Utilitas, firmitas, austeritas • Pierre Chabard





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O clima culpabilizante que se instalou com a última crise e as campanhas de rigor orçamental que a deveriam supostamente remediar foram particularmente interiorizadas pelos arquitectos, que as traduziram em estéticas da pobreza, ascetismos formais e outras éticas da modéstia. O arquitecto Pier Vittorio Aureli, autor em 2013 de Less is Enough ilustra e discute tanto esta reacção como a eclosão de novos fundamentalismos arquitectónicos.
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Suplemento

A obra [1] é curta, incisiva, num estilo um pouco escolástico, ornamentada de locuções latinas, desprovida de imagens e sobriamente formatada, como é apanágio das edições do (muito koolhaasiano) Strelka Institute [2]. O autor, Pier Vittorio Aureli (nascido em Roma, em 1973), apresenta-se ao mesmo tempo como arquitecto e teórico. Para a cidade, produz com a Dogma (atelier fundado em 2002 em Bruxelas com Martino Tattara) poucos projectos, frequentemente de grande escala e numa estética intransigente e repetitiva, produzidos em grande medida sem qualquer encomenda e nunca realizados [3]. Nesse panorama, as suas aulas e as suas publicações tornaram-se, nos últimos dez anos, incontornáveis dentro dos milieux académicos da arquitectura, onde as suas posições se distinguem, pela radicalidade, do magma teórico envolvente [4]. No seu primeiro livro [5], editado em 2008 pelo Buell Center da Universidade de Columbia (numa colecção dirigida por Joan Ockman), Aureli exalta a noção da “autonomia”, tal como foi discutida em Itália nos anos de chumbo, tanto na arquitectura (por Aldo Rossi ou Archizoom) como na política (pelo movimento operaista de Mario Tronti). Em 2012, num trabalho mais histórico [6], ele procura na obra de Palladio, Piranesi, Boullée ou Ungers aquilo que é “absoluto” na forma arquitectónica, ou seja, a sua capacidade para instaurar uma ordem que é tanto formal como política.

O título do seu último ensaio contém, simultaneamente, a ambição e a ambiguidade, ou melhor, a dualidade do seu propósito: Less is Enough pode de certo modo entender-se como um grito de guerra (“Menos, basta!”) contra todas as estéticas do despojamento; englobando a arquitectura povera e o minimalismo, assim como as instalações low-tech de activistas urbanos (mas de onde estão excluídos os seus projectos). No entanto, pode-se ler igualmente no título uma palavra de ordem (“Menos, é bem suficiente…”) em favor de um ascetismo radical, que não se aplica tanto à forma, mas à prática da arquitectura, às suas condições de produção e uso e à sua dimensão política (de onde se depreende um aspecto autobiográfico).
1. Pier Vittorio Aureli, Less is Enough. On Architecture and Asceticism, Moscovo, Strelka Press, 2013.
2. O Strelka Institut, fundado em 2009 em Moscovo, é uma instituição de pós-graduação privada de arquitectura, design e media em que os três primeiros anos foram coordenados pela AMO.
3. Ver a monografia Dogma: 11 projects (AA Publications, 2013), catálogo da exposição Architectural Association em Novembro de 2013.
4. Aureli passou pelo Instituto Berlage e ensina na Architectural Association, sendo professor convidado em Yale e na ETH de Zurique. Escreve regularmente para as revistas Log, AA Files, Hunch, Oase, etc.
5. Pier Vittorio Aureli, The Project of Autonomy: Politics and Architecture within and against Capitalism, New York, The Monacelli Press, 2008.
6. Pier Vittorio Aureli, The Possibility of an Absolute Architecture, Cambridge (MA), MIT Press, 2012.





Pobres Ricos
Aureli denuncia o entusiasmo actual pelo less is more, que analisa como uma derrota face à condição predatória do capitalismo, isto é, uma demissão face a essa imposição de fazer sempre mais com menos; uma imposição particularmente imperiosa quando toma a forma de políticas de austeridade, que as instâncias de regulação da economia mundial prescrevem sempre como remédio miraculoso (mas que Aureli vê como uma simples intensificação da racionalidade económica). A obra emergente de Aureli enraíza-se nessa recente conjuntura económica e financeira. Desde o “rebentar da bolha” do subprime, no Verão de 2007, que os debates económicos e políticos (e as suas ramificações nos diferentes campos de actividade) são, de facto, ritmados pelo refrão da “crise” e pelas suas estrofes sobre uma austeridade necessária (de ares neoliberais bem conhecidos). E desse ponto de vista, sem dúvida, que tanto a especulação imobiliária e o sector da construção como a complacência de uma certa starchitecture, dedicada à produção de valor nesse mercado (lucrativo, mas caprichoso), foram peças-chave de uma profunda recessão económica que afectou um milieu arquitectónico, já de si atravessado por uma surda culpabilidade. Mas, afinal, qual o significado desta “crise” para os arquitectos?

