnologia nem sequer admite discussão.
A segunda constatação é que aquilo que
chamamos hoje “inovação tecnológica” não passa de um novo modo de usar
tecnologias já existentes. O negócio Uber,
por exemplo, não é uma inovação tecnológica, mas sim a composição “esperta” de
várias tecnologias. Facebook, Instagram e mesmo Google não são, de facto
inovações tecnológicas, são «chico-espertices» que aproveitam tecnologias
existentes.
A terceira
constatação que fazemos é que a “tecnologia” como conceito cultural se
assemelha bastante à “biologia” uma vez que ambas designam algo que sabemos que
funciona no interior de objectos (artificiais ou naturais), mas que se esconde
sob uma capa de “contacto” ou “aparência”. Cada vez mais, a interface entre
objectos e humanos é menos agreste e com uma aparência mais amiga e sobretudo
menos revelador da “tecnologia” que esconde (e, sobretudo, esconde a
infra-estrutura tecnológica que lhes permite funcionar com cabos submarinos de
fibra ótica ou mega servidores localizados na Islândia).
A quarta
constatação é que a “inovação tecnológica” é apresentada como naturalmente
legitimada. Se é tecnológico não se pode contrariar. Isto é, o modo Darwinista
de ver o mundo aceita facilmente que o meu smartphone
é melhor que o meu Nokia e que este era melhor que o meu velhinho Alcatel e
ninguém tem pena destes, simplesmente porque não se adaptaram e,
consequentemente, extinguiram-se, como se extinguiram os dinossauros, o tigre
dentes-de-sabre e tantas outras espécies. Uma biologia ultrapassada deve ceder
espaço a uma biologia mais avançada. Aquilo que raramente consideramos é que o
propósito da evolução natural é a diversidade e não o progresso, e que, no
presente, animais muito antigos como os crocodilos e as baratas coexistem com
espécies mais modernas como o cão ou os humanos. Mas estas são contas de outro
rosário.
A evolução
“tecnológica”, desde o século XIX mas, especialmente, desde o início deste
século, teve um efeito nas cidades e, ao ter um efeito nas cidades, teve-o
especialmente no que a cidade tem de público. Não digo “espaço público” porque
as pessoas começam logo a pensar em praças e jardins. Falo de retrosarias e
drogarias, de quem são os meus vizinhos, de botecos, cinemas e teatros,
autocarros de dois andares que tenham capota e… de um certo tipo de
universidade. O que parece ser claro é que o espaço público, ao desaparecer das
cidades, passou a existir cada vez mais no mundo digital virtual (não por ele
ser digital, mas porque a digitalização facilita não só compressão e arrumação
físicas da informação, mas sobretudo a sua transmissão)
Em 2012, Stephan
Collini, um professor de Literatura da Universidade de Cambridge, explorava uma
ferida institucional ao escrever o livro What are Universities For. [7] Questão da qual
deriva este artigo. Collini não responde à questão e tem mesmo
dificuldade em responder à pergunta “o que é uma universidade?”, mas expõe uma
incomodidade que corresponde ao mal-estar de um grupo importante de atores nas
instituições que dão pelo nome de professores.
Um exemplo desta
incomodidade está expresso na pressão para que os professores desenvolvam
conteúdos digitais que possam ser distribuídos pelo maior número de alunos. O
desenvolvimento de MOOCs, Massive Online Open Courses, desejado por qualquer
administrador universitário, é visto, naturalmente, pelos professores com
suspeição. Os professores intuem, com razão, que virão a ser tão populares como
cantores pop e vão continuar a ser pagos como empregados de limpeza. Mas,
sobretudo, suspeitam que existe uma qualidade no ensino presencial que se perde
nos MOOCs. Mal ou bem, essa qualidade caraterizou a universidade nos últimos
1000 anos. É claro que, apoiada no valor inquestionável da evolução
tecnológica, a opção por MOOCs parece fadada a suplantar a opção tradicional de
obtenção de graus pelo penoso percurso através de idiossincráticos professores
e obscuros assuntos. Uma Ubersidade em que simpáticos professores nos falem
diretamente do ecrã do nosso laptop
ou mesmo do nosso smartphone e nos
avaliem através de múltipla escolha em questionários onde se escolhe o
buraquinho certo para colocar a pintinha preta é irresistível. Esta Ubersidade,
dá-se ao horário dos alunos, à sua conveniência, pagável por cartão de crédito
sem sujeição a sarcasmo, ironia, analogias ou mesmo súbitas explosões de
bibliografia relevante. A Ubersidade permite ao estudante gastar o seu precioso
tempo em atividades muito mais importantes como seguir o movimento nos seus posts no facebook, matar um dragão que o
ameaça, mimetizar comportamentos militares durante as praxes e levar ao extremo
o companheirismo tão próprio da idade através da etilização máxima e de
comportamentos não recomendáveis.
Chegados até
aqui, na terceira parte deste artigo, tenho que reforçar que em nada sou contra
a digitalização do conhecimento. Nem sou contra o uso de suportes tecnológicos
tais como emails, apresentações de
slides em powerpoint ou keynote. (A este propósito também
aconselho uma vista de olhos pelo método dos mnemosine atlas de Aby
Warburg, impossível de usar numa sequência de slides) [8]. O que noto cada
vez mais é uma desumanização do ato de aprender que tem que ser estancada num
certo ponto. Gostaria, portanto, de exigir a presença do humano para guiar
outro humano, presente, nesta divina comédia electrónica.
