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Este artigo serviu originalmente como comentário crítico
à conferência que Pierre Chabard proferiu na Faculdade de Arquitectura da
Universidade do Porto a 5 de Abril de 2017 e que teve como base o artigo
“Utilitas, Firmitas, Austeritas”, publicado na Revista Criticat na Primavera de
2016 e depois traduzido e publicado na Revista Punkto, em Março de 2017.
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1.
O
texto de Pierre Chabard, Utilitas, Firmitas, Austeritas, é
um texto polémico. No sentido em que parte de uma vontade explícita de polemizar com. Isto é, indo ao encontro da
etimologia desta palavra (Polemos, em
grego, significa guerra), ele é tanto um acto de guerra como um instrumento pronto
para a batalha. E, de facto, reage e procura traçar, a partir de um
posicionamento próprio, todo um panorama daquilo que tem sido uma certa
produção arquitectónica (teórica e prática) da última década: isto é, destes
últimos anos de crise e de políticas de austeridade que atingiram de um modo
geral a Europa (e especialmente os países intervencionados pela troika). Políticas que tiveram impactos
tremendos, desde logo, no campo da arquitectura, com a diminuição e o
desaparecimento da encomenda, sobretudo da encomenda pública. Uma crise que em
Portugal foi devastadora, com o encerramento de muitos gabinetes e levando uma
geração inteira de arquitectos recém-formados a procurar emprego no
estrangeiro.
Um
dos aspectos que acompanhou toda a crise de 2008 foi a emergência de um tom moralista
que assentava numa certa culpabilização de jargão muito popular e populista:
ora, afinal de contas, depois da grande festa europeia dos anos noventa e de
todos os excessos tinha finalmente chegado a conta. Portugueses, espanhóis e
gregos, mas também franceses e italianos, tinham andado a viver acima das suas
possibilidades, gastando mais do que aquilo que podiam. E, portanto, chegada a
factura era preciso expiar com os necessários sacrifícios e renúncias todos os
pecados cometidos e toda essa vida de luxúria. Claro que isso foi apenas a
narrativa que permitiu não apenas validar e justificar a lenta e penosa
dissolução do Estado Social, como implementar in our heart and soul – seguindo a lapidar frase de Margaret
Thatcher “Economics are the method: the object is to change the soul” – um novo jargão iminentemente
neoliberal, onde fomos apresentados a palavras como empreendedorismo e precariedade.
Ficamos também a saber que a nossa vida colectiva e privada estava agora nas
mãos de uma coisa chamada “mercados”.
E,
portanto, a austeridade, assumiu ao longo destes anos um duplo sentido: moralização e oportunidade. A crise como oportunidade para nos livrarmos do peso
do passado e do peso do Estado, de sair da nossa “zona de conforto” para cumprir
novos e velhos sonhos. Uma economia da promessa que é também a promessa de uma economia
que jamais se realizará. O outro lado da moeda do empreendedorismo é, claro, a
precaridade absoluta das relações laborais e das relações sociais; a crescente
desigualdade social e uma crise generalizada das instituições democráticas
2.
A
crise teve óbvias e dramáticas consequência no campo da arquitectura. Desde
logo, o de cavar um fosso ainda maior entre uma stararchitecture de 1% e os restantes 99%, entre uma elite de
arquitectos e um exército de arquitectos-operários convertidos em pura força de
trabalho. Mas fez também aparecer um conjunto de práticas arquitectónicas e
discursos que tinham como objectivo procurar alternativas a duas décadas de
pura arquitectura icónica, inebriada por um role extenso de possibilidades
conceptuais, formais e tecnológicas. Pierre Chabard identifica, neste seu texto,
duas linhas de reacção dominantes. Por um lado, a crítica a essa linguagem de
excessos e efeitos formais que marcou as arquitecturas-ícone e, por outro lado,
a crítica a um certo esvaziamento ético e social de uma prática arquitectónica
entregue aos delírios dos novos mercados da urbanização. Estas duas linhas,
Chabard identifica como sendo a dos “activistas” e a dos “autonomistas” (ou “ascetas”).
A
primeira linha, envolve todo um esforço voluntarioso, bem-intencionado, de
regresso a uma arquitectura de compromissos sociais, interessada na cidade e em
processos de intensificação da vida urbana. Tudo isto fez surgir uma panóplia
daquilo que se chamou à época arquitecturas
efémeras, mas que na verdade não eram mais que arquitecturas precárias realizadas por uma geração de jovens, esses
sim, absolutamente precarizados. Jeremy Till viu em muitas dessas iniciativas a
possibilidade de voltar a colocar temas como a participação e a escassez, de
voltar a chamar a arquitectura para uma intervenção social em territórios
problemáticos, eticamente responsável, privilegiando uma actuação nas margens
da realidade, suprindo necessidades que o Estado já não poderia providenciar,
num formato bottom-up, longe das
típicas estratégias estatais centralizadas top-down.