Com certeza, o seu efeito mais tangível sobre o milieu é material: uma notável diminuição dos investimentos na construção e todas as suas consequências mecânicas, ou seja, menos dinheiro, menos encomendas, menos trabalho, menos margem de manobra, menos poder de negociação, mais concorrência, etc. Mas será que isso é verdadeiramente novo? Ao longo do século XX, a profissão não cessou de se fragilizar, de se empobrecer, de se precarizar.  A fractura entre a proletarização da maioria e a starização de alguns parece ser uma constante no meio arquitectónico contemporâneo. Longe de ser uma causa, esta enésima crise não faz mais que agravar, sem bloquear de modo algum, as lógicas que diminuem há muito tempo a margem de manobra dos arquitectos: industrialização e integração massiva de materiais, ferramentas e procedimentos, proliferação cacofónica de normas, fragmentação das competências e dos financiamentos, etc. Estas lógicas sobrepõem-se, conjugam-se e tendem a produzir espaços cada vez mais genéricos e empobrecidos que de revestimentos em tapa-misérias, de superfícies planas em caixas lisas, soam vazias e envelhecem mal – caducidade alimentada em ciclo por essa mesma indústria da construção; em suma, o equivalente arquitectónico do que o Ikea é no design de mobiliário.


A novidade não reside mais nas evoluções lentas e densas, mas antes no modo em que, desde da dita crise, os arquitectos falam, pensam e agem. Os trabalhos de Aureli são o sintoma de uma época onde o enquadramento teórico e crítico da arquitectura se alterou, onde as hierarquias de valores parecem estar em profunda reconfiguração, se é que não foram derrubadas.  Em primeiro lugar, ainda que a reduzida elite da profissão continue a portar-se bem, ela deve lidar com um debate arquitectónico atravessado por uma nova moral do less que (por uma mecânica de autodisciplina dos meios de adaptação ao contexto) apresenta a economia de meios como virtude e a inibição como programa estético. O “ascetismo” de Aureli, participa, enquanto pretende criticar, numa certa maneira de falar de arquitectura onde a arrogância, a frivolidade ou o humor cederam o seu lugar à contrição, ao sério ou à gravidade, e onde reina um léxico deliberadamente pós-icónico: “simplicidade” (Reiner de Graaf), “raridade” (Jeremy Till), “banalidade” (Jacques Lucan), “normalidade” (Bruno Marchand), “neutralidade” (Kempe Thill), “modéstia” (Guy Desgrandchamps), “frugalidade” ou “sobriedade” (Rural Studio). Mesmo se isso não se traduza inevitavelmente em mais encomendas, os arquitectos mais admirados de hoje não são Frank Gehry, Jean Nouvel ou Zaha Hadid mas antes, dentro deste género, Valerio Olgiati, Christian Kerez, Caruso-St John, Lacaton Vassal ou Robbrecht & Daem. Colectivamente, quando juntamos os ateliers mais jovens – como 6a (Londres), Baukuh (Milão), Office KGDVS (Bruxelas), Berger & Berger (Paris), Office Winhov (Amsterdão), Rivera-López Arquitectos (Barcelona) – estes arquitectos definem uma nebulosa do less em que os contornos são seguramente incertos, mas de presença significativa no céu da arquitectura contemporânea. 

Juntando-se a outros comentadores actuais, Aureli destaca, no entanto, um paradoxo de pesos: o despojamento formal é hoje a face das sociedades mais opulentas, um dos sinais últimos de luxo. Numa importante passagem do seu ensaio, Aureli ataca John Pawson, arauto do minimalismo chique, questionando uma produção que é “minimal até ao ponto de se denunciar a si mesma enquanto cliché” [7], mas sobretudo, Peter Zumthor, o antigo ebanista tornado monge-soldado da arquitectura, artesão-eremita a cuja obra rara e sofisticada os seus colegas devotam um verdadeiro culto [8]. Tendo ganho o Pritzker, em 2009, e autor de um pavilhão da Galeria Serpentine em Londres, em 2011, este último será, segundo Aureli, o exemplo tipo de uma perversão do ascetismo e da sua recuperação pelo sistema capitalista, da mesma espécie do despojamento monástico exibido por Steve Jobs, tanto no seu estilo de vida como no design dos produtos da marca da maçã.  Mais genericamente, como mostrou Peter Sloterdijk bem antes de Aureli, o lancinante discurso sobre a penúria, o empobrecimento e o declínio aparecem como o atributo principal de um processo regular de enriquecimento dos países desenvolvidos, que a filosofia analisa como um acordo passado entre a “sociedade do deleite”, onde reina a abundância, e a “antiga miséria” de que ela se emancipou: “seja qual for a ideia expressa no espaço público, é a mentira da miséria que redige o texto. Todos os discursos estão sujeitos à lei consistente de retraduzir no jargão da miséria o luxo que chegou ao poder” [9]. A arquitectura não é excepção à regra.
7. Less is enough, p.43.
8. Ver o blog de Conrad Newel
9. Peter Sloterdijk, Ecumes: Spheres III, Paris, Maren Sell, 2005, p. 605.





