Resenhas sobre as dinâmicas urbanas de Lisboa devem ser
uma tarefa contínua, assinalando sentidos e contaminando curiosidades a ser
saciadas pelos interessados. Para isso: qualquer espaço é tudo. E falamos de
Lisboa, não como Concelho, mas como uma rede fluxos de interesse recíproco, o
espaço denominado administrativamente por Área Metropolitana de Lisboa, com
perto de três milhões de habitantes ou; como já se admite, embora sem natureza
formal, uma geografia de interacção e interdependência com quatro milhões e cem
mil habitantes: o Arco Metropolitano de Lisboa (Ribeiro, Moura e Chorincas:
2016). De facto, o Concelho de Lisboa, corresponde quase na sua totalidade a um
centro (histórico, político, económico, financeiro, cultural e científico) do
espaço e geografia mencionados e, embora a sua população quase dobre durante o
dia (CML: 2014), a sua população residente aspira aproximadamente a apenas um sexto
do total das áreas de interdependência.
Desse modo, transferir a guerra da atenção para o todo é
elementar exercício para compreensão das dinâmicas da cidade. No entanto, nesta
Lisboa do todo, é com alguma naturalidade que o campo de análise geográfico se
divida facilmente entre centro e periferia, essencialmente por questões
estruturais, a ver: a) O lugar que corresponde ao centro histórico de Lisboa é
densamente habitado há centenas de anos, bem como os seus instrumentos de poder
e decisão; b) As principais pistas de alinhamento da cidade-concelho foram
desenhadas por planos gerais [1] consolidando hegemonias dos seus
tempos; c) Os concelhos da restante Área Metropolitana alojaram centenas de
milhares de pessoas em poucas décadas; d) A frente dessa expansão foi liderada
por: promotores imobiliários/construtores civis [2]; movimentos de autoconstrução mais ou menos precários e;
alguns programas de fomento à habitação, mais tarde de realojamento [3]; e) Por fim, a
permanente ausência de uma forma de governação integrada de toda essa Lisboa.
1. Ex: Baixa Pombalina e Plano Geral de Melhoramentos da Cidade (vulgo:
Plano Ressano Garcia).
2. É comumente citado o caso de J. Pimenta.
3. As políticas de cidades em Portugal são tardias e foram essencialmente
promovidas após a adesão à Comunidade Económica Europeia, através de programas
operacionais como o Urban e o Polis.
Para uma observação atenta das transformações recentes de
Lisboa não podemos alhearmo-nos de dois momentos importantes dos últimos anos:
a crise internacional do sub-prime de
2008 e a assinatura do memorando da Troika pelo governo português em 2011.
Essas efemérides tiveram o condão de transformar: a retórica, as políticas e o
mercado; elementos a ser considerados nas dinâmicas recentes da cidade. Por
toda a Lisboa, embora com predominância nos anéis periféricos, uma serie de
territórios e bairros, na transição da predominância económica da cidade do
segundo sector para um terceiro, passaram a ser classificados por entidades
públicas (Governo e instituições públicas, Câmaras Municipais, forças da ordem)
como: prioritários, críticos, desafiantes, perigosos; dependendo das opções
conceptuais.
A esses territórios e bairros correspondem essencialmente espaços da
intensa imigração para Lisboa: êxodo rural das décadas de cinquenta e sessenta
do século XX e, imigração (incluindo retornados) de países africanos a partir
da década de setenta do mesmo século; num total de centenas de milhares de
pessoas. Materializam-se em cooperativas; bairros de fomento de habitação e
realojamento; os ditos de génese ilegal e; de arrendamento livre, mas com o
valor de mercado depreciado. Esses territórios raramente são avaliados pela sua
potência e são sinalizados para classificação através factores depreciativos:
condição urbana à margem da lei; elevada percentagem de receptores de subsídios
sociais, baixos graus de escolaridade, taxas de desemprego acima da média e
até, por percentagens elevadas de descendentes de imigrantes [4]. Dá-se muito pouca
atenção a estes territórios a não ser pelos factores estereotipados da sua
classificação. São os territórios mais jovens da cidade com profundo
conhecimento de fruição cultural. Pese embora, e à luz da expressão de alguns
dos seus moradores, que se possa admitir que esses territórios têm uma
experiência de crise permanente; a verdade é que a oficialização da dita por
momentos políticos fez corresponder uma concreta pioria das condições de vida.