O que é certo é que, desde cedo, o bottom
up se tornou numa ferramenta útil não para intervir socialmente no espaço
urbano, mas para dar forma a toda uma nova economia de empreendedores-precários
(emprecariadores), que procuravam
encontrar o seu lugar nas areias instáveis e movediças do pós-crise: workshops cheios
de jovens arquitectos comprometidos socialmente, eram rapidamente transformados
em workshops de construção de quiosques para vender bolos e muffins. Mesmo aqueles que de forma
voluntariosa procuraram comprometer-se com um outro modelo de prática social da
arquitectura, acabaram a receber prémios por brandings originais e marketings
inovadores.
A
segunda linha que Chabard identifica parece situar-se no extremo oposto. Longe
de multi e inter-disciplinaridades e de práticas bottom up informais, insiste numa noção de autonomia da
arquitectura e na sua “vontade de poder”, afirmando forma contra imagem,
perseguindo uma posição quase iconoclástica, em reacção a todos os excessos
iconográficos da metrópole pré-crise. Como reacção, foi declarado um regresso
aos valores autênticos da arquitectura, um Back
to fundamentals (o mote da Bienal de Veneza de 2014) e a uma gramática
básica da arquitectura como uma oportunidade para a arquitectura se descobrir a
si própria, aos seus valores poéticos e transcendentais. Uma declaração de
guerra seguida mesmo por aqueles, como Rem Koolhaas, que há pouco mais de quinze
anos escreviam textos como Junkspace. E,
portanto, como refere Chabard, uma certa onda minimalista vai ocupando lugar e ganhando
adeptos, sempre numa certa crítica com tons moralistas, incorporando
aparentemente de forma natural e inconsciente todo o jargão da austeritas e do sacrificium.
Chabard
é muito preciso em reconhecer as contradições inerentes a esse movimento,
assinalando como esse gesto de afirmação da autonomia da forma aparece sempre
acompanhado de uma tendência para a sacralização ou re-sacralização da arquitectura. Isto é, uma certa tendência para
afirmar uma condição de indizibilidade da obra, de um “silêncio piedoso que
fará calar a cacofonia do mundo”, e que acaba por (a)fundar a obra num discurso
transcendental e num essencialismo lírico-poético inconsequente. Como escreve
Chabard, numa das suas passagens mais notáveis:
Sacralizar
a arquitectura é, assim, uma tentativa desesperada de conjurar a impotência
crescente de um grande número de arquitectos e de expiar, ao mesmo tempo, o
formalismo complacente da pequena elite. Talvez porque são mais vulneráveis à
escassez da encomenda, os estudantes, os jovens arquitectos são hoje
particularmente sensíveis a esta teologia arquitectónica que combina
puritanismo disciplinar, paixão pelas origens, discurso hermético e culto do
objecto depurado. Ela possui, de facto, a virtude não negligenciável de lhes
oferecer razões de esperança, uma identidade imemorial de arquitecto que os deixe
orgulhosos, mas também mistérios transcendentes para ocupar as suas meditações.
3.
E,
no entanto, o momento em que me identifico plenamente com este texto e em que
ele é mais eloquente e assertivo é, também, o momento onde me distancio dele. Para
Pierre Chabard, uma alternativa consequente não pode ser encontrada num
qualquer entrincheiramento dentro de qualquer uma dessas linhagens, mas no
espaço aberto entre elas. Neste sentido, Pier Vittorio Aureli (co-fundador com
Martino Tattara de Dogma) é apresentado ao longo do texto não apenas como a
face mais visível de toda uma linha de arautos sacralizadores da arquitectura que incorporaram todo um ethos da austeritas, mas alguém que simboliza esse fechamento irredutível numa
posição dogmática e
neo-fundamentalista.
A
leitura que Pierre Chabard nos propõe é essencial para compreender a última
década de produção arquitectónica debaixo do quadro económico, político e
social do Neoliberalismo. E, sobretudo, em identificar toda uma linhagem de
arquitectos que encontraram no reino de uma arquitectura pastoral idílica, não
apenas um modo de se distanciarem da arquitectura iconográfica das últimas
décadas, mas sobretudo, uma forma de exorcizarem e redimirem uma arquitectura cada vez mais condenada aos pragmatismos
do real, totalmente transformada em exercício logístico e tecnocrático sem
qualquer problematização desse real onde intervém e sem qualquer projecto de transformação. E, portanto,
acabamos por nos vermos nessa estranha situação de passarmos de um cinismo iconográfico para um cinismo iconoclástico.
