“O Futuro já não é o que era” dizia Arthur C. Clarke, o celebrado autor de “2001:
Odisseia no Espaço”. E é um bom mote
para um comentário crítico tanto à conferência de Steven Pinker («Passado,
presente e futuro da violência»), como ao próprio Fórum do Futuro, que recebeu
o psicólogo americano na sua última sessão, sábado dia 11 de Novembro. O
argumento de Pinker era acessível: desde os primórdios da humanidade até ao dia
de ontem, o grau de violência decorrente das sociedades humanas estabelecia uma
bonita curva descendente tendencialmente zero. Assim afirmavam os abundantes
gráficos e estatísticas, apresentados pelo psicólogo americano. Ora, a questão
não está em rebater esta afirmação (relativamente consensual), mas o argumento
que essa leitura procura construir: a de que a humanidade caminha alegremente
para a erradicação da (sua) violência, numa linha de progresso infinito,
"iluminada" por uma vocação ou um desígnio humanista. Como referiu
Pacheco Pereira, a quem coube a interpelação, poderíamos estar nas vésperas da
I Guerra Mundial a ter exactamente o mesmo debate, baseado nos mesmos dados
estatísticos. Aliás, Michel Foucault contava, como na França do século XIX, se
acreditava que o caminho de ferro seria o garante da paz na Europa, pois
permitiria que finalmente as pessoas se pudessem conhecer, aceitando que as
suas diferenças não seriam assim tão grandes. Ora, o século XX e as duas
Guerras Mundiais encarregaram-se de mostrar os perigos desse tipo de discursos
e de um certo iluminismo espiritual, que faz das estatísticas a sua religião e
da ciência a sua salvação.
Primeiro, não é possível compreender o que é
a violência, hoje e ontem, sem interrogá-la enquanto construção política e
ideológica. Mais do que linhas de progresso infinito, o que temos é a
emergência de um modelo económico e social, o capitalismo, que no primado do
Homem e do Capital, acabou com um certo tipo de violência (pena de morte), não
sem deixar de construir outro tipo de violências, menos “cruéis” é certo, mas
nem por isso menos aterradoras (alterações climáticas, aumento do potencial
aniquilador do armamento). Podemos dizer, até, que o capitalismo internaliza a
violência ou não fossem a ansiedade, a depressão, doenças crónicas do
capitalismo. Pinker não consegue definir a sua concepção de violência. Tenta
operar uma diferença entre violência directa e indirecta que é claramente
sintomática da ambiguidade em que se coloca. Nas suas estatísticas faz uma
mixórdia de violências de natureza muito diferente: guerras civis, guerras
mundiais, violência doméstica, pena de morte, violências contra animais (a
partir de animais maltratados em filmes de Hollywood). Neste último caso,
procura invocar uma narrativa de bons tratos da humanidade aos animais, quando,
segundo artigos científicos da Nature, o ritmo de redução de espécies por acção
directa do homem, aumentou de forma gigantesca.
Segundo, ao não assumir a violência como
construção política e ideológica, Pinker recusa qualquer posicionamento, refugiando-se
na neutralidade da ciência, porque, afinal de contas, ele limitava-se a
apresentar estatísticas e factos. O que é, desde logo, o sinal máximo da
ideologia em funcionamento: isto é, a ideologia das estatísticas. A
"crença" que estas são segmentos perfeitos de verdade, cópias da realidade
ou mesmo a própria realidade. Como se elas não fossem sempre mobilizadas,
montadas, recortadas para servir uma certa estratégia de acção sobre esse real.
As estatísticas calam qualquer debate, é certo. Não há argumentos contra
estatísticas. Mas todos sabemos que há sempre uma estatística que pode
corroborar mesmo o mais delirante dos argumentos.
O ponto perigoso dessa operação ideológica
está bem presente no gráfico que mostrava o crescimento exponencial dos países
democráticos nos últimos séculos. Mas que tipo de conhecimento isso nos dá,
afinal? Angola, por exemplo, é uma democracia. E, portanto, qual é a qualidade
dessa democracia? Numa altura em que as noticias acerca dos "Paradise
papers" e dos "Panama papers" demonstram cada vez mais como as
democracias estão instrumentalizadas por uma economia global que extrai a sua
produção de riqueza, como se coloca estatisticamente a qualidade dessa
democracia? A estas perguntas Pinker não pode responder, porque ele, na
verdade, não é um cientista, mas um sacerdote. Um cientista reconhece as
múltiplas dimensões dos objectos que estuda e a sua própria posição no processo
de investigação. Um sacerdote, não. Basta uma narrativa simples e uma palavra
de esperança e de fé na humanidade e no homem, para que tudo possa seguir com
normalidade. A questão é que aquilo que fica de ciência, aqui, é muito pouco. E
o que fica de conhecimento também.
A performance mais patética do que
peripatética de Hamish Fulton no final da conferência, apenas confirma que o
Fórum do Futuro tende a ser mais um Summit
de entretenimento cultural para uma burguesia entediada do que aquele espaço
aberto de debate de ideias não prescritas que o presidente da Câmara do Porto Rui
Moreira tanto reivindicava no início da sessão. Infelizmente, o nível
intelectual da sessão de Pinker foi zero. Mas a operação ideológica que ele
desdobra, essa é perigosa: construir uma narrativa de progresso que não serve
para mais nada do que nos afastar de uma critica consistente ao nosso tempo, de
uma interpelação problemática e perturbadora daquilo que nos rodeia, das
contradições e limites dos modelos sociais e económicos que damos por
garantidos, usando a neutralidade da ciência e a sua objectividade para cobrir
uma operação puramente místico-ideológica.
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Pedro Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto.
Imagem
Fórum do Futuro 2017.
Ficha Técnica
Data de
publicação: 22.11.2017
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