4. A interessante contradição de sinalizar depreciativamente uma condição
inerente a Lisboa.
No que respeita à habitação, houve um aumento generalizado das rendas dos fogos sociais e despejos (quer em habitação social ou em bairros ainda por regularizar); na mobilidade, cessou-se o passe social universal sendo as agregações responsabilidade apenas dos operadores e houve um aumento geral das tarifas [5]; na segurança, fazem-se propostas de instalação de câmaras de vigilância [6] nas imediações dos bairros e os cercos da Unidade Especial de Policia passam a ser a rotina que substitui o normal policiamento; nas políticas sociais, houve um recuo generalizado de acesso às diversas prestações (Rendimento Social de Inserção, Subsídio de Desemprego, Abono de Família); na educação, as escolas que servem os territórios oferecem cada vez menos o ensino regular empurrando os jovens para os cursos profissionais [7]. Todos estes elementos atingem os habitantes de forma combinada, pondo em risco as práticas de cidadania. Acrescente-se que para muitos moradores desses territórios o acesso à nacionalidade e à documentação de permanência no país mantém-se dificultada, com o perigo de deportação mais iminente a partir da aprovação da Lei 29/2012 [8]. Em muitas das freguesias onde estão inseridos, o nível de participação em eleições autárquicas – tradicionalmente as mais concorridas – já caiu para perto de 1/3 dos eleitores.
5. A título de exemplo, um bilhete avulso na ScottUrb que actua no Concelho
de Cascais é de 3€25.
7. Consultar para o efeito, as investigações de Cristina Roldão e Pedro
Abrantes.
8. Impõe a possibilidade de deportação no caso de condenação a 1 ano de
prisão, mesmo que suspensa.
A omissão positiva de interesse público e privado nestes territórios tem
tido como resposta por parte dos seus moradores o exercício do comum. Associado
a uma cultura de resistência, essas práticas realizam-se através de redes de
solidariedade: toto-caixa [9], caixas fúnebres; por práticas de economia doméstica/comunitária: hortas
urbanas, trocas directas, estabelecimentos e serviços improvisados (cafés,
barbearias, estúdios de música, etc.); numa forma de organização que passa por
esquemas colectivos de filiação múltipla. Apesar da prática do comum não
conseguir colmatar todas as privações, são princípios de participação e
construção colectiva que não são entendidos pelas instituições, apenas
tolerados e por vezes negados com punição [10]. E se alguma da realidade nos concelhos periféricos
perdura no tempo e carece de atenção; o panorama do centro desta Lisboa parece
mais vibrante do que nunca. Batem-se recordes de visitas e estadias, a cidade
aparece referenciada em vários prémios turísticos, publicações internacionais
reportam a cidade, personalidades mundiais aconselham uma visita. Todo este
cenário aparece associado a empreitadas de reabilitação dos seus antigos
edifícios.
9. Uma mutualidade informal com tradição em África Ocidental.
Se esta imagem parece oposta à situação anterior, em que
abundavam prédios degradados e devolutos; a verdade é que o motor de ambas é o
mesmo: a especulação. Durante décadas, o motor do mercado imobiliário em Lisboa
(e também noutros centros urbanos do País) dependia da volumetria. Assim, os
promotores imobiliários (dos construtores civis aos fundos de investimento)
optavam construir de raiz, ou, em caso de propriedade sobre imóveis antigos,
prefeririam que os mesmos colapsassem ao invés de se submeterem às regras da
reabilitação [11]. Criou-se um status quo na
cidade que permitia milhões de euros de mais valias num curto espaço de tempo
pela transmissão de imóveis devolutos ou em ruínas.
