Este texto serve
como comentário crítico ao texto «Dá-me um revólver e
farei mover todos os edifícios» de Bruno Latour e Albena Yaneva
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1.
Em que sentido se pode comparar a “vida” de um edifício ao voo de uma
gaivota? No texto de Bruno Latour e Albena Yaneva, «Dá-me um revólver e farei
mover todos os edifícios», destaca-se a incompletude com que ambos se
apresentam perante o nosso olhar. No caso da gaivota, apesar de podermos, com
os nossos olhos, compreender o seu voo enquanto fluxo, somos incapazes de
discernir cada fase desse movimento. Por outro lado, ao olharmos para um
edifício deparamo-nos com a dificuldade inversa: a de o compreender enquanto
fluxo, quando o que observamos são apenas fases estáticas da sua evolução.
Tal como reconhecem os autores, foi-se estabelecendo a noção,
particularmente entre os arquitectos, de que um edifício não é um objecto
estático, mas antes um “projecto em
movimento”. Isto implica admitir que aquilo que apreendemos, quando olhamos
para um edifício, ou para a sua representação, é apenas uma pequena fracção das
dimensões que o definem enquanto projecto. Não são apenas as infra-estruturas e
os materiais que compõe o interior das paredes que escapam à nossa apreensão
quando encaramos um edifício a olho nu, são também a evolução dos seus
materiais ao longo do tempo, a actividade que os seus espaços suportam, as
ambições e as negociações que geraram a sua construção, o impacto que provocou
naquele lugar e nas pessoas que o habitam, entre muitos outros factores. No
entanto, esta noção não parece ter qualquer efeito na forma como os edifícios
continuam a ser divulgados, estudados ou concebidos.
No espaço euclidiano – ao qual continuamos a recorrer para conceber e
representar os edifícios – é impossível reproduzir a maioria dessas dimensões
que os definem enquanto projectos em
movimento. Podemos recorrer às três dimensões convencionais (altura,
profundidade, largura) para conceber um objecto abstracto; podemos
representá-lo em perspectiva, tornando a sua visualização mais próxima do nosso
ponto de vista real; podemos ornamentá-lo com sombras, texturas e cores, ou
povoá-lo com objectos e personagens; podemos, enfim, adicionar o movimento,
simulando a “quarta dimensão” – o tempo. No entanto, no que toca à aproximação
da complexidade real que envolve a construção e à "vida" de um
edifício, esse instrumento permanecerá irrealista, e nunca nos permitirá ir
muito além do que nos permitiu durante o Renascimento, quando foi inventado o
espaço perspéctico.
E não é apenas quanto à reprodução das dimensões “subjectivas” que,
segundo os autores, o espaço euclidiano se revela limitado enquanto instrumento
de concepção e de representação. Eles vão mais longe ao questionar a sua
própria eficiência na reprodução do chamado mundo “material”. Isto significa
que, nesse espaço, o “edifício” não é apenas depurado das suas implicações
humanas; ele também aparece desprovido da sua natureza material. A matéria que
o constitui encontra-se no mesmo mundo complexo, instável e imprevisível em que
vivemos; ela nunca se encontra nessa condição estática que procuramos
reproduzir através de pontos, de linhas e de planos, no espaço euclidiano. Pelo
contrário, ela move-se, reage a uma multiplicidade de estímulos e transforma-se
continuamente.
2.
Nada disto é novo. Reconhecer que a matéria se transforma, que não é
estática, que existe no nosso mundo complexo, e que não pode ser representada
em todas as suas dimensões, tal como não o pode um edifício enquanto “projecto
em movimento”, parece simples. No entanto, continuamos a tratar as qualidades
formais e construtivas dos edifícios, e as suas dimensões humanas, sociais e
políticas, como se elas ocupassem planos de existência distintos; como se não
estivessem intimamente relacionadas, e se pudesse delimitar rigorosamente quais
as que devem, ou não, fazer parte das preocupações dos arquitectos.
Essa separação entre dimensões “objectivas” e “subjectivas” é evidente,
por exemplo, quando se assume que a história da experiência arquitectónica se
pode compreender estritamente através da compilação e análise tipológica e
estilística de objectos arquitectónicos; isto é, quando entendemos que um
conjunto de edifícios isolados das suas circunstâncias e agrupados conforme
critérios formais nos pode dizer algo relevante sobre a evolução do nosso
ambiente construído, ou sobre a complexidade intrínseca à prática da arquitectura. Para além de insistir
na separação entre as dimensões que definem os edifícios enquanto objectos
abstractos e as que os definem enquanto "projectos em movimento",
essa compreensão gera uma clara hierarquia entre elas; e isto traduz-se
necessariamente numa visão limitada daquilo que pode ser a arquitectura.
Por sua vez, esta visão não pode ser dissociada da crescente oposição
entre “teoria” e “prática”. No caso do ensino da arquitectura, o progressivo
abandono da teoria – ou a sua conversão num espaço isolado de especulação – não
seria possível sem essa divisão artificial entre as dimensões
"objectivas" e "subjectivas” dos edifícios. É apenas
compreendendo-os enquanto objectos isolados, situados num espaço abstracto, que
podemos prescindir de qualquer fundamentação teórica na sua concepção. Na
ausência de linhas discursivas e de processos de pensamento que estruturem o
desencadeamento das decisões, a prática tenderá sempre a oscilar entre a
especulação formal e a formatação, restando-lhe poucos apoios para além da
acumulação de preconceitos formalistas.
Apesar da sua crise quanto à relação com a prática, não consta que a
teoria tenha subitamente deixado de ser importante para se fazer arquitectura.
