Dá-me um revólver e farei mover todos os edifícios • Bruno Latour & Albena Yaneva







Comentário crítico ao texto \ «Projecto-em-movimento» de Paulo Ávila

O problema que os edifícios nos colocam é exactamente o oposto ao da famosa investigação de Étienne-Jules Marey sobre a fisiologia do movimento. Ao desenvolver o seu “revólver fotográfico”, Marey pretendia fixar numa sequência de imagens o fluxo contínuo do voo de uma gaivota, para compreender o mecanismo que tinha escapado a todos os observadores. O que nós precisamos é do oposto, porque o nosso problema é que os edifícios têm sempre um ar terrivelmente estático. Parece quase impossível compreendê-los como movimento, como “voo”, como uma série de transformações. Ora, todos sabemos – e particularmente os arquitectos, é claro – que um edifício não é um objecto estático, mas um projecto em movimento, e que mesmo uma vez construído, ele continua a ser transformado pelos seus usuários, a ser modificado tanto pelo que acontece no interior como no exterior, e que ele desaparecerá ou será renovado, ou transformado e alterado até ficar irreconhecível. Nós sabemos isto, mas o nosso problema é que nos falta o equivalente ao revólver fotográfico de Marey pois, quando representamos um edifício, fazemo-lo sempre como uma estrutura fixa, impassível, impressa em quatro cores nas revistas da moda para os clientes, nas salas de espera dos gabinetes de arquitectura. Se Marey estava tão frustrado por não poder representar o voo de uma gaivota numa sequência de imagens fixas, quão frustrante é para nós não poder representar o fluxo do projecto que constitui um edifício num movimento contínuo. Como Marey, que, apenas com o seu olhar, não podia demonstrar a fisiologia do voo até ter inventado um dispositivo artificial (o revólver-fotográfico), nós temos também de inventar um dispositivo artificial (no nosso caso, a teoria) para transformar a visão estática de um edifício numa sequência de imagens que, finalmente, documentem o fluxo contínuo que ele é.

É sem dúvida à beleza e ao poder de atracção do desenho em perspectiva que devemos esta ideia singular de que um edifício é uma estrutura estática. Ninguém vive no espaço euclidiano; isso seria impossível, e mesmo que adicionemos a chamada “quarta dimensão” – isto é, o tempo –, não fazemos esse sistema de coordenadas mais “habitável” pela complexidade dos nossos movimentos. Mas quando desenhamos um edifício no espaço perspéctico inventado no Renascimento (e tornado mais móvel, mas não radicalmente diferente, pela desenho assistido por computador) imaginamos que o espaço euclidiano pode representar os objectos estáticos de forma realista. A visão estática dos edifícios é, portanto, uma oportunidade profissional de os desenhar demasiado bem.


Mas este não deveria ser o caso, pois a representação tridimensional assistida por computador é absolutamente irrealista. Onde se coloca os clientes insatisfeitos e as suas exigências por vezes contraditórias? Onde se insere as restrições legais e urbanísticas? Onde é que se situa o orçamento previsto e as diferentes alternativas orçamentais? Onde se coloca a logística implicada nas diversas negociações? Onde tem lugar a avaliação delicada da competência dos especialistas? Onde se arquiva as maquetes sucessivas modificadas para responder às exigências contraditórias das diferentes partes interessadas – usuários, comunidades de vizinhos, defensores do património, clientes, representantes do governo e das autoridades municipais? Onde se incorporam as mudanças associadas aos detalhes do programa? Não é preciso reflectir muito para admitir que, se o espaço euclidiano é de facto aquele no qual os edifícios são desenhados em papel, ele não é o ambiente no qual eles são construídos – e ainda menos o mundo em que são habitados. Voltamos ao problema de Marey, mas de uma forma invertida: todos concordam que uma gaivota morta não pode dizer muito acerca da maneira como voa, no entanto, antes da fotografia instantânea, a gaivota morta era a única gaivota cujo voo poderia ser estudado. Da mesma forma, todos concordam que o desenho (ou a fotografia) de um edifício como objecto diz muito pouco sobre o seu “voo” como projecto e, ainda assim, voltamos sempre ao espaço euclidiano para “capturar” o que um edifício é –  continuando a lamentar o facto de tantas dimensões estarem ausentes. Considerar um edifício apenas como um objecto estático é como observar incansavelmente o voo de uma gaivota no céu sem jamais ser capaz de compreender como ela se move.

