Este texto surge no
seguimento da reportagem «Siza Vieira volta 40 anos depois ao
coração do Porto», publicada na rubrica “Portugal Genial”, do
magazine «Imagens de Marca» dedicado ao branding
e com emissão na SIC Notícias. Importa, para o tema que se expõe, enunciar que Branding — com origem em brand, de seu significado queimar, ou marcar a ferro quente — é a acção que constitui a identificação da
qualidade ou propriedade de determinada coisa (ou ser). Afigura-se importante
entender este significado de modo a olharmos de forma crítica para o Porto e
para a marca Porto, uma marca política que procura dar um significado à cidade
contemporânea de origens antigas e mui
nobres e que vê em iniciativas como a que apresentamos exemplos da sua
aplicação. «Siza Vieira volta 40 anos depois ao coração do Porto» é uma
reportagem sobre um recente investimento da Pedra Líquida: a compra de três
ilhas no Monte da Lapa, para reabilitação e dinamização de uma ideia de negócio
onde “o turismo tradicional (...) fosse de alguma maneira substituído por uma
intervenção que mantivesse as pessoas que vivem no coração do Porto, portanto,
na habitação dita operária e que pudesse misturá-la com os visitantes da
cidade” [1], afirma um dos fundadores da
empresa.
1. «Siza Vieira volta 40 anos depois ao coração do Porto».
Este texto não quer,
porém, ser apenas sobre este caso em particular, mas permitir, a partir dele, a
extrapolação para outros. Apesar de um dos impulsionadores desta proposta
entender este investimento como de risco, porque “não é muito tradicional
escolher lugares destes como lugares turísticos” [2], a realidade já esteve mais longe de ser esta. O
interesse especulativo por estas estruturas habitacionais existe e está em fase
de crescimento. Não são raros os casos de aquisição e consequente transformação
destas construções em alojamento local, onde o cruzamento entre city-tenants e city-users já existe. [3]
2. Idem.
3. Na reportagem, Nuno Grande identifica city-tenants como os habitantes da cidade e city-users os visitantes.
A título de exemplo, podemos
referir a “Ilha da Glória”, proposta de Tiago Guimarães que comprou uma série
de casas da zona da Rua da Glória para recuperar e pôr no mercado do alojamento
local. Estas casas mantêm a estrutura original e são compostas de um piso de
entrada onde está a casa de banho, um sofá-cama, uma pequena mesa de refeições e
dois módulos de cozinha (um para o micro-ondas, outro para a pia), e um
mezanino que serve de quarto. Os preços por noite rondam os 60 euros. Os
moradores da ilha mantêm-se, sem ser claro que tenha havido intervenção nas suas
casas. Tiago também diz não querer “expulsar
os moradores, porque o objectivo é as pessoas estarem cá. Mesmo não falando a
língua eles vão abrir a porta, dar de comer e beber, perguntar se querem que
lhes lavem a roupa” [4]. Ainda na Rua de São Victor, podemos encontrar o recente
“99 Coloured Socks — Apartments”, uma
ilha totalmente recuperada para alojamento local, onde o preço mais barato são
90 euros, mas ascende aos 191 euros, quando alojando 6 pessoas. Pelo que se
sabe, o investidor realojou os moradores desta ilha numa outra da mesma rua e
assumiu as despesas da recuperação destas casas.
4. Tiago Guimarães, “As ilhas do Porto entraram na rota do alojamento
turístico”, Jornal Público, 2017.
No caso da proposta
da Pedra Líquida, contextualizando, a iniciativa prevê a conversão das ilhas em espaços habitáveis com melhores
condições para os moradores, em espaços de residência para estudantes e numa pousada
com 6 quartos para turistas. Apesar dos investidores manterem os actuais habitantes da ilha, sugerindo,
inclusivamente, a possível integração laboral de “duas ou três pessoas”[5] no funcionamento do estabelecimento, é inevitável que
surjam questões sobre o que é que legitima quem e o quê. Entramos aqui na questão do social enquanto discurso e
não como prática.