Rupturas de compromissos
Um outro aspecto das mudanças pós-crise que ilustra o livro de Aureli é a revalorização do heroísmo e das diversas posturas de compromisso do arquitecto. Para o provar, a evolução dos temas da bienal de Veneza é eloquente. Antes de 2008, celebravam-se as inovações conceptuais e as fantasias paramétricas [10] ou o boom da urbanização mundial (outro nome da especulação imobiliária desenfreada) [11]. A partir de 2008, as quatro bienais foram de baixo perfil, profetizando o fim ou a ultrapassagem da arquitectura, observando a sua diluição em desenvolvimentos sociais e programáticos, reivindicando a sua responsabilidade cívica e política, ou interrogando o seu papel perdido na produção dos nossos ambientes genéricos [12]. A última bienal, intitulada pelo seu curador Alejandro Aravena “News from the front”, assinalou já até que ponto a reviravolta axiológica foi validada e recuperada pelas grandes instituições arquitectónicas. Depois de Wang Shu, em 2012, não veio a Fundação Pritzker atribuir o seu 41º prémio ao mesmo Aravena, “que incarna o retorno da arquitectura mais comprometida socialmente”? [13]
10. “Next” (dir. Deyan Sudjic, 2002) e sobretudo “Metamorph” (dir. Kurt W. Forster, 2004).
11. “Cities: Architecture and Society” (dir. Richard Burdett, 2006).
12. “Out There: Architecture beyond Building” (dir. Aaron Betsky, 2008), “People Meet in Architecture” (dir. Kazuo Sejima, 2010), “Common Ground” (dir. David Chipperfield, 2012) et “Fundamentals” (dir. Rem Koolhaas, 2014).
13. http://www.pritzkerprize.com/2016/jury-citation

No campo da crítica, Aureli encarna ao mesmo tempo uma nova geração, um novo estilo e novos espaços editoriais. Nas duas décadas anteriores, o autor-tipo (uma mistura de Mark Wigley, Ole Bouman ou Hans Ulrich Obrist) era de preferência nórdico, brilhante, da moda, metropolitano. Comentador pragmático e multidisciplinar, por vezes complacente, das vanguardas “starchitecturales”, fazia carreira na indústria cultural (museus, galerias, centros ou bienais de arquitectura...). À semelhança de Aureli, o autor-tipo é hoje mais erudito, austero, reaccionário, politicamente responsável e adepto de um retorno à “disciplina” arquitectónica. Proveniente do Sul da Europa, faz carreira enquanto docente nas escolas prestigiadas do Norte (EPFL, ETH, Architectural Association, Harvard ou Columbia) e publica, a propósito dessas arquitecturas despojadas e herméticas, longos ensaios nas revistas assinaladas na exposição “Archizines” [14]. O arquétipo (e a melhor) destas novas revistas é, sem dúvida, a San Rocco, baptizada a partir de um projecto não realizado de Aldo Rossi e Giorgio Grassi (Monza, 1971). Fundada em 2010 por dois antigos camaradas de Aureli no Instituto Berlage em Amsterdão (Kersten Geers, do atelier Office KGDVS, e Pier Paolo Tamburelli, do atelier Baukuh), a San Rocco propõe, num ritmo lento de números temáticos, um conjunto de ensaios histórico-temáticos, apresentados sempre num tom elegante e erudito, ilustrados a preto e branco e compostos essencialmente por desenhos. À “pureza e radicalidade” reivindicadas na sua forma [15], junta-se um humor editorial ambiente que privilegia em vez do cartão telado o papel brilhante, as mises en pages rigorosas às fantasias gráficas, as citações de Walter Benjamin às de Gilles Deleuze.
14. Exposição itinerante mostrando uma selecção de novas revistas de arquitectura publicadas desde o início do século (cf. http://www.archizines.com).
15. http://www.sanrocco.info/info

Sobre-qualificado e hiper-produtivo, Aureli tem o perfil tipo. Tendo sido aluno de Manfredo Tafuri e de Bernardo Secchi na IUAV, de Elia Zenghelis no Instituto Berlage [16]; é próximo de Peter Eisenman [17]. À volta das referências que mobiliza nos seus numerosos escritos, pode-se perceber a herança de uns e de outros: a teoria crítica alemã, a cultura marxista italiana, a Tendenza, a arquitectura radical, o neoclassicismo francês, Piranesi, Adolf Loos, Ludwig Hilberseimer, Cedric Price, Oswald Mathias Ungers, etc. Referências de que ele se apropria na perspectiva não tanto de um projecto estritamente historiográfico, mas de uma análise política do estado actual da arquitectura a fim de refundar uma forma de radicalidade, de restituir ao arquitecto uma capacidade de resistir às lógicas espaciais e territoriais do capitalismo, tendo em vista até mesmo a sua emancipação.
16. Defendeu uma tese em urbanismo na IUAV, com orientação de Bernardo Secchi («La città arcipelago e il suo progetto», 2004.), e em arquitectura na TU Delft, sobre a direcção de Elia Zenghelis («The Possibility of an Absolute Architecture», 2005)
17. Autor de onze artigos na Log, Aureli escreveu o prefácio da edição italiana da tese de Eisenman (“Chi ha paura della forma?”, in Peter Eisenman, La base formale dell’architettura moderna, Pendragon, 2009, p. 7 – 36), e participou na edição italiana da sua obra completa (Milan, Electa, 2007). Contribuiu para a sua exposição “The Piranesi Variations” (Biennale de Venise, 2012).