Nós sabemos bem que o mundo em que vivemos é muito diferente do espaço euclidiano: os fenomenologistas (e os psicólogos gibsonianos) nunca se cansaram de mostrar a imensa diferença que existe entre a maneira como a mente experiencia o seu ambiente a partir da forma “objectiva” que se diz que os objectos “materiais” possuem. Eles tentaram adicionar aos corpos “galileanos” girando pelo espaço euclidiano, corpos “humanos” deambulando por um ambiente “vivido”. Tudo isto é muito bom, mas não faz mais do que reproduzir, ao nível da arquitectura, a separação habitual entre dimensões subjectivas e objectivas que sempre paralisaram a teoria arquitectónica – sem mencionar a ruptura bem conhecida a que essa separação conduziu, entre arquitectos e engenheiros (nem as consequências catastróficas para a filosofia propriamente dita). O que surpreende, nessa argumentação, é que ela toma por adquirido que os desenhos técnicos sobre papel e, mais tarde, a geometria descritiva, fornecem uma descrição fiel do chamado mundo “material”. É este o pressuposto oculto em toda a fenomenologia: devemos adicionar as dimensões humanas intencionais e subjectivas ao mundo “material” descrito pelas formas geométricas e pelos cálculos matemáticos. O paradoxo dessa divisão de trabalho, imaginada por aqueles que pretendem adicionar as dimensões “vividas” da perspectiva humana à necessidade objectiva da existência material, é que, para evitar reduzir o humano a uma coisa, eles têm de reduzir as coisas a desenhos [1]. Os arquitectos, os seus clientes, os caminhantes de Certeau, os flaneurs de Benjamin não são os únicos a não viver no espaço euclidiano, os edifícios também! Se há uma injustiça no acto de “materializar” a experiência humana, há uma ainda maior em reduzir matéria a qualquer coisa que pode ser desenhada. A matéria não se encontra “no” espaço euclidiano pela simples razão de que o espaço euclidiano é o nosso próprio meio de aceder aos objectos (de os conhecer e de os manipular) e de os mover sem os transformar (isto é, conservando um certo número de características). Mas não é seguramente dessa maneira que as entidades materiais (madeira, aço, espaço, tempo, pintura, mármore, etc.) se têm de transformar para subsistir. A res extensa de Descartes não é uma propriedade metafísica do mundo em si, mas um método muito específico, historicamente datado e tecnicamente limitado, de desenhar as formas sobre uma folha branca e de lhes adicionar sombras de uma maneira muito convencional. Para levar mais longe esta questão (admitindo que ela é filosófica), podemos acrescentar que o espaço euclidiano é uma forma bastante subjectiva – centrada no homem ou, pelo menos, centrada no conhecimento – de compreender entidades, sem fazer justiça ao modo como os humanos e as coisas estão no mundo. Se podemos louvar a fenomenologia por ter resistido à tentação de reduzir os seres humanos a objectos, devemos condená-la firmemente por não ter resistido à tentação muito mais forte e muito mais esmagadora de reduzir a materialidade à objectividade.
1.Dalibor Vesely, Architecture in the Age of Divided Representation: The Question of Creativity in the Shadow of Production Cambridge, MA: MIT Press, 2004). Steven Holl, Juhani Pallasmaa and Alberto Pérez-Gómez, Questions of Perception: Phenomenology of Architecture (San Francisco: William Stout, 2006).

Mas o que há de ainda mais extraordinário nesse famoso espaço euclidiano, esse espaço onde se supõe que os objectos galileanos rolam como pedras, é que ele nem sequer descreve bem o acto de desenhar um edifício. Podemos invocar como prova disso a necessidade do arquitecto de produzir, desde os momentos iniciais do projecto, uma multiplicidade de modelos – por vezes, físicos – e muitos tipos de desenhos, para começar a compreender o que tem em mente e quantas partes interessadas podem ser tidas em conta. Os desenhos e as maquetes não constituem, nem um meio de tradução directa da imaginação fértil do arquitecto, nem um processo permanente de transferir as ideias de um designer para uma forma física, ou aquelas de uma imaginação “subjectiva” poderosa para diferentes expressões “materiais”. Em vez disso, as centenas de modelos e desenhos constituem uma matéria prima artística que estimula a imaginação táctil, surpreende o criador em vez de o obedecer passivamente, e ajuda os arquitectos a fixar ideias desconhecidas, para melhor compreender o edifício por vir e para formular alternativas e novas “opções”, novos e imprevistos cenários de realização. Seguir a evolução dos desenhos num atelier de arquitectura é como assistir aos esforços sucessivos de um malabarista que continua a adicionar mais bolas à sua hábil exibição acrobática. Cada nova técnica de desenho e de modelação serve para absorver uma nova dificuldade e adicioná-la a um repertório de elementos necessários para construir alguma coisa. Isto faz com que seja totalmente inapropriado limitar a três dimensões uma actividade que, por definição, é uma acumulação permanente de dimensões com vista a “obter” um edifício plausível, um edifício que se sustente. Cada vez que uma nova condicionante é tida em conta – um limite de zonamento, um novo material, uma modificação orçamental, um protesto de cidadania, um problema de resistência material, uma nova moda, uma preocupação do cliente, uma nova ideia formulada no atelier – temos de inventar uma nova forma de desenhar o edifício de modo a integrá-la e a torná-la compatível com as outras.


