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O clima culpabilizante que se instalou com a última
crise e as campanhas de rigor orçamental que a deveriam supostamente remediar
foram particularmente interiorizadas pelos arquitectos, que as traduziram em
estéticas da pobreza, ascetismos formais e outras éticas da modéstia. O
arquitecto Pier Vittorio Aureli, autor em 2013 de Less is Enough ilustra e
discute tanto esta reacção como a eclosão de novos fundamentalismos
arquitectónicos.
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Suplemento
A obra [1]
é curta, incisiva, num estilo um pouco
escolástico, ornamentada de locuções latinas, desprovida de imagens e
sobriamente formatada, como é apanágio das edições do (muito koolhaasiano) Strelka Institute [2]. O autor, Pier
Vittorio Aureli (nascido em Roma, em 1973), apresenta-se ao mesmo tempo como
arquitecto e teórico. Para a cidade, produz com a Dogma (atelier fundado em
2002 em Bruxelas com Martino Tattara) poucos projectos, frequentemente de
grande escala e numa estética intransigente e repetitiva, produzidos em grande
medida sem qualquer encomenda e nunca realizados [3]. Nesse panorama, as
suas aulas e as suas publicações tornaram-se, nos últimos dez anos, incontornáveis
dentro dos milieux académicos da
arquitectura, onde as suas posições se distinguem, pela radicalidade, do magma
teórico envolvente [4]. No seu primeiro livro [5], editado em 2008 pelo Buell Center da Universidade de Columbia
(numa colecção dirigida por Joan Ockman), Aureli exalta a noção da “autonomia”,
tal como foi discutida em Itália nos anos de chumbo, tanto na arquitectura (por
Aldo Rossi ou Archizoom) como na política (pelo movimento operaista de Mario Tronti). Em 2012, num trabalho mais histórico [6], ele procura na
obra de Palladio, Piranesi, Boullée ou Ungers aquilo que é “absoluto” na forma
arquitectónica, ou seja, a sua capacidade para instaurar uma ordem que é tanto formal
como política.
O título do seu último ensaio contém, simultaneamente,
a ambição e a ambiguidade, ou melhor, a dualidade do seu propósito: Less is Enough pode de certo modo
entender-se como um grito de guerra (“Menos,
basta!”) contra todas as estéticas do despojamento; englobando a
arquitectura povera e o minimalismo,
assim como as instalações low-tech de
activistas urbanos (mas de onde estão excluídos os seus projectos). No entanto,
pode-se ler igualmente no título uma palavra de ordem (“Menos, é bem suficiente…”) em favor de um ascetismo radical, que
não se aplica tanto à forma, mas à prática da arquitectura, às suas condições
de produção e uso e à sua dimensão política (de onde se depreende um aspecto
autobiográfico).
1. Pier Vittorio Aureli, Less is Enough. On Architecture and Asceticism, Moscovo, Strelka
Press, 2013.
2. O Strelka Institut, fundado em 2009 em
Moscovo, é uma instituição de pós-graduação privada de arquitectura, design e
media em que os três primeiros anos foram coordenados pela AMO.
3. Ver a monografia
Dogma: 11 projects (AA Publications,
2013), catálogo da exposição Architectural Association em Novembro de 2013.
4. Aureli passou
pelo Instituto Berlage e ensina na Architectural Association, sendo professor
convidado em Yale e na ETH de Zurique. Escreve regularmente para as revistas
Log, AA Files, Hunch, Oase, etc.
5. Pier Vittorio Aureli, The Project of Autonomy: Politics and Architecture within and against
Capitalism, New York, The Monacelli Press, 2008.
6. Pier Vittorio Aureli, The Possibility of an Absolute Architecture,
Cambridge (MA), MIT Press, 2012.
Pobres Ricos
Aureli denuncia o entusiasmo actual pelo less is more, que analisa como uma
derrota face à condição predatória do capitalismo, isto é, uma demissão face a essa
imposição de fazer sempre mais com menos; uma imposição particularmente
imperiosa quando toma a forma de políticas de austeridade, que as instâncias de
regulação da economia mundial prescrevem sempre como remédio miraculoso (mas
que Aureli vê como uma simples intensificação da racionalidade económica). A
obra emergente de Aureli enraíza-se nessa recente conjuntura económica e
financeira. Desde o “rebentar da bolha” do subprime,
no Verão de 2007, que os debates económicos e políticos (e as suas ramificações
nos diferentes campos de actividade) são, de facto, ritmados pelo refrão da
“crise” e pelas suas estrofes sobre uma austeridade necessária (de ares
neoliberais bem conhecidos). E desse ponto de vista, sem dúvida, que tanto a
especulação imobiliária e o sector da construção como a complacência de uma
certa starchitecture, dedicada à
produção de valor nesse mercado (lucrativo, mas caprichoso), foram peças-chave
de uma profunda recessão económica que afectou um milieu arquitectónico, já de si atravessado por uma surda
culpabilidade. Mas, afinal, qual o significado desta “crise” para os
arquitectos?