É forçoso constatar que ele não vê qualquer saída nesse prolífico campo do activismo cívico e urbano, nessa abundância de iniciativas micro-locais conduzidas por arquitectos geralmente organizados em colectivos multidisciplinares (participação dos habitantes, projectos socioculturais, reutilização dos materiais, eco-construções low tech, desenvolvimento de agricultura urbana, economia de partilha e cooperativas de habitação). Estas abordagens, que o arquitecto e investigador inglês Jeremy Till engloba sob o termo intraduzível de spatial agency [18], insinuam-se com entusiasmo e optimismo nas margens da realidade para torná-la habitável e reformá-la a partir de baixo, substituindo-se aos debilitados canais de intervenção dos Estado-providência moribundos. É precisamente isto que Aureli critica. Fazendo sua a velha retórica revolucionária, ele interpreta a reforma como uma consolidação do status quo, e estas práticas como a boa consciência de um sistema que se deveria derrubar de forma radical. Ele denuncia igualmente nas suas intervenções (celebradas, entretanto, pelas instituições culturais) [19], uma atitude ambígua em relação à miséria e à precariedade: “O caso a caso e a auto-organização promovidas pelos arquitectos activistas são perfeitamente complementares com a ideia de que os cidadãos não estão mais assegurados por uma infra-estrutura mínima para viverem. A estetização das condições de vida das pessoas pobres deixadas a si próprias, ocupando (ilegalmente) edifícios, torna-se uma opção atraente desde que não haja mais habitação social. É ainda mais problemático que estas práticas participativas procurem compensar a situação com estratégias que encaram como normal e até criativa a crescente precariedade das nossas vidas.” [20]
18. Ver Tatjana Schneider, Nishat Awan, Jeremy Till (dir.), Spatial Agency: Other Ways of Doing Architecture, Londres, Routledge, 2011.
19. Ver, por exemplo, as exposições recentes do CCA: “Désolé plus d’essence” (2007), “Actions : comment s’approprier la ville” (2008), “Trajets” (2010), “L’autre architecte” (2015).
20. Pier Vittorio Aureli, “The Theology of Tabula Rasa: Walter Benjamin and Architecture in the Age of Precarity”, Log nº 27, Primavera 2013, p. 127.

Anunciando este ponto de vista num colóquio na rede Scarcity and Creativity in the Built Environment (Escassez e Criatividade no Ambiente Construído) presidida por Jeremy Till na Universidade de Westminster, em Fevereiro de 2013, Aureli suscita a polémica [21]. O crítico Justin McGuirk sentiu-se visado e cruzou galhardetes. Alguns meses antes, este tinha recebido, com o colectivo Urban Think Tank, o Leão de Ouro de melhor projecto em Veneza pela Torre David/Gran Horizonte. Em vez de um projecto, tratava-se de um trabalho documentário sobre o processo de ocupação e de transformação ilegal de uma torre inacabada de 45 andares, em Caracas, por um milhar de famílias pobres (finalmente despejadas, via manu militari, em Julho de 2014 a seguir à sobre-mediatização pós-Biennale). Transformando-se em mediadores empáticos de uma situação espontânea, os arquitectos contentaram-se em assinalá-la, filmá-la, fotografá-la (Iwan Baan), expô-la, em suma, em estetizá-la, abrindo o flanco à acusação de slum porn [22]. O duelo previsível entre Aureli e McGuirk foi finalmente fecundado e concluído, alguns meses mais tarde, na publicação da Strelka Press (então dirigida pelo segundo), de Less is Enough, onde o primeiro pôde desenvolver as suas posições.
21. Pier Vittorio Aureli, “The Theology of Tabula Rasa”, conferência no colóquio Within the Limits of Scarcity: Rethinking Space, City and Practices, Londres, 27 Fevereiro 2013.
22. Ver Dan Hancox, “Enough Slum Porn”, The Architectural Review vol. 235, nº 1411, Setembro 2014, p. 22 – 25.





Usufruir sem entraves
No livro, Aureli considera o ascetismo como a única salvação. Paradoxalmente, ele analisa-o também como uma das causas do problema. Revisitando a história do monaquismo, ele apoia-se principalmente sobre o pressuposto de Max Weber segundo o qual o capitalismo tem a sua raiz no calvinismo, que desvia em si mesmo a tradição religiosa do ascetismo [23]. Este último, enquanto prática de restrições voluntárias que implicam à vez a abstinência como promessa de um ganho e a culpabilização permanente do sujeito, seria, aplicado à economia, o motor do mesmo enriquecimento metódico da burguesia protestante no Norte da Europa entre os séculos XVI e XIX.
23. Max Weber, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904).