Durante o seu “voo”, um edifício nunca está em repouso e nunca está sob a forma deste espaço euclidiano que supostamente seria a sua “verdadeira essência material”, e à qual nós poderíamos então adicionar a sua dimensão “simbólica”, “humana”, “subjectiva” ou “icónica” [2]. As maquetes, os desenhos e os edifícios encontram-se muitas vezes lado a lado e são simultaneamente modificados e aperfeiçoados. Sob a pressão da construção, e perante o olhar estupefacto dos trabalhadores e dos engenheiros, os arquitectos avançam e recuam entre o edifício em construção e os incontáveis desenhos e maquetes, comparando, corrigindo e actualizando-os. Os desenhos de arquitectura, transformados em desenhos técnicos pelos engenheiros e daí copiados e utilizados pelos trabalhadores no local (colados às paredes, dobrados nas pastas, manchados de café e de tinta), ainda enfrentam uma série desconcertante de transformações, nenhuma das quais respeitando os limites daquilo que foi descrito apenas em “três” dimensões… Quando um trabalhador assina um desenho para demonstrar que compreende o fluxo de trabalho, ele compreende-o em comprimento, em altura ou em profundidade? Quando adicionamos padrões “quase legais” às margens de tolerância, que dimensão euclidiana é essa? O fluxo de transformações não termina aí. Uma vez construído, o edifício coloca outro problema de descrição, porque se torna opaco aos olhos daqueles que supostamente se ocupam da sua manutenção [3]. Para arquivar e para recordar esta ou aquela parte, e como se lhe acede em caso de acidente ou de reparação, necessitamos de tipos completamente novos de diagramas, de novos esquemas, de novas séries de tabelas e de rótulos. Em nenhum momento dessa longa sucessão de transformações, durante a cascata de aparelhos de escrita que o acompanham durante o seu “voo”, o edifício se encontra num espaço euclidiano. E, ainda assim, nós continuamos a pensá-lo como se a sua essência fosse aquela de um cubo branco traduzido, sem qualquer transformação, através da res extensa [4].
2. II Tom Porter, How Architects Visualize (New York: Van Nostrand Reinhold, 1979).
3. III Akiko Busch, The Art of the Architectural Model (New York: Design Press, 1991).
4. IV Horst Bredekamp, “Frank Gehry and the Art of Drawing,” in Gehry Draws, eds. Mark Rappolt and Robert Violette (Cambridge, MA: MIT Press, 2004), 11–29.

