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Na alocução de abertura proferida no Instituto de
Arquitectura de Veneza, em Fevereiro de 1993, Manfredo Tafuri evoca sem meios
termos o «cadáver» de Veneza. Recordando a batalha travada contra os que
quereriam ter na cidade a sede da EXPO, conclui não sem uma nota de tristeza: «O problema não estava em se era melhor
maquilhar um cadáver, pintar-lhe os lábios com bâton, torná-lo tão ridículo que
até as crianças se rissem dele, ou antes aquilo que conseguimos, nós, os
defensores, mas sem poder, profetas desarmados, ou seja, que deixemos o cadáver
liquefazer-se diante dos nossos olhos».
Passaram-se quinze anos desde a data deste diagnóstico
implacável, redigido por quem tinha toda a competência e autoridade para o
fazer, e cuja exactidão ninguém (nem mesmo entre os que, autarcas, arquitectos
ou ministros, então como hoje, tiveram e têm, nas palavras de Tafuri, a
«indecência» de continuar a enfeitar e a vender o cadáver) poderia de boa fé
pôr em dúvida. O que significa, contudo, vendo bem, que Veneza já não é um
cadáver, que, se de algum modo continua a existir, não pode necessariamente ter
deixado de ter passado ao estádio que se segue à morte e à decomposição do
cadáver. Tal é o estádio do espectro. Ou seja, o de um morto que aparece de
súbito, de preferência durante as horas nocturnas, range e envia sinais, por
vezes também fala, ainda quem nem sempre de modo inteligível. «São sussurros o que Veneza consegue emitir»,
escrevia Tafuri, acrescentando que aqueles têm um som insuportável aos ouvidos
da modernidade.
Quem mora em Veneza tem familiaridade com este espectro.
Ele aparece de súbito durante um passeio nocturno quando, de cima de uma
pequena ponte, o olhar se desvia para o lado, ao longo do rio mergulhado na
sombra, na direcção de uma pequena janela longínqua onde se acende um clarão
alaranjado, enquanto numa outra ponte, idêntica à primeira, um transeunte olha
e lhe estende um espelho embaciado. Ou quando, ao longo das lajes desertas, a
Giudeca como que balbuciando arrasta e deixa sobre os alicerces algas mortas
misturadas com garrafas de plástico. E era também o mesmo espectro que, graças
ao eco invisível de uma última nota de luz indefinidamente persistindo sobre os
canais, Marcel via enrolar-se nos reflexos dos palácios em volutas cada vez
mais negras. E, antes ainda, na própria origem da cidade, que não nasce, como quase
sempre é o caso por toda a Itália, do encontro entre o mundo antigo tardio no
seu ocaso e as novas forças bárbaras, mas de fugitivos exaustos que,
abandonando os seus ricos lugares em Roma, trazem no espírito o fantasma dela,
para o diluírem em águas, veios, cores.
De que é feito um espectro? De signos, ou melhor, mais
precisamente, de marcas, isto é desses signos, nomes cifrados ou monogramas que
o tempo risca sobre as coisas. Um espectro traz consigo sempre uma data, e é,
assim, um ser intimamente histórico. Por isso as velhas cidades são o lugar
eminente das marcas que o flâneur lê
como que distraidamente no decorrer das suas derivas e dos seus passeios; por
isso as más obras de restauro, que embalam e uniformizam as cidades europeias,
apagam as suas marcas, tornam-nas ilegíveis. E por isso as cidades – e de
maneira especial Veneza – parecem-se com os sonhos. No sonho, com efeito, cada
coisa faz sinal àquele que a sonha, cada criatura sua exibe uma marca, através
da qual significaria mais do que tudo o que os seus traços, os seus gestos, as
suas palavras alguma vez poderiam exprimir. No entanto, também quem tenta
obstinadamente interpretar os seus sonhos, está algures convencido de que eles
nada querem dizer. Assim na cidade tudo o que aconteceu naquela calçada,
naquela praça, naquela rua, naqueles alicerces, naquela rua de lojas, de
repente condensa-se e cristaliza numa figura, ao mesmo tempo lábil e exigente,
muda e amistosa, intensa e distante. Essa figura é o espectro ou o génio do
lugar.
Que devemos nós ao que morreu? «O acto de amor de recordar um morto», escreve Kierkegaard, «é o acto de amor mais desinteressado, livre
e fiel». Mas não é, com certeza, o mais fácil. O morto, com efeito, não só
não pergunta, mas parece fazer tudo para ser esquecido. Mas, precisamente por
isso, o morto talvez seja o objecto de amor mais exigente, perante o qual
estamos sempre desarmados e incumpridores, em fuga e distraídos.
Só deste modo se pode explicar a falta de amor dos
venezianos pela sua cidade. Não sabem nem podem amá-la, porque amar uma morta é
difícil. É mais simples fingir que está viva, cobrir-lhe os membros delicados e
exangues com máscaras e maquilhagens para se poder exibi-la contra pagamento
aos turistas. Em Veneza, os vendilhões não estão no templo, mas nas sepulturas;
ultrajam não só a vida, mas, sobretudo, um cadáver. Ou, antes, aquilo que, sem
ousarem confessá-lo, acreditam ser um cadáver. E é, pelo contrário, um
espectro, ou seja – se sabe sê-lo – a coisa mais aérea, subtil e distante de um
cadáver que imaginar se possa.
A espectralidade é uma forma de vida. Uma vida póstuma ou
complementar, que começa apenas quando tudo acabou e que tem, por isso, perante
a vida, a graça e a astúcia incomparável do que se consumou, a elegância e a
precisão de quem mais nada tem diante de si. Foram seres deste tipo (nas suas
histórias de fantasmas, comparava-os a sílfides e a elfos) que Henry James
aprendeu a conhecer em Veneza, tão discretos e evasivos, que são sempre os
vivos a invadir as suas moradas e a forçar-lhes a reticência.