No entanto, ao lado dessa prática puritana, secular – “intramundana” diria Weber – que estruturou o capitalismo, uma outra forma de ascetismo surge como antítese, como crítica radical: o ascetismo “ultramundano”, isto é, fora do mundo, que consiste, em se retirar, em se extrair das suas contingências, em romper com as suas normas para se consagrar plenamente a uma vida espiritual regida por um dogma moral deliberadamente consentido. Ao infligir-se esta disciplina, afastando-se assim do mundo, o asceta conquista uma autonomia face ao poder político dominante. Durante as conferências, Aureli exalta em particular o ascetismo dos franciscanos, ordem mendicante que reivindicava um estado de “elevada pobreza” [24], rejeitava a propriedade privada e acabava por encarnar, na viragem do século XV, uma ameaça ao papado que se tornou ele próprio uma potência política e económica. É precisamente aí que se situa o argumento charneira do livro de Aureli e talvez de todo o seu trabalho. Disciplinado por potentes processos de normalização, o sujeito (e principalmente o sujeito criador que é o arquitecto) não terá outra solução do que instaurar a sua própria regra, de adoptar a sua própria ascese para escapar àqueles que a impõem: “é precisamente porque a austeridade económica é uma economia subjectiva, manipulando a esfera moral e ética do sujeito, que o ascetismo oferece também a possibilidade de o emancipar de uma tal manipulação” [25].
24. Ver o livro de Giorgio Agamben, De la très haute pauvreté. Règles et forme de vie, Paris, Payot & Rivages, 2013 (2011).
25. Less is Enough, p. 31.

Mas como traduzir este programa em termos arquitecturais? No seu livro, Aureli permanece bastante vago e desloca oportunamente o seu propósito para o campo da arte, evocando apenas seis “células habitáveis” brancas e nuas que o artista Absalon concebeu, na passagem dos anos noventa, para recolher, conter, restringir e libertar o seu corpo. Não se trata, portanto, de um manifesto arquitectónico, mas de uma sugestão para fazer das nossas próprias existências um projecto autónomo, “de ver as nossas vidas, em todos os seus aspectos materiais e organizacionais, como alavancas de mudança” [26]. Tendo ele mesmo partilhado durante os seus seis anos de estudo de arquitectura em Veneza a vida monacal do Convento dei Gesuati onde ficou hospedado [27], Aureli aparenta nutrir um gosto pronunciado pela ascese, considerada tanto como ars vivendi como uma “forma fundamental de resistência”, até mesmo como uma muito nietzschiana “manifestação da vontade de poder do homem” [28]. Em Outubro de 2014, a galeria londrina Betts Project propunha um outro olhar do arquitecto asceta ao expor uma série de desenhos seus, mais exactamente 33, produzidos desde 2001, como uma espécie de ritual gráfico nocturno, realizado sobre grandes folhas brancas em formato quadrado (50x50 centímetros).  Na procura de uma “arquitectura não composicional” (piscar de olho aos Archizoom), estes desenhos representam, em linha, em preto e branco, invariavelmente em plano-perspectiva num único ponto de fuga, variações espaciais abstractas sobre a base de um quadrado. No catálogo, o arquitecto e editor Thomas Weaver reparava, maravilhado: “Trabalhando sobre [estes desenhos] todas as noites ou quase durante a última década, Aureli certamente encontrou lá uma forma de fuga e desapego”. [29]
26. Ibidem, p.35.
27. Ver Thomas Weaver, “Afterword”, in The Marriage of Reason and Squalor, Milan, Black Square Press, 2014, p. 74.
28. Less is Enough, p. 10 e p. 35.
29. Thomas Weaver, op. cit., p. 75.

É este o paradoxo da postura de Aureli, que pretende tirar a sua força da auto-repressão e da contrição voluntária e afirmar a sua presença por um ostensível vinco. Considerando que “para realizar um edifício, os arquitectos devem explicitamente ou implicitamente, conscientemente ou não, submeter-se aos imperativos do sistema de poder no lugar” [30], o atelier Dogma produziu pouco e não construiu. Como os arquitectos radicais da geração precedente, ele de facto retira-se deste terreno e produz artesanalmente arquitectura de papel, projectos de projecto, cuja escala e potência (e até violência) formal são inversamente proporcionais à probabilidade de serem construídos, e em que a simplicidade assumida é a exacta simetria da complexidade inextricável da realidade. Financiado essencialmente pelos salários de docentes, de conferências ou de curadoria de exposições dos seus dois associados, “Dogma – escreveu Christophe van Gerrewey – funciona como um grupo de artistas aristocratas famintos, fazendo coisas que conduziriam qualquer atelier de arquitectura do mundo à falência” [31].
30. Ver Pier Vittorio Aureli et al. (dir.), Brussels — A Manifesto: Toward the Capital of Europe, Rotterdam, NAI, 2007, p. 7.
31. Christophe van Gerrewey, “How Soon Is Now? Ten Problems and Paradoxes in the Work of Dogma”, Log nº 35, Outono 2015, p. 44.