Quais seriam as vantagens de abandonar a visão estática dos edifícios para capturá-los (através de um equivalente teórico ao revólver fotográfico de Marey) como um fluxo de transformações? Uma vantagem seria, claro, a de poder renunciar à separação entre dimensões “subjectivas” e “objectivas”. Uma outra seria a de fazer justiça às numerosas dimensões materiais das coisas (sem limitá-las a priori ao colete de forças epistemológico da manipulação tridimensional do espaço). A matéria é demasiado multidimensional, demasiado activa, complexa, imprevisível, e contra-intuitiva para ser simplesmente aquilo que representamos nos renders quase espectrais dos screen shots CAD [5]. A concepção arquitectónica compreende um complexo conglomerado de actores imprevistos que raramente são tidos em conta pela teoria arquitectónica. Como afirmou William James, nós, enquanto entidades materiais, vivemos num “pluriverso”, e não num universo. Uma compreensão da concepção que adoptasse esse princípio revelaria até que ponto os arquitectos estão presos àquilo que não é humano, como as maquetes, a esferovite e os x-actos, os renders [6] e os computadores [7]. Dificilmente conseguem conceber um edifício sem a assistência da “potência motora” de numerosas mãos pensantes, desenhadoras, cortadoras de esferovite.  E é precisamente essa que os torna materialmente tão dignos de interesse. A mais modesta investigação sobre antropologia arquitectónica, a mais ínfima experiência com materiais e formas revela até que ponto um arquitecto tem de estar equipado com diversas ferramentas – auxílios da imaginação e instrumentos de pensamento relacionados com o corpo – para realizar a mais simples visualização de um novo edifício. Outra vantagem seria a de podermos introduzir todas as diferentes exigências humanas no mesmo espaço óptico do edifício que lhes interessa tanto. É paradoxal avançar com a ideia de que um edifício é sempre uma “coisa”, isto é, etimologicamente, uma acumulação contestada de demandas contraditórias, e ainda assim ser totalmente incapaz de desenhar essas demandas contraditórias dentro do mesmo espaço em que elas estão em conflito… Todos sabem que um edifício é um território contestado, e que ele não pode ser reduzido àquilo que é e àquilo que significa, como sempre fez a teoria da arquitectura tradicional [8]. É apenas tendo em conta os movimentos de um edifício, e prestando cuidadosamente atenção às suas “tribulações”, que nós podemos exprimir a sua existência: isto seria o equivalente à lista completa de controvérsias e de sucessos do edifício ao longo do tempo, isto é, o equivalente ao que ele faz, a como ele resiste às tentativas de transformação, autoriza certas acções dos visitantes enquanto previne outras, enerva observadores, contesta as autoridades municipais e mobiliza diversas comunidades de actores. No entanto, ou observamos o objecto estático e incontestado como estando “ali ao longe”, pronto a ser reinterpretado, ou ouvimos falar dos interesses humanos divergentes, mas nunca chegamos a imaginar a junção dos dois. Quase quatro séculos depois da representação em perspectiva e mais de dois séculos depois da invenção da geometria descritiva (por Gaspar Monge, compatriota de Marey, nascido em Beaune, em Borgonha), ainda não encontrámos um modo convincente de desenhar o espaço controverso que um edifício acaba sempre por ser. E ainda é difícil para nós confessar que as nossas poderosas ferramentas de visualização ainda não podem ir mais longe do que as de Leonardo, Dürer e Piero [9]. Devíamos por fim ser capazes de representar um edifício como uma navegação através de uma paisagem de dados controversos: como uma série animada de projectos fracassados e bem-sucedidos, como uma trajectória de movimentos entrecruzados de definições e de conhecimentos instáveis, de materiais e tecnologias de construções recalcitrantes, de preocupações dos usuários e de avaliações vacilantes das comunidades. Isto quer dizer que devíamos enfim poder representar um edifício como um modulador em movimento regulando diferentes intensidades de compromisso, reorientando a atenção dos usuários, misturando e aproximando as pessoas, concentrando os fluxos de actores e distribuindo-os para compor uma força produtiva no espaço-tempo. Em vez de ocupar pacificamente um espaço analógico distinto, um edifício-em-movimento abandona espaços catalogados e conceptualizados como fechados para navegar tranquilamente em circuitos abertos. É por isto que um edifício, tal como uma gaivota em voo num espaço argumentativo complexo e multiverso, é composto por aberturas e encerramentos, permitindo, impedindo ou até alterando a velocidade dos actores flutuantes, dos dados e dos recursos, ligações e opiniões, que estão todos em órbita numa rede, mas nunca em recintos estáticos (ver o projecto MACOSPOL, www.macospol.eu e www.designinaction.eu).
5. Albena Yaneva, “How Buildings ‘Surprise’: The Renovation of the Alte Aula in Vienna,” Science Studies: An Interdisciplinary Journal of Science and Technology Studies, special issue “Understanding Architecture, Accounting Society,” 21, 2008 (in press).
6. Albena Yaneva, “Scaling Up and Down: Extraction Trials in Architectural Design,” Social Studies of Science 35 (2005): 867–894.
7. Sophie Houdart, “Des multiples manières d’être réel – Les représentations en perspective dans le projet d’architecture,” Terrain 46 (2006): 107–122.
8. Charles Jencks and George Baird, Meaning in Architecture (London: Barrie & Rockliff, The Cresset Press, 1969). Robert Venturi and Denise Scott Brown, Architecture as Signs and Systems (Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2004).
9. Bruno Latour, “The Space of Controversies,” New Geographies 1, no. 1. 2008: 122–136.