11. Ler a título de exemplo “Lisboa Abandonada: 5 mil edifícios devolutos”
in Visão.
Se actualmente, pelo ritmo das transformações, o centro
possa parecer renovado [12], a verdade é que o acesso aos méritos da cidade e a um bem comum continua
inacessível à grande maioria dos seus actuais e futuros habitantes. Esta
mudança de paradigma das práticas da especulação, são essencialmente
consequência da assinatura do já citado memorando da Troika, em que um dos seus
capítulos era inteiramente dedicado à liberalização do mercado de arrendamento. Formulou-se então, a Nova Lei do Arrendamento
Urbano (NRAU) [13], em vigor desde 2012. Ora, num país onde 80% dos seus habitantes vive em
casa própria [14], esta lei vai incidir essencialmente no centro das cidades, onde a
percentagem de arrendamento é superior. A esta medida, somaram-se outras de
carácter político, comumente conhecidas como “Reformados Gold” [15] e “Golden Visa”.
12. Parece-me um conceito mais adequado à situação do que o da reabilitação.
13. Para melhor compreensão da Lei NRAU:
15. Através do estatuto de Residente Não Habitual, medidas de isenção de
impostos por um prazo de 10 anos (prolongável), no caso de domiciliação fiscal
em Portugal.
É deste modo que o centro de Lisboa passa a ser o novo
motor de acumulação de capital da economia terciária. Os primeiros sinais
públicos destas modificações, fizeram-se sentir na Baixa Pombalina durante o
ano de 2013, com o encerramento de vários estabelecimentos comerciais ditos
tradicionais. A NRAU permite o despejo de comerciantes e moradores no caso de o
imóvel ser requalificado, ou seja, cambiar de funções. Como a lei prevê essa oportunidade
de forma unilateral e sem negociações, a situação dos comerciantes da Baixa
Pombalina foi a primeira de prejudicados de que se tenha tido notável
conhecimento público; porque os fundos imobiliários seus proprietários, na sua
maioria, entregaram pedidos para licenciamento de unidades hoteleiras [16]. Foi a partir de
2014, com a consolidação internacional dos Golden Visa e “Reformados Gold”, que
as restantes oportunidades da NRAU, nomeadamente a facilidade de rescisão de
contrato e de despejo, começaram a ter impacto na cidade, não só no aumento dos
preços (entre 30 a 40% [17]) dos arrendamentos como no recuo de 30% da sua oferta [18].
Como referiu Pedro Bingre do Amaral no debate Quem Vai Poder Morar em Lisboa?, a cidade é agora um off shore de reformados de países com
rendimentos bastante superiores aos de Portugal e de investidores de mercados
emergentes em retracção; que fazem a retoma do investimento transformando os
imóveis em alugueres de curta duração. É bastante diferente serem os habitantes
de uma cidade a organizarem-se para recepcionar um elevado fluxo de turistas,
dinamizando uma economia da partilha mais redistributiva (ainda assim tentado
por alguns), do que essa acção estar na incumbência de um número restrito de
especuladores. Nesta Lisboa do todo, de centros e periferias, cidade e
cidadania parecem cada vez mais afastados. Do actual distanciamento brutal
entre a máquina administrativo-política e a realidade de todos os dias, devem
ser os moradores da cidade a mobilizarem-se para criar as tendências das
soluções que possam vir a existir.
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Referências
Câmara Municipal de Lisboa, (2014), A Economia de Lisboa em Números.
Lisboa: CML.
Ribeiro, J.; Moura, F.; Chorincas, J.; (2016), Uma Metrópole para o
Atlântico. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Quem vai poder Morar em Lisboa?, Debate e texto de diagnóstico: http://www.revistapunkto.com/search?q=morar+em+lisboa&x=0&y=0
Imagens
Fotografias do autor do texto.
António Brito
Guterres
Investigador ISCTE - Dinâmia-Cet;
desenvolve projectos territoriais na Área Metropolitana de Lisboa.
Ficha Técnica
Data de publicação:
28.09.2017