Crítico ou crístico
Numa época de pragmatismo neoliberal, de pluralismo estético e de torpor social-democrata – todos os traços que ele abomina da nossa “sociedade que fez do debate contínuo a fonte de um poder [totalitário]” [32] –, Aureli fascina pela sua capacidade de rearmar a arquitectura de uma dimensão crítica e de reanimar, com algum virtuosidade, uma “música” teórico-política que há muito não escutávamos desde os grandes textos de Venturi, Rossi, Banham, Branzi ou do primeiro Koolhaas (com o risco de dar às suas produções uma tonalidade um pouco retro). No entanto, como assinalou com humor o crítico Austin Williams na The Architectural Review [33], a diferença é ténue entre a privação sofrida e a abstinência consentida, entre o less is more e o less is less, entre a retirada gloriosa das contingências e o isolamento inofensivo, e mesmo o autismo. Um dos primeiros projectos da Dogma ilustra bem este paradoxo. Em associação com Kersten Geers e David Van Severen do atelier Office, tratava-se de um concurso internacional para o Master Plan de Sejong (2005), a nova capital administrativa da Coreia do Sul, uma espécie de Brasília coreana para 500 000 habitantes. De nenhum modo intimidados pela amplitude do assunto, nem pela incerteza programática, política e económica aferente, os associados ocasionais propõem um surpreendente projecto, anunciando as recorrentes temáticas nas suas respectivas obras anteriores: obsessão pelo quadrado, pela grelha, pela questão dos limites e do perímetro, mistura de formalismo assumido e neutralidade estilística.
Aproximadamente 400 edifícios cruciformes, idênticos e implantados de maneira regular, definem (e subdividem) uma área quadrada de 73 quilómetros quadrados. Distinguindo-se claramente da paisagem envolvente, este campo quadriculado por estes edifícios-muros produziam “uma cidade de peças em vez de uma cidade de ruas, uma cidade de quadros em vez de uma cidade de monumentos”, uma instalação arquitectónica em grande escala mais do que “um cenário programático abstracto controlado por diagramas” [34]; uma mistura de plano Voisin, de Exodus, de No-Stop City e das “doze cidades ideais” dos Superstudio.
32. Pier Vittorio Aureli, “Architecture Refuses”, in Hans Ulrich Obrist (dir.), Manifesto Marathon, Cologne, Walther König, 2013, p. 45
33. Ver Austin Williams, “Pier Vittorio Aureli Makes a Virtue out of Deprivation”, The Architectural Review, 5 Dezembro 2013 (http://www.architectural-review.com).
34. Dogma/Office, “Obstruction. A Grammar for the City”, AA Files nº 54, Verão 2006, p. 5.

A radicalidade do projecto surpreende o júri – incluindo David Harvey, Nader Tehrani, Winy Maas e Arata Isozaki – e inflama os seus debates. No lugar de um laureado, o júri designa cinco, entre os quais Dogma/Office. Esta indecisão, acrescida das crises internas de gestão de obra, fará com que o projecto seja confiado em 2007 a um grupo de ateliers internacionais (Balmori Associates/H Associates/Haeahn Architecture). Inaugurada em 2012, Sejong City, cidade genérica dominada por uma espectacular mega-estrutura de contornos informes, é finalmente a antítese das visões dos Dogma/Office. Estes, demasiado “autónomos” porventura, não conseguiram transpor as fronteiras da disciplina arquitectónica e perderam a oportunidade de transformar o real do que elas se abstraíram.

Apesar do seu semifracasso, este projecto é interessante porque dá um apanhado da comunidade de ideias, e até mesmo de ideais, de onde emergiu Aureli. O foco principal parece situar-se no Instituto Berlage, no início da década 2000, em torno da figura de Elia Zanghelis, onde foram estudantes primeiro Geers e Aureli e depois Martino Tattara e Pier Paolo Tamburelli (os melhores desde Koolhaas, como confessa o arquitecto grego de quem também tinha sido professor na AA, no final dos anos 60). Apesar das suas diferenças, estes jovens arquitectos da mesma geração constroem-se numa crítica partilhada da produção arquitectural desenfreada dos Países Baixos nos anos noventa, incarnando o acordo momentâneo entre viragem política neoliberal, boom imobiliário e estética neovanguardista. Neste Super-Dutch [35] que se encontra em processo de saturação e sufoco, rejeitam sistematicamente o imaginário superabundante, a cultura hipermodernista, o gosto pelos datascapes, a obsessão pelo programa, o optimismo pragmático para com o mercado, o oportunismo formal e o fresh conservatism [36]. Aureli, o asceta italiano anticapitalista, não pode estar senão em contraste total com este contexto; mesmo tendo uma relação um pouco mais ambígua com a figura de Rem Koolhaas, que ele vê como “um dos mais assinaláveis sintomas do pós-fordismo” [37], do qual este está impregnado na primeira parte da sua obra (veja-se o projecto Exodus ou o projecto para a reabilitação da prisão de Arnhem, ou a fascinação de Koolhaas pelo muro de Berlim e pela figura do arquipélago).
35. Ver Bart Lootsma, Super-Dutch: New Architecture in Netherlands, New York, Princeton Architectural Press, 2000.
36. Ver Roemer Van Toorn, “Fresh Conservatism: Landscapes of Normality”, Quaderns nº 219, 1998, p. 90 – 99.
37. “A project is a lifelong thing; if you see it, you will only see it at the end” (entrevista com Peter Eisenman), Log nº 28, Verão 2013, p. 73.

Contra a adesão festiva e dionisíaca ao mundo globalizado e neoliberal que caracterizava a dutchness arquitectónica, esta nova geração atingida pela crise, encarnada por Aureli ou Geers, adopta, por antítese, uma distância apolínea e crítica. O italiano reivindica uma arquitectura “desprovida de estilo [...], silenciosa, deliberadamente monumental e radicalmente anónima” a fim de “suspender as celebrações inúteis e de postular configurações espaciais inteligíveis” [38]. No seio do Office, mas também do laboratório FORM (a arquitectura como forma) que ele dirige na EPFL, o belga persegue a sua busca por uma “arquitectura sem conteúdo”, capaz de “triunfar dos limites impostos pela realidade, pelo programa, pela exigência de performance, porque a sua essência escapa a qualquer descrição”. [39]
38. Pier Vittorio Aureli, “Dogma Architecture”, Domus nº 900, Fevereiro 2007, p. 67.
39. Kersten Geers, “Words without Thoughts never to Heaven Go”, 2G nº 63, 2012, p. 165.





