As questões relativas ao acesso
à habitação nas grandes cidades pareceram tornar-se críticas nos últimos anos,
assumindo um destaque inédito dentro da esfera pública. Bairros onde as rendas
eram outrora acessíveis a largas camadas da população assistiram a uma
especulação inédita em redor do preço das casas, tornando evidente uma continua
recomposição destrutiva dos modos de vida nas cidades.
O fenómeno é global: São
Francisco, Cidade do México, Barcelona, Porto, Lisboa. Inúmeras outras cidades.
No entanto, o conjunto de fenómenos que se vocacionou chamar gentrificação não é um fenómeno novo. Na
sua versão presente, esta ganha corpo com a revalorização dos centros urbanos nos
Estados Unidos a partir dos anos 80, ligada à emergência das "economias
criativas" e de uma classe profissional relativamente abastada que, em
ruptura com o conservadorismo cultural das gerações anteriores, aprecia a
diversidade cultural, étnica e social do centro da cidade e entende esses
elementos enquanto contextos apelativos. A difusão dessas formas socioculturais
emergentes torna-se global com a ideia das "cidades criativas",
reabilitando a ideia de urbanidade aos olhos dos estratos médios das classes
profissionais. No entanto, é apenas após a crise de 2008 que se torna notória a
globalização desta dinâmica a outras cidades que não os centros nevrálgicos do
capitalismo mundial. A dinâmica por trás das transformações urbanas deixa de
ter enquanto móbil principal as alterações dentro da composição sectorial do
capital para passar a espelhar, de modo mais brutal, as urgências do capital
financeiro.
A gentrificação contemporânea,
contrariamente à opinião generalizada, prende-se menos do que seria de se
esperar com as flutuações do mercado habitacional.[1] A economia
vulgar afirma que os preços das mercadorias são determinados pelas flutuações
na procura e na oferta, e que portanto seria o fluxo anormal de elementos
estranhos à economia local que provocaria a escalada de preços: turismo,
alojamento temporário, residentes estrangeiros, afluência da classe média-alta
ao centro da cidade, etc. Todos estes elementos contribuem, certamente, a influenciar
os preços, mas a determinação do preço dos imóveis obedece a regras mais
complexas. Parte do valor de uma casa é definido pela expectativa de
rentabilidade que lhe pode ser periodicamente extraída. Esse valor,
especulativo, de rendas futuras, é incluído na determinação do preço final do
imóvel. Esta dimensão tem como agentes os grupos económicos que transacionam
produtos precisamente na base do seu valor especulativo, ou seja, a expectativa
de retorno do investimento não vem exclusivamente das rendas futuras, mas também
da possibilidade de nova transação do imóvel e da mais-valia especulativa que
lhe está associada. Ao gerar-se uma bolha imobiliária, os imóveis são transacionados
a preços bastante superiores aqueles que seriam idealmente determinados pela
economia "real". Ora, a crise económica e financeira de 2008 veio sublinhar
a queda global das taxas de lucro. Ante uma crise generalizada de rentabilidade
dos vários sectores industriais e financeiros, os grandes grupos financeiros
têm à sua disposição poucas opções minimamente seguras de rentabilização do seu
capital. Dada a necessidade imperativa de contínuo reinvestimento, as agências
financeiras encontram sérias dificuldades na altura de saber onde investir. É
neste panorama que a esfera imobiliária surge enquanto refúgio de quantias cada
vez maiores de dinheiro.[2] Ao ser, desde tempos antigos, uma esfera de investimento
relativamente "seguro", os fluxos internacionais de capital encontram
no mercado imobiliário urbano um local onde "estacionar" dinheiro
enquanto não surgem melhores hipóteses de investimento. Ao tornar-se um foco de
investimento globalmente apetecível, capaz de atrair capital estrangeiro, o
índice de rentabilidade do parque habitacional sobe, e como tal os preços de
aluguer e de venda sobem proporcionalmente. O aumento dos preços não decorre
apenas de uma desvirtuação do mercado por elementos exteriores (turistas,
estrangeiros, imigrantes, etc.) mas sim de um uso especulativo pelos mercados.