Com certeza, o seu efeito mais tangível sobre
o milieu é material: uma notável
diminuição dos investimentos na construção e todas as suas consequências
mecânicas, ou seja, menos dinheiro, menos encomendas, menos trabalho, menos
margem de manobra, menos poder de negociação, mais concorrência, etc. Mas será
que isso é verdadeiramente novo? Ao longo do século XX, a profissão não cessou
de se fragilizar, de se empobrecer, de se precarizar. A fractura entre a proletarização da maioria
e a starização de alguns parece ser
uma constante no meio arquitectónico contemporâneo. Longe de ser uma causa,
esta enésima crise não faz mais que agravar, sem bloquear de modo algum, as
lógicas que diminuem há muito tempo a margem de manobra dos arquitectos:
industrialização e integração massiva de materiais, ferramentas e
procedimentos, proliferação cacofónica de normas, fragmentação das competências
e dos financiamentos, etc. Estas lógicas sobrepõem-se, conjugam-se e tendem a
produzir espaços cada vez mais genéricos e empobrecidos que de revestimentos em
tapa-misérias, de superfícies planas em caixas lisas, soam vazias e envelhecem
mal – caducidade alimentada em ciclo por essa mesma indústria da construção; em
suma, o equivalente arquitectónico do que o Ikea é no design de mobiliário.
A novidade não reside mais nas evoluções
lentas e densas, mas antes no modo em que, desde da dita crise, os arquitectos
falam, pensam e agem. Os
trabalhos de Aureli são o sintoma de uma época onde o enquadramento teórico e crítico
da arquitectura se alterou, onde as hierarquias de valores parecem estar em
profunda reconfiguração, se é que não foram derrubadas. Em primeiro lugar, ainda que a reduzida elite
da profissão continue a portar-se bem, ela deve lidar com um debate
arquitectónico atravessado por uma nova moral do less que (por uma mecânica de autodisciplina dos meios de adaptação
ao contexto) apresenta a economia de meios como virtude e a inibição como
programa estético. O “ascetismo” de Aureli, participa, enquanto pretende
criticar, numa certa maneira de falar de arquitectura onde a arrogância, a
frivolidade ou o humor cederam o seu lugar à contrição, ao sério ou à
gravidade, e onde reina um léxico deliberadamente pós-icónico: “simplicidade”
(Reiner de Graaf), “raridade” (Jeremy Till), “banalidade” (Jacques Lucan),
“normalidade” (Bruno Marchand), “neutralidade” (Kempe Thill), “modéstia” (Guy
Desgrandchamps), “frugalidade” ou “sobriedade” (Rural Studio). Mesmo se isso
não se traduza inevitavelmente em mais encomendas, os arquitectos mais
admirados de hoje não são Frank Gehry, Jean Nouvel ou Zaha Hadid mas antes,
dentro deste género, Valerio Olgiati, Christian Kerez, Caruso-St John, Lacaton
Vassal ou Robbrecht & Daem. Colectivamente, quando juntamos os ateliers
mais jovens – como 6a (Londres), Baukuh (Milão), Office KGDVS (Bruxelas),
Berger & Berger (Paris), Office Winhov (Amsterdão), Rivera-López
Arquitectos (Barcelona) – estes arquitectos definem uma nebulosa do less em que os contornos são seguramente
incertos, mas de presença significativa no céu da arquitectura
contemporânea.
Juntando-se a outros comentadores actuais, Aureli
destaca, no entanto, um paradoxo de pesos: o despojamento formal é hoje a face
das sociedades mais opulentas, um dos sinais últimos de luxo. Numa importante
passagem do seu ensaio, Aureli ataca John Pawson, arauto do minimalismo chique,
questionando uma produção que é “minimal até ao ponto de se denunciar a si
mesma enquanto cliché” [7], mas sobretudo, Peter Zumthor, o antigo ebanista tornado
monge-soldado da arquitectura, artesão-eremita a cuja obra rara e sofisticada
os seus colegas devotam um verdadeiro culto [8]. Tendo ganho o Pritzker, em 2009, e autor de um pavilhão
da Galeria Serpentine em Londres, em 2011, este último será, segundo Aureli, o
exemplo tipo de uma perversão do ascetismo e da sua recuperação pelo sistema
capitalista, da mesma espécie do despojamento monástico exibido por Steve Jobs,
tanto no seu estilo de vida como no design
dos produtos da marca da maçã. Mais genericamente,
como mostrou Peter Sloterdijk bem antes de Aureli, o lancinante discurso sobre
a penúria, o empobrecimento e o declínio aparecem como o atributo principal de
um processo regular de enriquecimento dos países desenvolvidos, que a filosofia
analisa como um acordo passado entre a “sociedade do deleite”, onde reina a
abundância, e a “antiga miséria” de que ela se emancipou: “seja qual for a
ideia expressa no espaço público, é a mentira da miséria que redige o texto.
Todos os discursos estão sujeitos à lei consistente de retraduzir no jargão da
miséria o luxo que chegou ao poder” [9]. A arquitectura não é excepção à regra.
7. Less is
enough, p.43.
9. Peter Sloterdijk, Ecumes: Spheres III, Paris, Maren Sell,
2005, p. 605.