Sacrifício ou sacerdócio
Uma divergência essencial separa, contudo, Geers e Aureli e explica que as suas trajectórias se tenham bifurcado após o seu início comum. O primeiro, associado a David Van Severen, desde 2005, traduz os seus ideais em edifícios: a famosa casa em Buggenhout (2007-2010), o liceu agrícola de Leuven (2010-2015) ou a futura sede da televisão suíça em Lausanne (em construção). Estas realizações demonstram todas um rigor do dispositivo, uma precisão incisiva dos limites espaciais, uma pobreza e nudeza dos materiais. Metendo as suas intenções à prova da realidade e vice-versa os dois arquitectos flamengos assumem, contudo, um grau irredutível de ambiguidade, de inconclusão, de imperfeição. “A perfeição está votada ao fracasso” [40], reconhece Geers.

O amor (ou a fé) absoluto(a) que Aureli alimenta relativamente à arquitectura leva-o a uma posição muito mais intransigente: o da retirada, como já vimos. O arquitecto sacrifica-se em nome da arquitectura, da ideia pura que tem dela; coloca-se deliberadamente fora do jogo comum, fecha-se nas suas próprias regras, impondo a sua própria ascese, para conjurar o encolhimento, o empobrecimento, a austeridade de que ele é vítima lá fora. Com esta atitude, Aureli procura ao mesmo tempo salvar a arquitectura e restituir ao arquitecto o poder perdido sobre ela, a sua capacidade de agir, isto é, tanto um enobling (enobrecimento) como um enabling (o tornar capaz), para recuperar um jogo de palavras intraduzível de Koolhaas. [41]
Além do caso particular (e extremo) de Aureli, a figura do sacrifício que ele mobiliza fala-nos da nossa época inquieta. Sacrificar, é ao mesmo tempo perder e ganhar, perder para ganhar mas, acima de tudo, “fazer” (facere) “o que é sagrado” (sacer) significa “tornar sagrado”. É um acto ritual e simbólico (frequentemente de abandono, de perda, de destruição, de assassínio, de less) pelo qual um grupo confere uma sacralidade a alguém ou a qualquer coisa. Numa época em que as situações contruídas são cada vez mais secularizadas, banalizadas, insignificantes, submetidas aos determinismos mais prosaicos, a tentação é grande para os arquitectos de reagir reivindicando uma transcendência do acto arquitectural, em ressacralizar a arquitectura, exaltando-a como indizível, ou seja, de um silêncio piedoso que fará calar a cacofonia do mundo.
41. Rem Koolhaas, “Eno/abling Architecture”, in Robert E. Somol (dir.), Autonomy and Ideology: Positioning an Avant-Garde in America, New York, The Monacelli Press, 1997, p. 292.

Neste clima, os fundamentalismos são muitos, tanto em arquitectura como nos outros domínios. Em 2009, uma revista de estudantes de uma escola de arquitectura parisiense adoptou o nome eloquente de Cosa Mentale (o gosto do latim, partilhado por Aureli, parece um sintoma dessa defesa autonomista e disciplinar) e publica em cada número o seu “credo”, que recita em cada página um terço de pérolas essencialistas: “a luz é matéria, estrutura e geometria”, “a arquitectura é um jogo na ordem pura” ou, ainda, “o acto arquitectural é uma perturbação do equilíbrio de um território” [42]. Sacralizar a arquitectura é, assim, uma tentativa desesperada de conjurar a impotência crescente de um grande número de arquitectos e de expiar, ao mesmo tempo, o formalismo complacente da pequena elite. Talvez porque são mais vulneráveis à escassez da encomenda, os estudantes, os jovens arquitectos são hoje particularmente sensíveis a esta teologia arquitectónica que combina puritanismo disciplinar, paixão pelas origens, discurso hermético e culto do objecto depurado. Ela possui, de facto, a virtude não negligenciável de lhes oferecer razões de esperança, uma identidade imemorial do arquitecto que os deixe orgulhosos, mas também dos mistérios transcendentes para ocupar as suas meditações.
42. “Credo”, Cosa Mentale: Carnets d’architecture et de résistance nº 0, Novembro 2009, p. 24 – 25.

Igualmente popular, o outro caminho diametral de salvação que lhes é oferecido reside no florescente domínio do activismo urbano, do socially oriented design, do militantismo eco-arquitectural. Além disso, muitas vezes colocam-se de costas voltadas estas duas perspectivas: de um lado, a introversão na disciplina, do outro, a sua passagem a um activismo mais aberto; de um lado a procura interna de um campo comum, de um mais pequeno denominador estilístico, de outro, uma desmultiplicação para todos os lados e transfronteiriça das formas de acção. Como Jeremy Till [43], Aureli opõe diametralmente, no seu ensaio, estes “dois tipos de reacção”: “alguns arquitectos tentaram traduzir este ethos da austeridade em termos unicamente formais. Outros reivindicam uma abordagem mais socialmente responsável, tentando ir além dos limites tradicionais da arquitectura” [44]. Mas esta oposição maniqueísta entre dentro e fora, autonomia e heteronomia, será verdadeiramente satisfatória? Quer seja reacção ou o reconhecimento pelos arquitectos da sua responsabilidade na crise, estes dois caminhos não são eles, antes de mais, duas faces da mesma moeda, duas versões diferentes da figura do sacrifício?
43. Ver Jeremy Till, «De l’austérité à la rareté», Criticat nº 16, Outono 2015.
44. Less is Enough, p. 4.