1. gegen-kapital-und-nation.org/en/gentrification-economy-land-and-role-politics/
2. peoplespolicyproject.org/2017/08/09/massive-rise-of-top-incomes-is-mostly-driven-by-capital/
Quando se reclama um regresso à
antiga economia da cidade, ou quando se avança a demanda por uma outra regulamentação
da economia da habitação, estamos então a incorrer em dois problemas: o
primeiro é a naturalização das relações de propriedade que antecederam a
alegada "desvirtuação do mercado"; o segundo é a aceitação da crença
na actividade regulatória dos mercados, ou seja, na ideia de que a proteção do
direito à habitação passa pela defesa dos mercados de elementos a si
estrangeiros - sejam estes locatários socialmente indesejáveis que baixam os
valores das propriedades ou compradores abonados que aumentam demasiado os
níveis de entrada no mercado.
A cidade moderna, tal como a conhecemos,
tal como a conheceram os nossos avós, desenvolveu-se de forma contemporânea e
orgânica ao capitalismo. Ela surge, transforma-se, multiplica-se e expande-se
ao sabor dos fluxos económicos e políticos que concentram trabalhadores num
determinado território, e que, em sentido contrário, fazem surgir dessa
concentração a promessa emancipatória do dissolver dos constrangimentos sociais
e políticos tradicionais. A cidade moderna capitalista é por excelência o palco
onde a luta de classes se desenrola diariamente: se num canto o poder demole
bairros inteiros para dar lugar a avenidas largas, no outro os habitantes
organizam-se para tornar comuns terrenos abandonados; se num bairro o poder
local e interesses privados se organizam para dar lugar a uma onda de
gentrificação a partir de novos equipamentos artísticos e culturais, no outro,
populações excluídas começam a desenhar e a inventar as suas próprias
linguagens criativas.
O que surge de relativamente
inédito, nas últimas décadas, é que os processos comuns que os habitantes das
cidades organizaram entre si se tornam eles próprios numa mercadoria. As
subculturas urbanas -- do Punk ao Hip Hop; a ocupação espontânea das praças por
jovens; as manifestações culturais das minorias étnicas e sexuais; a vida
boémia dos artistas e dos marginais; a emancipação sexual, etc. Todas estas expressões
de formas de vida que procuravam construir um mundo para além da cultura do
trabalho e do dinheiro foram absorvidas pelo capital. O outro lado de tudo se
ter tornado mercadoria, da dita "sociedade do consumo", é que todos
nos tornámos produtores - todos somos proletários em todos os momentos da vida.
As relações sociais e culturais urbanas tornaram-se um campo de comercialização.
Apesar de este ser um processo que se instala dentro de relações sociais de
produção previamente existentes, o capitalismo moderno acabou por se tornar numa
força social que criou o seu próprio mundo, que desenhou o seu território, que
planeou os modos de nele circular. Uma força centrifuga que gira sobre si
própria, procurando atrair tudo o tenta escapar dela de novo para o seu centro.
A cidade moderna desenhou-se enquanto expressão material, física e concreta do
capitalismo, inscrevendo em cada seu canto e recanto as contradições inerentes
a esse modo de produção.
As culturas urbanas foram
durante séculos culturas de resistência. Era nas cidades que os homens e as
mulheres do campo podiam fugir aos pesados constrangimentos patriarcais das
sociedades rurais, era ali que podiam conquistar uma possibilidade de
sobrevivência para lá da vassalagem feudal ou familiar. Era na cidade que se
concentravam milhares de trabalhadores industriais e onde surgiam os locais de
convívio que serviram de palco à emergência dos primeiros movimentos
revolucionários. Foi nas cidades que aqueles que por uma razão ou outra não
podiam ser aceites dentro dos paradigmas de cidadania vigentes se conseguiram
encontrar entre si, formando zonas de segurança e de reconhecimento. Foi na
cidade, abandonada pelas classes médias em fuga, que as contraculturas encontraram
o espaço para lançar o seu ataque à cultura dominante. A partir dos anos 90 do
século passado, com a reabilitação da cidade dentro do imaginário burguês, essa
ideia do território urbano enquanto local de uma liberdade selvagem e perigosa
começa a mudar. Os centros, outrora perigosos, são limpos e abertos às classes
ociosas. Sistemas modernos de videovigilância e controle policial são dispostos
no território; emergem as profissões criativas e os seus yuppies progressistas;
surge a ideia do "típico" a meio caminho de ser transformando em
"gourmet" e os filhos da classe média refugiada nos subúrbios mal
podem esperar para se juntar à grande festa que se perfila nos bairros
históricos.