Rupturas de compromissos
Um outro aspecto das mudanças pós-crise que
ilustra o livro de Aureli é a revalorização do heroísmo e das diversas posturas
de compromisso do arquitecto. Para o provar, a evolução dos temas da bienal de
Veneza é eloquente. Antes de 2008, celebravam-se as inovações conceptuais e as
fantasias paramétricas [10] ou o boom da
urbanização mundial (outro nome da especulação imobiliária desenfreada) [11]. A partir de 2008,
as quatro bienais foram de baixo perfil, profetizando o fim ou a ultrapassagem
da arquitectura, observando a sua diluição em desenvolvimentos sociais e programáticos,
reivindicando a sua responsabilidade cívica e política, ou interrogando o seu
papel perdido na produção dos nossos ambientes genéricos [12]. A última bienal,
intitulada pelo seu curador Alejandro Aravena “News from the front”, assinalou
já até que ponto a reviravolta axiológica foi validada e recuperada pelas
grandes instituições arquitectónicas. Depois de Wang Shu, em 2012, não veio a
Fundação Pritzker atribuir o seu 41º prémio ao mesmo Aravena, “que incarna o
retorno da arquitectura mais comprometida socialmente”? [13]
10. “Next” (dir.
Deyan Sudjic, 2002) e sobretudo “Metamorph” (dir. Kurt W. Forster, 2004).
11. “Cities: Architecture and Society” (dir. Richard
Burdett, 2006).
12. “Out There: Architecture beyond Building” (dir.
Aaron Betsky, 2008), “People Meet in Architecture” (dir. Kazuo Sejima, 2010),
“Common Ground” (dir. David Chipperfield, 2012) et “Fundamentals” (dir. Rem
Koolhaas, 2014).
13.
http://www.pritzkerprize.com/2016/jury-citation
No campo da crítica, Aureli encarna ao mesmo
tempo uma nova geração, um novo estilo e novos espaços editoriais. Nas duas
décadas anteriores, o autor-tipo (uma mistura de Mark Wigley, Ole Bouman ou
Hans Ulrich Obrist) era de preferência nórdico, brilhante, da moda, metropolitano. Comentador pragmático e multidisciplinar, por
vezes complacente, das vanguardas “starchitecturales”,
fazia carreira na indústria cultural (museus, galerias, centros ou bienais de arquitectura...).
À semelhança de Aureli, o autor-tipo é hoje mais erudito, austero, reaccionário,
politicamente responsável e adepto de um retorno à “disciplina” arquitectónica.
Proveniente do Sul da Europa, faz carreira enquanto docente nas escolas
prestigiadas do Norte (EPFL, ETH, Architectural Association, Harvard ou Columbia)
e publica, a propósito dessas arquitecturas despojadas e herméticas, longos
ensaios nas revistas assinaladas na exposição “Archizines” [14]. O arquétipo (e a
melhor) destas novas revistas é, sem dúvida, a San Rocco, baptizada a partir de um projecto não realizado de Aldo
Rossi e Giorgio Grassi (Monza, 1971). Fundada em 2010 por dois antigos
camaradas de Aureli no Instituto Berlage em Amsterdão (Kersten Geers, do
atelier Office KGDVS, e Pier Paolo Tamburelli, do atelier Baukuh), a San Rocco propõe, num ritmo lento de
números temáticos, um conjunto de ensaios histórico-temáticos, apresentados sempre
num tom elegante e erudito, ilustrados a preto e branco e compostos essencialmente
por desenhos. À “pureza e radicalidade” reivindicadas na sua forma [15], junta-se um humor
editorial ambiente que privilegia em
vez do cartão telado o papel brilhante,
as mises en pages rigorosas às fantasias
gráficas, as citações de Walter Benjamin às de Gilles Deleuze.
14. Exposição
itinerante mostrando uma selecção de novas revistas de arquitectura publicadas
desde o início do século (cf. http://www.archizines.com).
15. http://www.sanrocco.info/info
Sobre-qualificado e hiper-produtivo, Aureli
tem o perfil tipo. Tendo sido aluno de Manfredo Tafuri e de Bernardo Secchi na
IUAV, de Elia Zenghelis no Instituto Berlage [16]; é próximo de Peter
Eisenman [17]. À volta das referências que mobiliza nos seus numerosos
escritos, pode-se perceber a herança de uns e de outros: a teoria crítica
alemã, a cultura marxista italiana, a Tendenza,
a arquitectura radical, o neoclassicismo francês, Piranesi, Adolf Loos, Ludwig
Hilberseimer, Cedric Price, Oswald Mathias Ungers, etc. Referências de que ele
se apropria na perspectiva não tanto de um projecto estritamente historiográfico,
mas de uma análise política do estado actual da arquitectura a fim de refundar
uma forma de radicalidade, de restituir ao arquitecto uma capacidade de
resistir às lógicas espaciais e territoriais do capitalismo, tendo em vista até
mesmo a sua emancipação.
16. Defendeu uma tese
em urbanismo na IUAV, com orientação de Bernardo Secchi («La città arcipelago e il suo progetto», 2004.), e em arquitectura
na TU Delft, sobre a direcção de Elia Zenghelis («The Possibility of an Absolute Architecture», 2005)
17. Autor de onze artigos na Log, Aureli escreveu o prefácio da
edição italiana da tese de Eisenman (“Chi ha paura della forma?”, in Peter
Eisenman, La base formale
dell’architettura moderna, Pendragon, 2009, p. 7 – 36), e participou na
edição italiana da sua obra completa (Milan, Electa, 2007). Contribuiu para a
sua exposição “The Piranesi Variations” (Biennale de Venise, 2012).