Há, todavia, também uma espectralidade de outro tipo, a
que podemos chamar larvar ou larvada, que nasce da não-aceitação dessa
condição, levando a recusá-la e a simular a todo o custo um peso e uma carne.
Tais são as larvas que não vivem sós, mas procuram obstinadamente os homens por
cuja má consciência foram geradas, a fim de os habitarem como súcubos ou
íncubos, e lhes moverem do interior os membros inertes por meio de cordéis de
mentira. Enquanto a primeira espécie de espectros é perfeita, porque já nada
tem a acrescentar ao que fez ou disse, as larvas têm de simular-se um futuro
para darem lugar, na realidade, a um despeito obsessivo perante o seu passado,
à sua incapacidade de se saberem consumadas.
Ingeborg Bachmann comparou uma vez a língua a uma cidade,
com o seu centro antigo a que se seguem as partes mais recentes e as
periferias, e, por fim, as vias circulares e as bombas de gasolina, que fazem
também parte da cidade. A cidade e a língua comportam a mesma utopia e a mesma
ruína, sonhamo-nos e perdemo-nos na nossa cidade como na nossa língua, ou
antes, uma e outra são somente a forma desse sonho e dessa desorientação.
Quando comparamos Veneza a uma língua, habitar Veneza passa a ser como
estudarmos o latim, experimentarmos soletrar uma língua morta, aprendermos a
perder-nos e a reencontrar-nos nas dificuldades das declinações e nas bruscas
aberturas dos supinos e dos infinitivos futuros. Na condição de recordarmos que
de uma língua nunca deveríamos dizer que está morta, uma vez que ela de certo
modo continua a falar e é lida; é simplesmente impossível – ou quase – assumir-se
nela a posição de um sujeito, a de quem diz «eu». A língua morta é, na verdade,
como Veneza, uma língua espectral, na qual não podemos falar, mas que à sua
maneira vibra e acena e sussurra e que, embora, com esforço e com o auxílio do
dicionário, podemos entender e decifrar. A quem fala uma língua morta? A quem
se dirige o espectro da língua? Decerto que não a nós; mas também não aos seus
destinatários de outrora, dos quais já não tem recordação alguma. No entanto, precisamente
por isso, é agora como se fosse ela só pela primeira vez a falar, essa língua,
da qual o filósofo, sem se dar conta de lhe atribuir assim uma consistência
espectral, diz que ela fala – não a
nós.
Veneza é, portanto, verdadeiramente – ainda que num
sentido completamente diferente do evocado por Tafuri no final do seu discurso
de abertura –, o emblema da modernidade. O nosso tempo não é novo, mas novíssimo, isto é último e larvar.
Concebeu-se como pós-histórico e pós-moderno, sem suspeitar que assim se
atribuía necessariamente uma vida póstuma e espectral, sem imaginar que a vida
do espectro é a condição mais litúrgica e inacessível, que impõe a observância
de regras de saber-viver intransigentes e de litanias ferozes, com as suas vésperas
e as suas matinas, as suas completas e os seus ofícios.
Daí a falta de rigor e de decência das larvas entre as
quais vivemos. Todos os povos e todas as línguas, todas as ordens e todas as
instituições, os parlamentos e os soberanos, as igrejas e as sinagogas, os
arminhos e as togas deslizaram uns após outros, inexoravelmente, passando à
condição de larvas, mas, por assim dizer, impreparados e sem atenção
deliberadas. Assim os escritores escrevem mal, porque têm de fingir que a sua
língua está viva, os parlamentos legislam em vão, porque têm de simular uma
vida política à larva nação, as religiões são desprovidas de piedade, porque já
não sabem abençoar e habitar as sepulturas. Por isso vemos esqueletos e
manequins desfilar empertigados, e múmias que pretendem dirigir animadamente a
sua exumação, sem se darem conta de que os membros decompostos as abandonam aos
pedaços e farrapos, que as suas palavras se tornaram glossolálias
ininteligíveis.
De tudo isto o espectro de Veneza nada sabe. Já não é aos
venezianos nem, decerto, aos turistas que poderia aparecer. Talvez aos mendigos
que administradores sem vergonha querem expulsar, talvez às ratazanas que
atravessam açodadas e com o focinho rente ao chão as calçadas das calli, talvez a esses poucos que, como
que exilados, procuram meditar a fundo a sua esquiva lição. Porque aquilo que o
espectro com a sua voz branca argumenta é que, se todas as cidades e línguas da
Europa sobrevivem doravante como fantasmas, só a quem tiver sabido fazer-se seu
companheiro íntimo e familiar, ressoletrar e manter no espírito as suas
palavras e pedras descarnadas, poderá talvez um dia reabrir-se essa passagem, na
qual bruscamente a história – a vida – cumpre as suas promessas.
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Giorgio
Agamben
Filósofo.
Nasceu em Roma em 1942. É fundamentalmente conhecido pela sua obra magna Homo Sacer, publicada parcialmente em
português, nomeadamente “Poder Soberano e
Vida Nua” e “Estado de Excepção”.
É autor também de “Ideia da prosa” e
“A comunidade que vem”.
Notas da edição
O texto «Da
Utilidade e dos Inconvenientes do Viver entre Espectros» foi originalmente
publicado em Português pela Relógio D’Água em Nudez, em 2010, com tradução de Miguel Serras Pereira. Foi aqui
incluído como parte integrante do Caderno
\ Souvenirs de Porto. Imagem:
fotografia do colapso do Campanile da
Praça de São Marcos em 1902.
Ficha
Técnica
Data de publicação: 07.03.2017
Etiquetas: Territórios \ Cidades