A ideia de que uma conjugação
extraordinária de factores - turismo, regresso ao centro, vistos dourados,
domiciliação de rendas de aposentamento estrangeiras e inclusão dentro dos
mercados financeiros internacionais de imobiliário - provocaria algo como uma
"tempestade perfeita" esconde uma dimensão importante. A
naturalização do processo enquanto cataclismo natural - "a
tempestade" - faz supor que existe algo como uma naturalidade homeostática
das economias, ou seja, que a "mão invisível" efectivamente funciona,
desde que corrigida, apoiada, conduzida. Na verdade, a composição dos elementos
e dos termos de funcionamento de uma "economia", bem como a sua
constituição, sempre foram elementos politicamente dispostos. Não existe
qualquer "tempestade" na habitação, o que existe é uma situação onde
todos os termos que enquadram a vida são definidos pelo capital.
O que a "esquerda" em
geral tem dificuldade em compreender é como o processo de mercantilização da
cidade e das suas culturas dependeu desde cedo da domesticação das populações
urbanas. A cidade gentrificada é aquela cidade que sob o pretexto da cidadania
foi previamente mapeada, contabilizada, limpa, organizada e disposta primeiro
enquanto equipamento social e depois enquanto mercadoria. A cidade passível de
ser vendida aos turistas e aos investidores é aquela cujos fluxos foram
normalizados e homogeneizados por uma acção política do poder local, pontuada
pela abertura do museu de arte contemporânea X ou pelo festival inclusivo Y. A
metrópole cidadã é pouco mais do que uma network
de empreendedores sociais, circundada por ilhas de precariedade e pobreza. A cidade, pelo contrário, possui a
potencialidade de se afirmar enquanto rede rizomática de formas-de-vida que se
organizam para lá dos enquadramentos políticos e económicos do planeamento
capitalista. Este parece ser a questão fundamental ausente da maior parte da
crítica da "gentrificação" e da "turistificação". Para além
de repetir a argumentação fundamentalmente Keynesiana de que é necessário
regular os mercados, ou seja, de aceitar "os mercados" enquanto algo
inevitável na gestão colectiva das vidas, a crítica vulgar da gentrificação
hesita em perceber a ligação entre os desenvolvimentos contemporâneos do
capitalismo e as formas políticas de gestão da vida da população. A mera
regulamentação legal das problemáticas da habitação poderá servir a travar
momentaneamente a escalada de preços, mas isso servirá apenas a, por um lado,
obrigar o capital imobiliário a encontrar formas cada vez mais sofisticadas e,
por outro, aprofundar e desenvolver os dispositivos de controlo daquele que é o
potencial político da cidade. A cidade rebelde, a cidade autónoma, essa que
surge sempre enquanto umas das personagens principal das revoltas dos últimos
250 anos, desaparece tanto ante as investidas do capital como ante as,
aparentemente mais beneméritas, investidas organizacionais do poder político.
Basta olhar para o quilómetro zero da gentrificação em Barcelona: o MACBA
(Museu de Arte Contemporânea de Barcelona) que ao mesmo tempo que alberga as
mais radicais desconstruções artísticas da estética burguesa do século XX
promove a pacificação total dos territórios políticos do século XXI.
A crítica vulgar da
gentrificação, a que surge patente nos programas eleitorais da esquerda e no
discurso de vários colectivos, é uma crítica tendencialmente despolitizada. Aspira
a pouco mais do que a relações capitalistas "justas", sem nunca
perceber de que modo a dominação económica está ligada à dominação política.