É forçoso constatar que ele não vê qualquer
saída nesse prolífico campo do activismo cívico e urbano, nessa abundância de
iniciativas micro-locais conduzidas por arquitectos geralmente organizados em
colectivos multidisciplinares (participação dos habitantes, projectos
socioculturais, reutilização dos materiais, eco-construções low tech, desenvolvimento de agricultura
urbana, economia de partilha e cooperativas de habitação). Estas abordagens,
que o arquitecto e investigador inglês Jeremy Till engloba sob o termo
intraduzível de spatial agency [18], insinuam-se com
entusiasmo e optimismo nas margens da realidade para torná-la habitável e reformá-la
a partir de baixo, substituindo-se aos debilitados canais de intervenção dos Estado-providência
moribundos. É precisamente isto que Aureli critica. Fazendo sua a velha
retórica revolucionária, ele interpreta a reforma como uma consolidação do status quo, e estas práticas como a boa
consciência de um sistema que se deveria derrubar de forma radical. Ele
denuncia igualmente nas suas intervenções (celebradas, entretanto, pelas
instituições culturais) [19], uma atitude ambígua em relação à miséria e à
precariedade: “O caso a caso e a auto-organização promovidas pelos arquitectos
activistas são perfeitamente complementares com a ideia de que os cidadãos não
estão mais assegurados por uma infra-estrutura mínima para viverem. A
estetização das condições de vida das pessoas pobres deixadas a si próprias,
ocupando (ilegalmente) edifícios, torna-se uma opção atraente desde que não
haja mais habitação social. É ainda mais problemático que estas práticas
participativas procurem compensar a situação com estratégias que encaram como
normal e até criativa a crescente precariedade das nossas vidas.” [20]
18. Ver Tatjana Schneider, Nishat Awan, Jeremy Till
(dir.), Spatial Agency: Other Ways of
Doing Architecture, Londres, Routledge, 2011.
19. Ver, por
exemplo, as exposições recentes do CCA: “Désolé plus d’essence” (2007),
“Actions : comment s’approprier la ville” (2008), “Trajets” (2010), “L’autre
architecte” (2015).
20. Pier Vittorio Aureli, “The Theology
of Tabula Rasa: Walter Benjamin and Architecture in the Age of Precarity”, Log
nº 27, Primavera 2013, p. 127.
Anunciando este ponto de vista num colóquio
na rede Scarcity and Creativity in the
Built Environment (Escassez e Criatividade
no Ambiente Construído) presidida por Jeremy Till na Universidade de Westminster,
em Fevereiro de 2013, Aureli suscita a polémica [21]. O crítico Justin
McGuirk sentiu-se visado e cruzou galhardetes. Alguns meses antes, este tinha
recebido, com o colectivo Urban Think
Tank, o Leão de Ouro de melhor projecto em Veneza pela Torre David/Gran Horizonte. Em vez de um projecto, tratava-se de um
trabalho documentário sobre o processo de ocupação e de transformação ilegal de
uma torre inacabada de 45 andares, em Caracas, por um milhar de famílias pobres
(finalmente despejadas, via manu militari,
em Julho de 2014 a seguir à sobre-mediatização pós-Biennale).
Transformando-se em mediadores empáticos de uma situação espontânea, os
arquitectos contentaram-se em assinalá-la, filmá-la, fotografá-la (Iwan Baan), expô-la,
em suma, em estetizá-la, abrindo o flanco à acusação de slum porn [22]. O duelo previsível entre Aureli e McGuirk foi
finalmente fecundado e concluído, alguns meses mais tarde, na publicação da Strelka
Press (então dirigida pelo segundo), de Less
is Enough, onde o primeiro pôde desenvolver as suas posições.
21. Pier Vittorio Aureli, “The Theology of Tabula
Rasa”, conferência no colóquio Within the
Limits of Scarcity: Rethinking Space, City and Practices, Londres, 27
Fevereiro 2013.
22. Ver Dan Hancox, “Enough Slum Porn”,
The Architectural Review vol. 235, nº 1411, Setembro 2014, p. 22 – 25.
Usufruir sem entraves
No livro, Aureli considera o ascetismo como a
única salvação. Paradoxalmente, ele analisa-o também como uma das causas do
problema. Revisitando a história do monaquismo, ele apoia-se principalmente
sobre o pressuposto de Max Weber segundo o qual o capitalismo tem a sua raiz no
calvinismo, que desvia em si mesmo a tradição religiosa do ascetismo [23]. Este último, enquanto
prática de restrições voluntárias que implicam à vez a abstinência como
promessa de um ganho e a culpabilização permanente do sujeito, seria, aplicado
à economia, o motor do mesmo enriquecimento metódico da burguesia protestante
no Norte da Europa entre os séculos XVI e XIX.
23. Max Weber, A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904).
No entanto, ao lado dessa prática puritana,
secular – “intramundana” diria Weber – que estruturou o capitalismo, uma outra
forma de ascetismo surge como antítese, como crítica radical: o ascetismo
“ultramundano”, isto é, fora do mundo, que consiste, em se retirar, em se
extrair das suas contingências, em romper com as suas normas para se consagrar
plenamente a uma vida espiritual regida por um dogma moral deliberadamente
consentido. Ao infligir-se esta disciplina, afastando-se assim do mundo, o
asceta conquista uma autonomia face ao poder político dominante. Durante as
conferências, Aureli exalta em particular o ascetismo dos franciscanos, ordem mendicante
que reivindicava um estado de “elevada pobreza” [24], rejeitava a
propriedade privada e acabava por encarnar, na viragem do século XV, uma ameaça
ao papado que se tornou ele próprio uma potência política e económica. É precisamente
aí que se situa o argumento charneira do livro de Aureli e talvez de todo o seu
trabalho. Disciplinado por potentes processos de normalização, o sujeito (e
principalmente o sujeito criador que é o arquitecto) não terá outra solução do
que instaurar a sua própria regra, de adoptar a sua própria ascese para escapar
àqueles que a impõem: “é precisamente porque a austeridade económica é uma
economia subjectiva, manipulando a esfera moral e ética do sujeito, que o
ascetismo oferece também a possibilidade de o emancipar de uma tal manipulação”
[25].