Mas é precisamente aqui que me parece
fundamental traçar uma linha de separação ou, mesmo, clarificar se Pier
Vittorio Aureli pode ser colocado ao lado de arquitectos como Peter Märkli, Valerio Olgiati ou mesmo Kersten
Geers. De certa maneira, arriscaria, Pierre Chabard parece ser vítima do mesmo
equívoco que atribui a Aureli, colocando de forma um tanto ou quanto
fundamentalista dentro do mesmo credo da austeritas
uma variedade imensa de posições. Num certo sentido, isto parece dever-se a um
enfâse excessivo na notação biográfica de Aureli e na escassa atenção dada à
sua bibliografia. Mesmo aceitando o argumento de potenciais contradições entre
a posição teórica e a movimentação prática de Aureli, ficam dúvidas que este
julgamento possa ser feito sem que se reconheça toda uma produção teórica que
tem uma década e que é bastante complexa e rica. E, sobretudo, uma produção que
dificilmente se deixará classificar dentro de qualquer apologia por uma austeritas neoliberal.
Para compreender exactamente onde é
necessário traçar essa linha de separação e exclusão, parece-me útil convocar
três artigos. O primeiro é de Jeremy Till “Scarcity contra austerity”, o
segundo é “Obstruction. A grammar for the City” de Aureli, Tattara, Geers e Van Severen e o terceiro “Architecture as
Framework. The project of the City and Crisis of Neoliberalism” foi escrito por
Aureli e Tattara.
Tal
como Pierre Chabard, Jeremy Till reconhece a emergência de uma arquitectura da
austeridade e de uma estética minimalista. Para Till:
Não
é surpreendente que uma outra reacção à austeridade seja precisamente a
tentativa de escapar às suas construções políticas, procurando refúgio na
dimensão rarefeita do discurso estético, onde a austeridade é reificada e mesmo
celebrada. Este é o caminho da elite da arquitectura que (…) funciona como uma
espécie de redenção dos 99%, oferendo a promessa de valores elevados muito para
além da vulgaridade dos ganhos de produtividade e eficiência. Assim, racionalizada
pela homilia miesiana do “mais é menos”, emerge a estética da austeridade,
tornando-se uma fonte de consolo, um modo de revalidar a essência da
arquitectura perante um mundo que fora do escritório parece cada vez mais
pequeno.
E
acrescenta logo a seguir:
Assim como as
políticas de Austeridade reclamam muitas vezes um imperativo moral, também esta
arquitectura da austeridade não proclama apenas uma estética da simplicidade,
da precisão e da honestidade, mas insinua que elas próprias são uma forma de
acção moral. “A beleza é a coisa mais radical que conheço”, defende Märkli.
Aquilo
que Till refere é precisamente isso: ao traduzir para a esfera da estética valores
políticos e éticos, a arquitectura não faz outra coisa que os estetizar, afastando-os
“das dinâmicas sociais onde as questões
éticas estão de facto presentes”. Como assinala Till: “A ética da estética
apresenta assim uma falsa moralidade, mas onde muitos arquitectos encontram
conforto e até inspiração”.
Surpreendentemente,
em “Obstruction”, texto assinado por Aureli, Tattara, Geers e Van Severen, podemos
ler algo semelhante quando estes escrevem que “se nos anos 20 era suposto a
forma seguir a função” e “se nos anos noventa era suposto a forma seguir o
programa”, então “chegará o tempo em que a forma apenas seguirá a forma”. Não
estaríamos, por isso, muito longe do mesmo exercício de re-sacralização atribuído a Märkli ou a Olgiati. No entanto, num
outro texto (“Architecture as Framework”),
que começa por repetir exactamente a mesma fórmula, Aureli e Tattara parecem
procurar elucidar ou explicar o sentido exacto desta afirmação:
Nós
acreditamos que a forma (arquitectónica) só se pode seguir a si própria, isto
é, a sua possibilidade ontológica de definir, enquadrar e limitar espaço. Para
dizê-lo de forma clara: a arquitectura só precisa de ser ela própria. Contudo,
as motivações para instrumentalizar essa possibilidade são políticas. (…)Definir,
enquadrar e limitar espaço são actos de endereçar o modo como as coisas, as pessoas
e as instituições coexistem. Uma vez entendida desse modo, a forma arquitectónica
não é algo que segue outra coisa qualquer, mas é uma precondição e um
instrumento que define aquilo que é a ‘raison d’être’ da arquitectura: a ideia
de cidade.