5. Alexandra Grande em: http://videos.sapo.pt/zZbZgulsypCwzFE9j8NZ
Num segundo vídeo que
tem o Monte da Lapa como cenário, surge outro dos fundadores da Pedra Líquida a
apresentar-nos as preocupações e implicações de um projecto desta natureza: conhecer
os moradores, amenizar as suas preocupações relacionadas com aumentos de renda
e despejos, entrar em contacto com a realidade destas pessoas, a quem é
assegurada a permanência depois das obras de melhoramento das condições das
suas casas. Não se coloca em questão,
nem se duvida, que esta proposta melhorará efectivamente as condições de habitabilidade
dos moradores da ilha. Mas com que intuito? Num artigo da autoria de Sarah Kendzior, intitulado “The peril
of hipster economics” lê-se a dada altura: «Os gentrificadores focam-se na
estética e não nas pessoas. Porque, para eles, pessoas são estética». E esta é
a questão que preocupa neste tipo de iniciativas. Torna-se difícil fugir à
missiva de Kendzior, quando somos confrontados com declarações como a dos
autores que afirmam que “as pessoas aqui são
tão importantes como o edificado, ou mais, porque são elas que depois dão o
carácter particular que este lugar tem” [6]. Lugar onde se quer colocar turistas. Lugar onde se
explora a vida dos habitantes para dar um ar do pitoresco, do very typical. Já não se trata apenas de
um processo de museificação da
cidade, mas de museificação dos seus
próprios habitantes. É uma espécie de turismo
dos modos de vida, em que a estadia do turista é passada no mesmo contexto
dos habitantes da ilha, de modo a que estes, supostamente, se integrem e deixem
contaminar para, assim, compreenderem a cidade. Ou seja, é o uso dos habitantes
como parte do negócio que legitima a experiência que se vende.
Não é apenas a
conversão dos habitantes das ilhas em mercadoria para a indústria do turismo,
como figurantes de um cenário do turismo dos modos de vida, que, quanto a nós,
deve ser questionado. Mas a transformação, para usar e expressão de Henri Lefebvre,
do consumo do espaço em espaço do
consumo. Vendendo uma versão branqueada da realidade, onde se dissimula a dimensão
social e política das ilhas enquanto lugares de pobreza. A estetização da
pobreza no campo do turismo não é novidade. No caso da reabilitação das ilhas
para turismo com a manutenção dos seus habitantes, ficciona-se um discurso em
torno do que é viver nelas, criando-se um discurso público mitificado. Esta
máscara é usada numa lógica mercantil, com o objectivo de criar valor e gerar
mais-valia. Talvez as palavras de Lefebvre esclareçam melhor a razão pela qual
estas iniciativas contribuem para a criação da cidade enquanto parque temático:
«a cidade, historicamente construída não mais vivida nem entendida na prática.
É apenas um objecto de consumo cultural para turistas, para um esteticismo
ávido de espectáculos e do pitoresco. Mesmo para aqueles que procuram entendê-la
com afecto, desapareceu.» [7]
7. Henri Lefebvre, The Right to
the city, Blackwell Publishers, 1996, p.148.
«A decadência urbana torna-se parte de um cenário para ser remodelado ou
romantizado.» [8]
As ilhas podem e
devem ser recuperadas, melhorando as condições de habitabilidade e
potencializando os seus espaços interiores. Os problemas mais evidentes são as
diminutas áreas das casas, a falta de quartos de banho no seu interior, as infra-estruturas
deficientes ou inexistentes, aos quais se somam as famílias numerosas que
habitavam estes espaços. Hoje em dia a realidade é diferente: os habitantes das
ilhas não são tão numerosos, construíram-se conforme se podia casas de banho
nos interiores, aumentaram-se as áreas através de construções informais. A
única forma de transmitir a realidade de viver numa ilha seria se a estadia dos
turistas fosse passada nas condições habitacionais em que a maior parte das
ilhas se encontra. Naturalmente, essa exploração também não é desejável. Ainda
assim, o que parece pretender-se com este turismo
dos modos de vida é uma espécie de romantização ou teatralização da pobreza.
8. Sarah Kendzior, The peril of hipsters economics.
Aljazeera, 2014.
Defendemos que a
reabilitação das ilhas pode ajudar a resolver o problema da habitação na cidade
do Porto. Não se trata apenas de reduzir o número de casas: é necessário pensar
as estruturas enquanto quarteirões que se podem interligar e ter zonas comuns,
espaços exteriores para se ser criança e adulto. No fundo possibilitar a
convivência, quando não se quer isolamento. A tipologia da ilha oferece um
carácter que não existe na construção em altura. As ilhas promovem relações de
convivência e de vizinhança inter-geracionais. A sua distribuição horizontal estimula
um sentimento de pertença a um lugar que é maior do que o perímetro da casa. Há
um sentimento de propriedade afectiva ao bairro, à rua primeiro interna e
depois pública, onde se encontram o comércio e os serviços. A estrutura das
ilhas existe em concomitância com a estrutura horizontal de circulação da
cidade. É essencial o estudo e reconhecimento das tipologias formais, das
possibilidades oferecidas por este tipo de espaços na sua relação interna e com
a rua, e evidenciá-los.