24. Ver o livro de
Giorgio Agamben, De la très haute
pauvreté. Règles et forme de vie, Paris,
Payot & Rivages, 2013 (2011).
25. Less
is Enough, p. 31.
Mas como traduzir este programa em termos
arquitecturais? No seu livro, Aureli permanece bastante vago e desloca
oportunamente o seu propósito para o campo da arte, evocando apenas seis
“células habitáveis” brancas e nuas que o artista Absalon concebeu, na passagem
dos anos noventa, para recolher, conter, restringir e libertar o seu corpo. Não
se trata, portanto, de um manifesto arquitectónico, mas de uma sugestão para
fazer das nossas próprias existências um projecto autónomo, “de ver as nossas
vidas, em todos os seus aspectos materiais e organizacionais, como alavancas de
mudança” [26]. Tendo ele mesmo partilhado durante os seus seis anos de
estudo de arquitectura em Veneza a vida monacal do Convento dei Gesuati onde
ficou hospedado [27], Aureli aparenta nutrir um gosto pronunciado pela
ascese, considerada tanto como ars
vivendi como uma “forma fundamental de resistência”, até mesmo como uma
muito nietzschiana “manifestação da
vontade de poder do homem” [28]. Em Outubro de 2014, a galeria londrina Betts Project propunha um outro olhar do
arquitecto asceta ao expor uma série de desenhos seus, mais exactamente 33,
produzidos desde 2001, como uma espécie de ritual gráfico nocturno, realizado
sobre grandes folhas brancas em formato quadrado (50x50 centímetros). Na procura de uma “arquitectura não
composicional” (piscar de olho aos Archizoom),
estes desenhos representam, em linha, em preto e branco, invariavelmente em
plano-perspectiva num único ponto de fuga, variações espaciais abstractas sobre
a base de um quadrado. No catálogo, o arquitecto e editor Thomas Weaver reparava,
maravilhado: “Trabalhando sobre [estes desenhos] todas as noites ou quase
durante a última década, Aureli certamente encontrou lá uma forma de fuga e
desapego”. [29]
26. Ibidem,
p.35.
27. Ver Thomas Weaver, “Afterword”, in The Marriage of Reason and Squalor,
Milan, Black Square Press, 2014, p. 74.
28. Less is
Enough, p. 10 e p. 35.
29. Thomas Weaver, op. cit., p. 75.
É este o paradoxo da postura de Aureli, que
pretende tirar a sua força da auto-repressão e da contrição voluntária e
afirmar a sua presença por um ostensível vinco. Considerando que “para realizar
um edifício, os arquitectos devem explicitamente ou implicitamente,
conscientemente ou não, submeter-se aos imperativos do sistema de poder no
lugar” [30], o atelier Dogma produziu pouco e não construiu. Como os
arquitectos radicais da geração precedente, ele de facto retira-se deste
terreno e produz artesanalmente arquitectura de papel, projectos de projecto,
cuja escala e potência (e até violência) formal são inversamente proporcionais
à probabilidade de serem construídos, e em que a simplicidade assumida é a
exacta simetria da complexidade inextricável da realidade. Financiado
essencialmente pelos salários de docentes, de conferências ou de curadoria de
exposições dos seus dois associados, “Dogma – escreveu Christophe van Gerrewey
– funciona como um grupo de artistas aristocratas famintos, fazendo coisas que
conduziriam qualquer atelier de arquitectura do mundo à falência” [31].
30. Ver Pier
Vittorio Aureli et al. (dir.), Brussels — A Manifesto: Toward the Capital
of Europe, Rotterdam, NAI, 2007, p. 7.
31. Christophe van Gerrewey, “How Soon
Is Now? Ten Problems and Paradoxes in the Work of Dogma”, Log nº 35, Outono
2015, p. 44.
Crítico ou crístico
Numa época de pragmatismo neoliberal, de
pluralismo estético e de torpor social-democrata – todos os traços que ele
abomina da nossa “sociedade que fez do debate contínuo a fonte de um poder
[totalitário]” [32] –, Aureli fascina pela sua capacidade de rearmar a
arquitectura de uma dimensão crítica e de reanimar, com algum virtuosidade, uma
“música” teórico-política que há muito não escutávamos desde os grandes textos
de Venturi, Rossi, Banham, Branzi ou do primeiro Koolhaas (com o risco de dar
às suas produções uma tonalidade um pouco retro). No entanto, como assinalou com
humor o crítico Austin Williams na The
Architectural Review [33], a diferença é ténue entre a privação sofrida e a
abstinência consentida, entre o less is
more e o less is less, entre a
retirada gloriosa das contingências e o isolamento inofensivo, e mesmo o
autismo. Um dos primeiros projectos da Dogma ilustra bem este paradoxo. Em
associação com Kersten Geers e David Van Severen do atelier Office, tratava-se
de um concurso internacional para o Master
Plan de Sejong (2005), a nova capital administrativa da Coreia do Sul, uma
espécie de Brasília coreana para 500 000 habitantes. De nenhum modo intimidados
pela amplitude do assunto, nem pela incerteza programática, política e
económica aferente, os associados ocasionais propõem um surpreendente projecto,
anunciando as recorrentes temáticas nas suas respectivas obras anteriores:
obsessão pelo quadrado, pela grelha, pela questão dos limites e do perímetro,
mistura de formalismo assumido e neutralidade estilística.