Mas uma das vantagens de ver os edifícios como gaivotas em voo seria a de poder abandonar o contexto. “Context stinks” (“o contexto cheira mal”), como afirmou Rem Koolhaas numa formulação que se tornou famosa. Mas ele “cheira mal” apenas porque fica demasiado tempo no lugar e acaba por apodrecer. O contexto não cheiraria tão mal se víssemos que ele também se movimenta e se inscreve num fluxo tal como os edifícios. O que é um contexto em “voo”? Ele é feito das numerosas dimensões que influenciam cada etapa do desenvolvimento de um projecto: “contexto” é esta pequena palavra que contém todos os diversos elementos que bombardeiam o projecto desde o início – as novas modas propagadas pelos críticos nas revistas de arquitectura, os clichés que se agravam na mente dos clientes, os costumes que se enraízam nas leis de zonamento, os modelos ensinados nas escolas de arte e de design, os hábitos visuais dos vizinhos que os levam a opor-se aos novos hábitos visuais em formação, etc. E cada novo projecto vem evidentemente modificar cada um dos elementos que tentam contextualizá-lo, provocando mutações contextuais, exactamente como as máquinas de Takamatsu [10]. Segundo essa perspectiva, um projecto de um edifício assemelha-se mais a uma ecologia complexa do que a um objecto estático no espaço euclidiano. Muitos arquitectos e teóricos da arquitectura mostraram que a biologia oferece metáforas muito mais apropriadas para falar de edifícios [11].


Enquanto não encontrarmos uma maneira de fazer, para os edifícios, o inverso daquilo que Marey conseguiu fazer para o voo das gaivotas e o galope dos cavalos, a teoria da arquitectura continuará a ser uma tentativa parasítica que não fará mais do que adicionar as “dimensões” histórica, filosófica, estilística e semiótica a uma concepção do edifício que não se moveu um centímetro [12]. Em vez de analisar o impacto do surrealismo sobre o pensamento e a filosofia de projecto de Rem Koolhaas, devíamos antes tentar compreender o comportamento errático da esferovite na elaboração de maquetes no seu atelier; em vez de falar do simbolismo implícito na arquitectura do Richard Medical Research Laboratories, na Pensilvânia, enquanto edifício científico, devíamos antes tentar traçar as reacções dos seus usuários, os maus usos que fizeram dele, as negociações difíceis que ele implicou com o arquitecto Louis Kahn, a respeito das janelas e da luz do dia. Em vez de explicar o edifício da Assembleia de Chandigarh pelos condicionamentos económicos ou pelo repertório conceptual trivial do estilo moderno de Le Corbusier e a sua única experiência de urbanismo fora da Europa, devíamos ver as suas diversas manifestações de resistência, aos ventos, à intensidade do sol, ao micro-clima dos Himalayas, etc. É apenas gerando discussões terrestres de edifícios e processos de concepção, e descobrindo a pluralidade de entidades concretas nos espaços-tempos específicos da sua coexistência, em vez de se referir a quadros teóricos e abstractos fora da arquitectura, que a teoria da arquitectura se tornará um domínio útil aos arquitectos, aos usuários, aos promotores e aos construtores. Surge uma nova tarefa para a teoria arquitectónica:  encontrar o equivalente ao revólver fotográfico de Marey e enfrentar a difícil tarefa de inventar um vocabulário visível capaz de fazer justiça à natureza “coisificada” dos edifícios, como oposição à natureza “objectiva”, velha e cansada.
10. Félix Guattari, “Les machines architecturale de Shin Takamatsu” Chimères 21 (winter 1994): 127–141.
11. Antoine Picon and Alessandra Ponte, Architecture and the Sciences: Exchanging Metaphors (New York: Princeton Architectural Press, 2003).
12. Anthony Douglas King, Buildings and Society: Essays on the Social Development of the Built Environment (London: Routledge & Kegan Paul, 1980). Neil Leach, ed. Rethinking Architecture (London and New York: Routledge, 1997). Ian Borden and Jane Rendell, Inter Sections: Architectural Histories and Critical Theories (London and New York: Routledge, 2000).


Notas de edição
Este artigo foi publicado originalmente em Explorations in Architecture, editado por Reto Geiser (2008). A tradução para português foi realizada por Paulo Ávila (com revisão de Pedro Bismarck) que escreve o comentário crítico a este texto.

Bruno Latour & Albena Yaneva
Bruno Latour (1947) é um antropólogo, sociólogo e filósofo da ciência francês. Desenvolveu a ANT - Actor Network Theory. Albena Yaneva é uma antropóloga da arquitectura com doutorament0 na École Nationale Supérieure des Mines de Paris (2001). É professora na Universidade de Manchester e publicou recentemente “Made by the Office for Metropolitan Architecture: An Ethnography of Design”.

Ficha Técnica
Data de publicação: 09.10.2017