A forma segue a forma. Mas isto não
significa apenas um domínio puramente estético da forma, mas exactamente o contrário,
a compreensão daquilo que pode ser a verdadeira dimensão política da forma, como algo que limita, define, compõe espaço,
esse espaço entre as pessoas que, para Hannah Arendt, em A Condição Humana, era precisamente o espaço da política. Por isso,
ao contrário de Märkli ou Olgiati, Aureli não traduz para o campo estético questões
que são políticas, nem está a defender uma austeritas
minimalista ou moralista. Aquilo que ele procura repensar é precisamente a
condição política da arquitectura, reconhecendo o gesto original da forma, como
um modo de limitar e enquadrar espaço (framing
space), definindo relações entre interior e exterior, entre o que permanece
incluído e o que fica excluído, o que fica visível e o que é tornado invisível,
organizando, recompondo e contrapondo indivíduos, coisas e instituições. Para
Aureli não é simplesmente a política que determina a forma, mas “é a forma – o modo
como o espaço é articulado e enquadrado como processo de inclusões e exclusões –
que produz a política” (“Architecture as Framework”). Se Märkli, voltando à frase convocada por Jeremy Till, esteticiza a política, Aureli, por sua
vez, procura uma política da estética ou
uma política do sensível – um modo de
entender a organização do nosso mundo sensível como um acto político onde a
arquitectura está irremediavelmente presente.
Neste
sentido, aquilo que está em jogo em Less
is enough, é menos um acto de autoflagelação decretando a austeridade
eterna para os dias que vêm, mas um modo de reconhecer não apenas a forma como política, mas a própria vida como política, a forma de vida como problema que é político,
mas também arquitectural. Less is enough
é, assim, o primeiro de uma série de artigos e ensaios onde Aureli procura
problematizar a ideia de doméstico,
trazendo, depois de um longo silêncio, esta discussão para o centro da
arquitectura. Isto é, colocando novamente na agenda da arquitectura o
reconhecimento e a crítica às actuais condições de vida debaixo do quadro
político-económico do neoliberalismo.
Não
estamos aqui para discutir as dificuldades, as contradições e as aporias desta
tarefa. Isto seria matéria suficiente para uma outra sessão. Aquilo que me
parece importante assinalar, reconhecendo a importância do artigo de Pierre
Chabard, é a necessidade de traçar esta linha importante entre aqueles que
fizeram da forma uma ilusão metafísica e um modo de reclusão/exclusão e os
outros que sem ilusões procuram reinventar uma condição política para a
arquitectura através da forma. E isto significa não apenas colocar forma e forma de vida numa relação densa com a prática e a teoria da
arquitectura, mas também voltar a convocar aquela relação que, já nos anos 60,
Nuno Portas reclamava como absolutamente fundamental: desenho e desígnio.
Consequently, this book does not argue for
the autonomy of design, but rather for the autonomy of the project, for the
possibility of architectural thought to propose an alternative idea of the city
rather than simply confirm its existing conditions.
— Pier Vittorio Aureli, The possibility of an Absolute Architecture
In a time when an army of theorists occupying
the seats of academia is obsessed with the idea of “practice” and pays lip
service to “activism” as the only valid space of cultural, social, and
political action, the project of autonomy reminds us that the most challenging efforts
within and against capitalism are those born out of “Theory” with capital T –
Theory, that is, not as a device aimed simply at reporting on the “reality as
found” of the city and its changes every Monday morning, but as a way to
stablish long-term responsibilities and solid categories by which to counter
the positivistic and mystifying ways that social and political development
comes to be seen as evolutionary progress. It is as a theoretical project (…)
that the project of autonomy may be seen as relevant less in terms of its
specific content, and more so as a lesson in method on how the most challenging
theoretical effort might become the most effective form of “practicing” struggle.
— Pier Vittorio Aureli, The Project of Autonomy
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Referências
Pier Vittorio Aureli, Martino Tattara,
Kersten Geers e Van Severen, Obstruction. A grammar for the City, AA Files 54, 2012.
Pier Vittorio Aureli, Martino Tattara, Architecture as Framework. The project of
the City and Crisis of Neoliberalism, New Geographies 1, 2009.
Imagem
Lina Bo Bardi, Cadeira de beira de Estrada.
Pedro
Levi Bismarck
Editor do Jornal Punkto, Bolseiro da FCT e
investigador do CEAU, actualmente a fazer doutoramento na FAUP onde é
Assistente Convidado.
Ficha Técnica
Data
de publicação: 19.04.2017
Etiqueta:
Arquitecturas \ espaços