Aproximadamente 400 edifícios cruciformes,
idênticos e implantados de maneira regular, definem (e subdividem) uma área
quadrada de 73 quilómetros quadrados. Distinguindo-se claramente da paisagem
envolvente, este campo quadriculado por estes edifícios-muros produziam “uma
cidade de peças em vez de uma cidade de ruas, uma cidade de quadros em vez de
uma cidade de monumentos”, uma instalação arquitectónica em grande escala mais
do que “um cenário programático abstracto controlado por diagramas” [34]; uma mistura de
plano Voisin, de Exodus, de No-Stop City e
das “doze cidades ideais” dos Superstudio.
32. Pier Vittorio Aureli, “Architecture Refuses”, in
Hans Ulrich Obrist (dir.), Manifesto
Marathon, Cologne, Walther König, 2013, p. 45
33. Ver Austin Williams, “Pier Vittorio Aureli Makes a
Virtue out of Deprivation”, The Architectural Review, 5 Dezembro 2013
(http://www.architectural-review.com).
34. Dogma/Office, “Obstruction. A Grammar
for the City”, AA Files nº 54, Verão 2006, p. 5.
A radicalidade do projecto surpreende o júri –
incluindo David Harvey, Nader Tehrani, Winy Maas e Arata Isozaki – e inflama os
seus debates. No lugar de um laureado, o júri designa cinco, entre os quais
Dogma/Office. Esta indecisão, acrescida das crises internas de gestão de obra, fará
com que o projecto seja confiado em 2007 a um grupo de ateliers internacionais
(Balmori Associates/H Associates/Haeahn Architecture). Inaugurada em 2012,
Sejong City, cidade genérica dominada por uma espectacular mega-estrutura de
contornos informes, é finalmente a antítese das visões dos Dogma/Office. Estes,
demasiado “autónomos” porventura, não conseguiram transpor as fronteiras da
disciplina arquitectónica e perderam a oportunidade de transformar o real do
que elas se abstraíram.
Apesar do seu semifracasso, este projecto é
interessante porque dá um apanhado da comunidade de ideias, e até mesmo de
ideais, de onde emergiu Aureli. O foco principal parece situar-se no Instituto
Berlage, no início da década 2000, em torno da figura de Elia Zanghelis, onde foram
estudantes primeiro Geers e Aureli e depois Martino Tattara e Pier Paolo
Tamburelli (os melhores desde Koolhaas, como confessa o arquitecto grego de
quem também tinha sido professor na AA, no final dos anos 60). Apesar das suas
diferenças, estes jovens arquitectos da mesma geração constroem-se numa crítica
partilhada da produção arquitectural desenfreada dos Países Baixos nos anos noventa,
incarnando o acordo momentâneo entre viragem política neoliberal, boom imobiliário e estética neovanguardista. Neste Super-Dutch [35] que se encontra em
processo de saturação e sufoco, rejeitam sistematicamente o imaginário
superabundante, a cultura hipermodernista, o gosto pelos datascapes, a obsessão pelo programa, o optimismo pragmático para
com o mercado, o oportunismo formal e o fresh
conservatism [36]. Aureli, o asceta italiano anticapitalista, não pode
estar senão em contraste total com este contexto; mesmo tendo uma relação um
pouco mais ambígua com a figura de Rem Koolhaas, que ele vê como “um dos mais assinaláveis
sintomas do pós-fordismo” [37], do qual este está impregnado na primeira parte da sua
obra (veja-se o projecto Exodus ou o
projecto para a reabilitação da prisão de Arnhem, ou a fascinação de Koolhaas
pelo muro de Berlim e pela figura do arquipélago).
35. Ver Bart Lootsma, Super-Dutch: New Architecture in Netherlands, New York, Princeton
Architectural Press, 2000.
36. Ver Roemer Van Toorn, “Fresh Conservatism:
Landscapes of Normality”, Quaderns nº 219, 1998, p. 90 – 99.
37. “A project is a lifelong thing; if
you see it, you will only see it at the end” (entrevista com Peter Eisenman),
Log nº 28, Verão 2013, p. 73.
Contra a adesão festiva e dionisíaca ao mundo
globalizado e neoliberal que caracterizava a dutchness arquitectónica, esta nova geração atingida pela crise,
encarnada por Aureli ou Geers, adopta, por antítese, uma distância apolínea e
crítica. O italiano reivindica uma arquitectura “desprovida de estilo [...],
silenciosa, deliberadamente monumental e radicalmente anónima” a fim de
“suspender as celebrações inúteis e de postular configurações espaciais
inteligíveis” [38]. No seio do Office, mas também do laboratório FORM (a
arquitectura como forma) que ele dirige na EPFL, o belga persegue a sua busca por
uma “arquitectura sem conteúdo”, capaz de “triunfar dos limites impostos pela
realidade, pelo programa, pela exigência de performance, porque a sua essência
escapa a qualquer descrição”. [39]
38. Pier Vittorio Aureli, “Dogma Architecture”, Domus
nº 900, Fevereiro 2007, p. 67.