O que fazemos das ilhas,
ao recuperá-las enquanto património tipológico da cidade, é que poderá
trazer-nos o orgulho de manter a estrutura tradicional viva e com as suas
qualidades potenciadas, reescrevendo a sua história e tornando-as espaços com
qualidade para os seus moradores, em vez de perpetuar uma narrativa de graves
problemas sociais. Porque as ilhas não podem ser analisadas apenas do seu ponto de vista
formal. Precisamos de uma visão global, de uma estratégia capaz de compreender
as características socio-espaciais e territoriais e propor uma intervenção orientada
à questão. Acupunturas mercantis que se cingem ao limite do quarteirão não só
não são uma solução, como são traiçoeiras.
Naturalmente, as
opiniões sobre como agir, o que é melhor ou pior, são diversas. No caso da
Pedra Líquida, sabemos que o discurso sobre a reabilitação da cidade não é novo.
Nuno Grande já defendeu antes a necessidade de uma “reabilitação coerente do
tecido habitacional do centro urbano, que permita fixar cidadãos e city-users aos lugares já dinamizados” [9]. Mas as interrogações que surgem imediatamente são: que
percentagem está a ser dedicada à fixação de city-tenants ou ao usufruto dos city-users?
É na disparidade percentual que pode residir um dos focos do problema: quando esta
é superior para os city-users
contribui para a “periferização e disneyficação
do centro tradicional, revelando-se incapaz de promover uma oferta habitacional
diversificada, cosmopolita e interclassista”[10], para pormos em confronto duas afirmações do autor.
9. Nuno Grande, “A cidade, entre o efeito Barcelona e o efeito Bilbao. O
exemplo do Porto.” Revista Punkto, 2013.
10. Idem.
Talvez o objectivo da
Pedra Líquida seja exactamente o de recuperar estes espaços de modo a reforçar a
sua tipologia, sentimento de pertença, de comunidade e espaço colectivo, com as
condições estruturantes da habitabilidade asseguradas. Mas assim, a partilha
que se gera com os city-users não é a
dos modos de vida sobre os quais se escreveu a história das ilhas e a
autenticidade das suas gentes. É algo novo e diferente: pode ser um passo em
frente para os habitantes, mas o que acontece depois da última geração de moradores
das ilhas? Ou quando o turismo abrandar? Em que é que estes espaços se
transformam? Em mercado turístico, em habitações temporárias para estudantes,
em habitações permanentes? De que modo podemos ajudar a resolver a questão da
habitação através da intervenção nas ilhas? Uma visão interclassista significa
que os lugares de estadia dos turistas sejam o dos habitantes de recursos
escassos? Não será hora de pensar que interclassista seria recuperar estas
estruturas habitacionais num sentido de condensador
social, tentando usar a metodologia de desenho para influenciar
comportamentos sociais, abolir hierarquias, num esforço para criar espaços de
equidade social?
Receio que vender
experiências de modos de vida, seja apenas mais uma forma de capitalizar a
marca que se procura legitimar. É o que acontece, por exemplo, ao convidar
Álvaro Siza para ser o autor do projecto de reabilitação para o Monte da Lapa pela
sua relação com o processo SAAL. Reunir um conjunto de significantes é uma
forma de tentar fundamentar uma intervenção que em si nada tem a ver com as
origens das suas referências. A existência de um problema social não se resolve
apenas com o melhoramento das condições das casas. Embelezar as casas não faz
com que os problemas sociais, nomeadamente as carências económicas e de
protecção social, as despesas com a educação e saúde e a exclusão social, entre
outros, desapareçam. A arquitectura não pode insistir na presunção de achar que
consegue, sozinha, melhorar a vida das pessoas. A arquitectura não controla a
vida que acontece no seu interior. Por isso, não podemos deixar que uma imagem
substitua uma intervenção social de carácter político, necessária para fazer
face a estes casos. Por estas razões, é imperativo desmontar a ideia de que se
está a construir um equilíbrio entre o campo social e o mercado, usando, ainda
por cima, a arquitectura como seu instrumento.
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Imagens
1. Fotografia de Maria Helena Borges, autora da tese de mestrado «Das
ilhas. Possibilidade dos agentes de uma realidade participarem na criação do
repertório imagético que pretende documentá-la». Tese disponível para consulta aqui.
2. Fotografia da página “MortoPonto”
Joana Coutinh0
Joana Coutinho (Porto,1989). Em 2015
conclui mestrado em arquitectura na FAUP. Entra em contacto com colectivos que
reivindicam o direito à cidade e à habitação durante o período em que estuda no
IUAV, em Veneza. Colabora, entre momentos mais formais e mais informais, com o
Habitar Porto, desde 2016.
Ficha Técnica
Data de publicação: 11.09.2017