Presente na ideia do político, na ideia de politização, é ideia de uma oposição
entre formas-de-vida. Uma crítica política da cidade, do turismo, da
gentrificação é aquela que consegue postular uma potência insurgente - que procura
opor aos processos de normalização e homogeneização metropolitana a formação de
um modo colectivo e colaborativo de habitar o território. Quando a resistência
se reduz à indignação, quando se reduz ao lamento pelo funcionamento enviesado
das instituições, quando ela não consegue aspirar a mais do que uma exigência
de justiça do que nunca poderá ser justo, então é uma resistência reduzida ao
social que não pode ser considerada política: porquê não tem nada a opor senão
o lamento e a indignação e, em último lugar, a resignação.
A resistência, na cidade,
organiza-se através da constituição de formas-de-vida que inauguram formas combativas
de habitar o espaço. Essas formas-de-vida ganham corpo através do que são
materialmente capazes de fazer, através da autonomia que são capazes de ensaiar
dentro um território que, por ser feito de mercadorias e de exploração, lhes é
hostil. A resistência à gentrificação, à comercialização de todos os campos da
vida, à expulsão da cidade, à entrega à valorização nua, ocorre dentro da organização
que consigamos opor à gestão político-financeira da cidade. Ela é feita de
ocupações, de bloqueios, de meios de colectivização, do acto de colocar em
comum aquilo que o poder atomiza e o capital separa, do acto de abolir aquilo
que separa o território urbano e o território rural e do acto de deixar de ver
uma cidade a partir do seu centro histórico e dos locais onde se concentram os
dispositivos de acumulação de poder e de capital.
Ao ocupar uma casa, um espaço,
uma rua, esta deixa de ser um mero meio de rentabilização e uma mera caixa para
dormir entre dias de trabalho para se tornar um local onde nasce um processo
político. Esse processo político ocorre quando os participantes na ocupação
passam a ter a possibilidade de habitar o espaço numa relação colectiva que
ultrapassa o mero uso individual, numa relação que começa imediatamente a
dissolver as formas de comando do capital. A questão da organização, das
organizações que queremos opor ao domínio do capital, é uma questão material. A
"organização" não é senão o usufruto estratégico e colectivo das
formas materiais de poder que enquanto positividade conseguimos reunir. A
disputa pela cidade ocorre na multiplicação destes momentos e na multiplicação
dos saberes e dos métodos engendrados nestes momentos.
A questão da ocupação enquanto
método de luta não se resume, no entanto, à destituição das relações de
propriedade nem ao processo de subjectivação comum que ocorre nas lutas que se
expressam de forma territorial e espacial. A determinação da ocupação enquanto
modo de luta, a sua emergência enquanto táctica difusa e partilhada, obedece às
transformações materiais que ocorrem dentro do capitalismo. A imersão total da
vida na infraestrutura do capital faz com que a relação entre nós e as
mercadorias tenha deixado de ser mediada pelos "meios de produção",
porque, pelo menos nas áreas do globo onde habitamos, é a totalidade da nossa
existência que é em si própria um meio de produção. A esta relação imediata com
as mercadorias produzidas corresponde a imposição de uma série de patamares de
mediação política que visam separar essa contínua produção de bens do seu
usufruto. A ocupação é assim uma medida de apropriação dos bens socialmente
produzidos, uma medida que dispensa e recusa as mediações impostas pelo próprio
capital e que os entrega a um uso comum, político e partilhado.
Contrariamente ao modo como tem
surgido expresso, o "direito à cidade" não é o direito às
infraestruturas urbanas que nos transportam de casa para o trabalho nem os
parcos equipamentos sociais que permitem amenizar as horas entre um turno e
outro. O direito à cidade só pode ser pensado enquanto o processo através do
qual são determinados, de modo autónomo, em oposição ao poder, os métodos de
organização colectiva que permitem fazer com que a cidade deixe de estar
dependente de um direito, ou seja, de um poder que a autoriza, controla e gere.
A cidade começa onde a metrópole termina.
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Imagens
Fotografias via URB
Tiago F. Duarte
Tiago Duarte é membro da Assembleia de
Ocupação de Lisboa
Ficha Técnica
Data de publicação:
21.09.2017