39. Kersten Geers, “Words without
Thoughts never to Heaven Go”, 2G nº 63, 2012, p. 165.
Sacrifício ou sacerdócio
Uma divergência essencial separa, contudo,
Geers e Aureli e explica que as suas trajectórias se tenham bifurcado após o
seu início comum. O primeiro, associado a David Van Severen, desde 2005, traduz
os seus ideais em edifícios: a famosa casa em Buggenhout (2007-2010), o liceu
agrícola de Leuven (2010-2015) ou a futura sede da televisão suíça em Lausanne
(em construção). Estas realizações demonstram todas um rigor do dispositivo,
uma precisão incisiva dos limites espaciais, uma pobreza e nudeza dos
materiais. Metendo as suas intenções à prova da realidade e vice-versa os dois
arquitectos flamengos assumem, contudo, um grau irredutível de ambiguidade, de
inconclusão, de imperfeição. “A perfeição está votada ao fracasso” [40], reconhece Geers.
O amor (ou a fé) absoluto(a) que Aureli alimenta
relativamente à arquitectura leva-o a uma posição muito mais intransigente: o
da retirada, como já vimos. O arquitecto sacrifica-se em nome da arquitectura,
da ideia pura que tem dela; coloca-se deliberadamente fora do jogo comum,
fecha-se nas suas próprias regras, impondo a sua própria ascese, para conjurar
o encolhimento, o empobrecimento, a austeridade de que ele é vítima lá fora. Com
esta atitude, Aureli procura ao mesmo tempo salvar a arquitectura e restituir
ao arquitecto o poder perdido sobre ela, a sua capacidade de agir, isto é,
tanto um enobling (enobrecimento)
como um enabling (o tornar capaz),
para recuperar um jogo de palavras intraduzível de Koolhaas. [41]
Além do caso particular (e extremo) de
Aureli, a figura do sacrifício que ele mobiliza fala-nos da nossa época
inquieta. Sacrificar, é ao mesmo tempo perder e ganhar, perder para ganhar mas,
acima de tudo, “fazer” (facere) “o
que é sagrado” (sacer) significa
“tornar sagrado”. É um acto ritual e simbólico (frequentemente de abandono, de
perda, de destruição, de assassínio, de less)
pelo qual um grupo confere uma sacralidade a alguém ou a qualquer coisa. Numa
época em que as situações contruídas são cada vez mais secularizadas, banalizadas,
insignificantes, submetidas aos determinismos mais prosaicos, a tentação é
grande para os arquitectos de reagir reivindicando uma transcendência do acto
arquitectural, em ressacralizar a
arquitectura, exaltando-a como indizível, ou seja, de um silêncio piedoso que
fará calar a cacofonia do mundo.
41. Rem Koolhaas, “Eno/abling
Architecture”, in Robert E. Somol (dir.), Autonomy
and Ideology: Positioning an Avant-Garde in America, New York, The
Monacelli Press, 1997, p. 292.
Neste clima, os fundamentalismos são muitos, tanto
em arquitectura como nos outros domínios. Em 2009, uma revista de estudantes de
uma escola de arquitectura parisiense adoptou o nome eloquente de Cosa Mentale (o gosto do latim,
partilhado por Aureli, parece um sintoma dessa defesa autonomista e
disciplinar) e publica em cada número o seu “credo”, que recita em cada página
um terço de pérolas essencialistas: “a luz é matéria, estrutura e geometria”,
“a arquitectura é um jogo na ordem pura” ou, ainda, “o acto arquitectural é uma
perturbação do equilíbrio de um território” [42]. Sacralizar a arquitectura é, assim, uma tentativa
desesperada de conjurar a impotência crescente de um grande número de arquitectos
e de expiar, ao mesmo tempo, o formalismo complacente da pequena elite. Talvez
porque são mais vulneráveis à escassez da encomenda, os estudantes, os jovens
arquitectos são hoje particularmente sensíveis a esta teologia arquitectónica
que combina puritanismo disciplinar, paixão pelas origens, discurso hermético e
culto do objecto depurado. Ela possui, de facto, a virtude não negligenciável
de lhes oferecer razões de esperança, uma identidade imemorial do arquitecto
que os deixe orgulhosos, mas também dos mistérios transcendentes para ocupar as
suas meditações.
42. “Credo”, Cosa Mentale: Carnets d’architecture et de
résistance nº 0, Novembro 2009, p. 24 – 25.
Igualmente popular, o outro caminho diametral
de salvação que lhes é oferecido reside no florescente domínio do activismo
urbano, do socially oriented design, do militantismo
eco-arquitectural. Além disso, muitas vezes colocam-se de costas voltadas estas
duas perspectivas: de um lado, a introversão na disciplina, do outro, a sua
passagem a um activismo mais aberto; de um lado a procura interna de um campo
comum, de um mais pequeno denominador estilístico, de outro, uma
desmultiplicação para todos os lados e transfronteiriça das formas de acção.