É, no entanto, compreensível que ela se tenha tornado obsoleta dentro de um
modelo da prática que a reduz à concepção especializada de objectos habitáveis.
Cabendo-lhe apenas adicionar as «“dimensões” histórica, filosófica, estilística
e semiótica a uma concepção do edifício que não se moveu um centímetro» [1], é de esperar que a teoria seja
empurrada para uma posição marginal e irrelevante para a prática.
1.Bruno Latour e Albena Yaneva, Dá-me um revólver e farei mover todos os edifícios.
Por outro lado, uma prática "sem teoria" não está, por isso,
mais próxima da realidade concreta onde intervém, nem revela uma lucidez
particular em relação aos problemas que envolvem a construção ou a
"vida" dos edifícios. Pelo contrário, é precisamente por não se
apoiar num ponto de vista analítica e politicamente claro e fundamentado, que
ela se torna mais susceptível à alienação, adaptando-se facilmente a um modelo
que não é mais do que a resposta especializada aos preceitos funcionais e
estéticos do mercado. A teoria enquanto oposição à ideologia – isto é, enquanto
«construção de um ponto de vista analítico e político claro baseado no chão
sólido de categorias conceptuais concretas» [2] – transforma-se rapidamente num incómodo para uma prática
que não tem nenhuma ambição para além da sua integração no mercado.
2. Pier Vittorio Aureli, The Project of Autonomy: Politics and
Architecture within and against Capitalism. Buell Center/ FORuM Project e
Princeton Architectural Press, 2008. p.55.
3.
É neste contexto que a proposta de Bruno Latour e de Albena Yaneva
resulta tão pertinente. A sua proposta não implica que tenhamos de inventar
mais instrumentos tecnológicos, desenvolver softwares mais sofisticados ou
inventar novas formas de representação gráfica. É precisamente à teoria da
arquitectura que eles colocam o desafio de transformar a nossa concepção dos
edifícios, de modo a compreendê-los enquanto “projectos em movimento”. Isto faz
dela o equivalente – voltando à comparação inicial do edifício com a gaivota –
ao revólver fotográfico de Marey, que lhe permitiu finalmente observar cada
fase do voo da gaivota. Para esse fim, não é suficiente insistir na sua
manutenção enquanto espaço isolado de reflexão, mas, pelo contrário, como
dispositivo que nos permita finalmente reunir, no mesmo "espaço
óptico", as múltiplas dimensões que definem um edifício no mundo real, e
que não podem ser reproduzidas em espaços abstractos, como é o espaço
euclidiano.
Só assim podemos evitar o erro de reduzir os edifícios a objectos aos
quais nos cabe atribuir significados, e passar a compreendê-los enquanto
"territórios contestados”; que materializam uma extensa ecologia de
relações invisíveis, motivadas por interesses diversos e contrastantes. O nosso
objecto de análise deixa assim de se restringir às ideias do autor, aos desenhos
finais, ou às fotografias do edifício recém-construído e vazio; passando a
estender-se a toda a sua existência enquanto fluxo de transformações e de
acontecimentos, partindo dos processos e negociações que acompanham a sua
concepção e construção, passando pelos diferentes usos, apropriações, reacções,
interpretações e transformações, até chegar ao seu eventual desaparecimento.
Aquilo que os autores nos propõem – quando escrevem que é preciso gerar
«discussões terrestres dos edifícios e processos de concepção, e
descobrir a pluralidade de entidades concretas nos espaços-tempos específicos
da sua coexistência» [3] – é que nos re-aproximemos da realidade concreta onde os edifícios são
construídos e onde são vividos, e que recuperemos uma compreensão mais holística
da prática arquitectónica que a excessiva especialização impossibilita. É neste
sentido que questões tão diversas como o comportamento da esferovite nas
maquetas, as negociações envolvidas na construção, as reacções que um edifício
provoca, tal como a resistência dos seus materiais ao uso e ao clima, dizem
todas respeito ao âmbito disciplinar da arquitectura, sendo igualmente
relevantes para descrever e para estudar os edifícios. Para alcançar essa
compreensão, não podemos continuar a encarar a história da arquitectura como se
ela se resumisse à evolução do desenho de um conjunto restrito de edifícios, ou
do pensamento de um conjunto restrito de autores.
3. Bruno Latour e Albena Yaneva, Dá-me um revólver e farei mover todos os edifícios.
Nenhum arquitecto será capaz de negar que um edifício é diferente
daquilo que está no desenho, e que a matéria que o constitui existe e se
transforma no mesmo mundo onde decorrem a nossa vida, os nossos movimentos e a
nossa própria transformação. Resta-nos reconhecer que a nossa prática não é
isolada; que se insere nesse mesmo mundo de relações e de conflitos; e que
somos, através dela, agentes activos dessa transformação. Se a arquitectura
reivindica o conhecimento relativo aos edifícios, à cidade e ao território; ao
ignorar grande parte das suas dimensões, estará inevitavelmente a contribuir
para a sua progressiva irrelevância e, consequentemente, para a sua própria
extinção enquanto disciplina.
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Notas de edição
Este artigo serve
como comentário-crítico ao texto «Dá-me um revólver e farei mover todos os edifícios»
de Bruno Latour e Albena Yaneva, traduzido por Paulo Ávila e Pedro Levi
Bismarck e publicado no Punkto em Junho de 2017.
Imagens
Julien David Le Roy, “Les ruines des plus beaux
monuments de la Grece, considérées du côté de l'histoire et du côté de
l'architecture”, 1770.
Paulo Ávila
Nasceu em Angra do Heroísmo, 1994. Frequenta o curso de
mestrado integrado em Arquitectura, na FAUP, desde 2012. Vive no Porto.
Ficha Técnica
Data de publicação: 27.06.2017