Conectivismo,
Trans-humanismo, Pós-antropocentrismo, são buzzwords
de um ar do tempo em que as máquinas “inteligentes” participam nos
processos de aprendizagem.
Pós-antropocentrismo leva-nos a aceitar não só outros seres biológicos
como participantes nos processos de aprendizagem e criação, mas também as
máquinas em paridade com os humanos. O Trans-humanismo chama-nos à atenção que
os nossos “poderes” aumentaram com as máquinas e que não faz sentido olhar o
humano per se hoje em dia. O conectivismo
afirma-se como uma doutrina da aprendizagem que entende que as redes são fonte
de conhecimento e que a participação em redes onde os nódulos são pontos
nevrálgicos de aprendizagem, substituiu as visões tradicionais das teorias da
aprendizagem.
George Siemens
foi um dos criadores desta teoria. Podemos ler um seu artigo publicado em 2004
no site “Elearnspace” [9]. Curiosamente,
nesse artigo era anunciado que um website chamado www.connectivism.ca tinha sido criado para explorar este
assunto. Se visitarmos hoje esse website encontramos apenas propaganda a straight
talk coupons (!?). De regresso a Siemens e ao seu artigo de 2004, ele fala
de um índice de obsolescência do conhecimento, que relaciona o conhecimento
publicado e validado num determinado momento com novo conhecimento, melhor ou
diferente do anterior, publicado num momento seguinte. A diminuição deste
índice (half-life of knowledge) é tão acelerada que julgo que em breve o
conhecimento atualizado será publicado antes do desatualizado…
Mas, curiosamente,
o mesmo artigo dá como exemplo, estando na base do conectivismo, a noção de que
quando andámos na universidade nos apoiávamos numa rede de amigos que sabiam
mais disto e daquilo ou descobriam novas ideias ou autores. Tal como, quando
desenvolvemos as nossas carreiras, criamos redes de colegas e participamos em
conferências e congressos. Este era um argumento em favor de uma teoria da
aprendizagem que considerasse a existência das redes electrónicas. No entanto,
ele baseia-se num valor insubstituível do contacto entre humanos nas salas,
refeitórios, bibliotecas, claustros, jardins e bares das universidades e em
toda a cidade que as alberga. E aqui começamos a intuir a terceira função vital
que deve ser atribuída às universidades. A função de que o conhecimento seja
transferido, aumentado e criado entre pessoas. Talvez o melhor que aconteceu à universidade
europeia, desde que S. Tomás de Aquino e Newton aí trabalharam, foi o programa
Erasmus. Talvez também tenha sido o que de melhor sucedeu à Europa desde que a
princesa fenícia foi raptada por Zeus. Neste programa, criaram-se as bases de
um novo cidadão Europeu com a mobilidade de centenas de milhares de estudantes
universitários em idade de aprenderem, de se apaixonarem e fazerem amigos para
a vida. Isto foi feito com as pessoas a mudarem de sítio e não com a tecnologia
a tornar acessível o sítio às pessoas através do seu écran.
Em resumo, as
três funções da universidade são/serão:
1. Cuidar, manter
vivo e divulgar o conhecimento já acumulado.
2. Dotar as
regiões do futuro de liderança intelectual, culta e conhecedora assegurando
ascensão social e cultural a uma grande quantidade de indivíduos.
3. Manter-se como
um espaço de aprendizagem transgeracional entre pessoas.
Talvez outras instituições venham a
existir fazendo exatamente o contrário. É fácil imaginar instituições de Ensino
Superior tão obcecadas com o novo conhecimento que esqueçam o antigo.
Instituições que se queiram tornar “marcas” globais, indiferentes aos
territórios e que se queiram assépticas, promovendo apenas o contacto
electrónico. Estas instituições existirão no futuro, se é que não existem já.
Julgo é que não se deviam designar por universidades.
≡
Imagens
Imagem de capa: http://www.andoverpoliticalreview.com/how-artificial-intelligence-will-benefit-the-wealthy/
1.Mapa da Europa com a indicação das universidades em funcionamento em 1500
segundo Roberts, J.M. The Penguin History
of Europe, (London: Penguin Books, 1996)
2. As mega
regiões da Europa segundo Richard Florida
3. Vistas de
uma das janelas da Bodleian Library, Oxford University, desenho do Autor, 2016
Eduardo Côrte-Real
Eduardo Côrte-Real iniciou a sua
carreira académica em 1984 como monitor de Desenho na Faculdade de Arquitectura
de Lisboa. Doutorou-se em 1999 na mesma universidade depois de períodos de
estudo em Inglaterra e Itália. Desde esse ano até 2005 foi presidente do
conselho de direcção da Escola Superior de Design do IADE e presidente do
Conselho Científico do IADE até 2015. Fundou o centro de investigação UNIDCOM
em 2003 e criou o jornal online “The Radical Designist" em 2007 e o
doutoramento em Design do IADE em 2012 que coordenou até 2015. Ensina
disciplinas projectuais oriundas do Desenho como Desenho de Observação,
Ilustração, Banda Desenhada, Storyboard e teóricas na área da Arte e Cultura
Visual. Foi membro do Executive Board da Cumulus, International Association of
Universities and Colleges of Art, Design and Media entre 2007-2013 e do Council
da Design Research Society entre 2003 e 2012. Publicou inúmeros artigos e três
livros e orientou mais de sessenta estudantes de Mestrado e Doutoramento.
Ficha Técnica
Data de
publicação: 06/11/2017
Ligações
Estudantes \ Giorgio Agamben
A
Produção de conhecimento científico \
Álvaro Domingues