Como Jeremy Till [43], Aureli opõe diametralmente, no seu ensaio, estes “dois
tipos de reacção”: “alguns arquitectos tentaram traduzir este ethos da austeridade em termos
unicamente formais. Outros reivindicam uma abordagem mais socialmente
responsável, tentando ir além dos limites tradicionais da arquitectura” [44]. Mas esta oposição
maniqueísta entre dentro e fora, autonomia e heteronomia, será verdadeiramente
satisfatória? Quer seja reacção ou o reconhecimento pelos arquitectos da sua
responsabilidade na crise, estes dois caminhos não são eles, antes de mais,
duas faces da mesma moeda, duas versões diferentes da figura do sacrifício?
43. Ver Jeremy
Till, «De l’austérité à la rareté», Criticat
nº 16, Outono 2015.
44. Less
is Enough, p. 4.
Enough is
enough
O activismo poderia, de facto, definir-se
como uma outra forma de enobrecer a acção arquitectónica sem sacralizar o
objecto (pelo sacrifício da sua fantasia formal, da sua sofisticação
ornamental, da sua complexidade estrutural), mas heroizando, sacrificando, até, a figura mesma do arquitecto, que
sacrifica a pureza do seu estatuto socioprofissional para se aventurar, de
bolsos vazios e as mãos cheias de ferramentas díspares emprestadas de outras
disciplinas, sobre o terreno dos bidonvilles,
dos campos de refugiados, dos territórios deserdados afectados pela
desindustrialização, mundialização, austeridade económica, pelas tormentas
geopolíticas ou por tudo isso simultaneamente. De Anna Heringer a Teddy Cruz,
de Raumlabor ao Atelier d’Architecture Autogérée, de Santiago Cirugeda aos
Studio Mumbai, as revistas e as exposições estão cheias destes novos heróis,
missionários “fora dos muros” da arquitectura, artilhados de todos os prémios.
É notável que, neste campo do heroísmo profético, os media celebrem sempre mais
o arquitecto que a arquitectura, enquanto que no ascetismo formal parece ser
sempre o contrário (quem conhece a biografia de Valerio Oligiati ou de Adam
Caruso?).
As linhas de tensão mais interessantes não
estão, contudo, em encontrar uma oposição entre estes dois caminhos, que são em
si mesmo duas estratégias do less,
duas reacções à escassez real ou imposta. Procuremo-las antes no interior de
cada campo, distinguindo, de um lado, esta figura equívoca (e espectacular) do
sacrifício sob todas as suas formas, e do outro, o do compromisso, que poderíamos
definir como uma inscrição voluntária e persistente no real, no que há de mais
ambíguo e incerto, a fim de transformá-lo a partir do interior, a fim de
colocar os seus ideais não apenas em acção mas em discussão, a longo prazo. O
sacrifício coloca à distância, impõe o silêncio e mantém o respeito (como uma
arma apontada). O compromisso é imersivo e relacional, estabelece relações de
força, mas sobretudo de inteligência com as coisas. Transversal aos nossos dois
“campos”, este género de distinção permite superar as oposições fáceis e
preconcebidas (notavelmente a “disciplinar”), de cartografar de outro modo e
mais astutamente a arquitectura contemporânea, de compreender o que, por
exemplo, separa o profeta jesuíta Patrick Bouchain e o mediador do quotidiano
que é o benedito Pierre Bernard [45], o gesto mediático do Urban Think Tank em Caracas e a
longa aventura cooperativa anónima de Kraftwerk em Zurique [46], o ascetismo
glorioso e vão de Pier Vittorio Aureli e o idealismo impuro e fecundo de
Kersten Geers. Distinguir claramente estas abordagens arquitectónicas, que o
dogmatismo simplificador produzido pelos neofundamentalistas (e quase assumido
pelo fundador da Dogma) tende a ordenar arbitrariamente nas mesmas categorias, eis
um projecto urgente para a crítica.
45. Ver Pierre
Chabard, “Pour le meilleur et pour le Pile”, Criticat nº 14, Outono 2014.
46. Ver Valéry
Didelon, “Kraftwerk, vers un nouvel âge de la cooperation”, Criticat nº 11, Primavera 2013.
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Nota da
Edição
Artigo publicado originalmente na revista francesa Criticat nº17, na Primavera de 2016. A
tradução foi feita por Edgar Brito e Alice Clanet a partir do original em
francês. Revisão de texto por Pedro Levi Bismarck. Com o artigo irá ser
publicado um pequeno suplemento “Fazer
menos com menos: arquitecturas de crise” que colecciona um conjunto de
textos seleccionados pelo autor Pierre Chabard e que integraram a publicação
original.
Imagens
1. São Francisco de Assis, gravura de Francesco de
Villamena, século XVIII
2. Capas de três
livros de Pier Vittorio Aureli, “Less is enough”, “The project of Autonomy”,
“The Possibility of an Absolute Architecture”.
3. Catálogo da Bienal de Veneza 2012, “Common Ground”.
4. Capas da Revista San Rocco e do livro “Torre David”.
5. Pier Vittorio Aureli, desenhos da série “The Marriage
of Reason and Squalor”, realizados entre 2001 e 2014.
6. Dogma/Office KGDVS, A Grammar for the City”, projecto para a nova capital
administrative da Coreia do Sul, 2005.
7. Office KGDVS, render do projecto para o Liceu Agrícola
de Lovaina, 2010-15.
Pierre
Chabard
Arquitecto e membro da redacção da Criticat, ensina história na ENSA Paris-La Villete.
Ficha
Técnica
Data de
publicação: 29.03.2017
Etiqueta:
Arquitecturas \ espaços