Enough is enough
O activismo poderia, de facto, definir-se como uma outra forma de enobrecer a acção arquitectónica sem sacralizar o objecto (pelo sacrifício da sua fantasia formal, da sua sofisticação ornamental, da sua complexidade estrutural), mas heroizando, sacrificando, até, a figura mesma do arquitecto, que sacrifica a pureza do seu estatuto socioprofissional para se aventurar, de bolsos vazios e as mãos cheias de ferramentas díspares emprestadas de outras disciplinas, sobre o terreno dos bidonvilles, dos campos de refugiados, dos territórios deserdados afectados pela desindustrialização, mundialização, austeridade económica, pelas tormentas geopolíticas ou por tudo isso simultaneamente. De Anna Heringer a Teddy Cruz, de Raumlabor ao Atelier d’Architecture Autogérée, de Santiago Cirugeda aos Studio Mumbai, as revistas e as exposições estão cheias destes novos heróis, missionários “fora dos muros” da arquitectura, artilhados de todos os prémios. É notável que, neste campo do heroísmo profético, os media celebrem sempre mais o arquitecto que a arquitectura, enquanto que no ascetismo formal parece ser sempre o contrário (quem conhece a biografia de Valerio Oligiati ou de Adam Caruso?).

As linhas de tensão mais interessantes não estão, contudo, em encontrar uma oposição entre estes dois caminhos, que são em si mesmo duas estratégias do less, duas reacções à escassez real ou imposta. Procuremo-las antes no interior de cada campo, distinguindo, de um lado, esta figura equívoca (e espectacular) do sacrifício sob todas as suas formas, e do outro, o do compromisso, que poderíamos definir como uma inscrição voluntária e persistente no real, no que há de mais ambíguo e incerto, a fim de transformá-lo a partir do interior, a fim de colocar os seus ideais não apenas em acção mas em discussão, a longo prazo. O sacrifício coloca à distância, impõe o silêncio e mantém o respeito (como uma arma apontada). O compromisso é imersivo e relacional, estabelece relações de força, mas sobretudo de inteligência com as coisas. Transversal aos nossos dois “campos”, este género de distinção permite superar as oposições fáceis e preconcebidas (notavelmente a “disciplinar”), de cartografar de outro modo e mais astutamente a arquitectura contemporânea, de compreender o que, por exemplo, separa o profeta jesuíta Patrick Bouchain e o mediador do quotidiano que é o benedito Pierre Bernard [45], o gesto mediático do Urban Think Tank em Caracas e a longa aventura cooperativa anónima de Kraftwerk em Zurique [46], o ascetismo glorioso e vão de Pier Vittorio Aureli e o idealismo impuro e fecundo de Kersten Geers. Distinguir claramente estas abordagens arquitectónicas, que o dogmatismo simplificador produzido pelos neofundamentalistas (e quase assumido pelo fundador da Dogma) tende a ordenar arbitrariamente nas mesmas categorias, eis um projecto urgente para a crítica.
45. Ver Pierre Chabard, “Pour le meilleur et pour le Pile”, Criticat nº 14, Outono 2014.
46. Ver Valéry Didelon, “Kraftwerk, vers un nouvel âge de la cooperation”, Criticat nº 11, Primavera 2013.


Nota da Edição
Artigo publicado originalmente na revista francesa Criticat nº17, na Primavera de 2016. A tradução foi feita por Edgar Brito e Alice Clanet a partir do original em francês. Revisão de texto por Pedro Levi Bismarck. Com o artigo irá ser publicado um pequeno suplemento “Fazer menos com menos: arquitecturas de crise” que colecciona um conjunto de textos seleccionados pelo autor Pierre Chabard e que integraram a publicação original.

Imagens
1. São Francisco de Assis, gravura de Francesco de Villamena, século XVIII
2. Capas de três livros de Pier Vittorio Aureli, “Less is enough”, “The project of Autonomy”, “The Possibility of an Absolute Architecture”.
3. Catálogo da Bienal de Veneza 2012, “Common Ground”.
4. Capas da Revista San Rocco e do livro “Torre David”.
5. Pier Vittorio Aureli, desenhos da série “The Marriage of Reason and Squalor”, realizados entre 2001 e 2014.
6. Dogma/Office KGDVS, A Grammar for the City”, projecto para a nova capital administrative da Coreia do Sul, 2005.
7. Office KGDVS, render do projecto para o Liceu Agrícola de Lovaina, 2010-15.

Pierre Chabard
Arquitecto e membro da redacção da Criticat, ensina história na ENSA Paris-La Villete.

Ficha Técnica
Data de publicação: 29.03.2017
Etiqueta: Arquitecturas \ espaços