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Um recente artigo de Catarina Portas procurou
dar voz a um esboço de problemática “cívica” e “política” que nos últimos
tempos ganhou algum terreno pela quase simultânea notícia de encerramento de
alguns locais históricos da boémia Lisboeta. A transformação económica e social
de Lisboa no período de aplicação de medidas de austeridade reorientou um
número considerável de infra-estruturas económicas para a indústria do turismo,
reconfigurando muitas das perspectivas colectivas sobre a cidade e o seu
funcionamento. Que a cidade se transforme de modo brutal segundo alterações
económicas não é obviamente uma novidade, já que a própria cidade moderna é em
si uma consequência do desenvolvimento do capital e já que as suas infra-estruturas — das
comerciais às de lazer passando pelas habitacionais — obedecem
programaticamente às necessidades de um determinado modo de produção.
O que é relativamente inédito, em Lisboa, é que
o poder económico de uma facção da classe média urbana nacional seja suplantado
pelo poder económico de uma classe média urbana internacional na disputa pelo
acesso aos mesmos locais, produtos e vivências. A emergência, não obstante quão
limitada, das indústrias criativas — design, arquitectura, indústrias audiovisuais, etc. — criou uma classe média “cosmopolita” cujos consumos passam por uma valorização do “autêntico”, do
“boémio” e do “local”. Não obstante ser em Portugal uma classe profissional
relativamente diminuta a sua proficiência mediática fez com que rapidamente
alcançasse uma relativa hegemonia dentro da paisagem cultural, mas ainda assim
nunca conseguiu reunir suficiente poder de compra para cristalizar a sua
posição na economia da cidade: os seus parcos números foram ainda mais
delapidados pela emigração (que ocorreu não apenas por necessidade económica) e
as ditas indústrias nunca chegaram a ter a preponderância económica que têm
noutros pólos urbanos.
O inesperado aumento do turismo em Portugal
deriva, em grande parte, da diminuição do turismo nos vários países Árabes — Egipto, Tunísia, Marrocos . Deriva também de Lisboa se
prestar a um turismo moderno, influenciado por essa recente valorização do “autêntico” que despreza a homogeneização urbana, ainda que se torne um dos seus
principais agentes. Paralelamente, este aumento sucede durante uma época de
aplicação de medidas de austeridade onde o poder económico da classe média e
dos pequenos proprietários cai a pique. Isto reflecte-se não apenas no preço do
imobiliário, mas também na fiabilidade dos pagamentos dos arrendatários. Neste cenário
torna-se apenas óbvio que os agentes económicos procurem rentabilizar os seus
recursos. Este processo é transversal. O comércio orientar-se-á para os
públicos-alvo com mais capacidade económica, os pequenos proprietários
preferirão alugar a suas casas a turistas e mesmo os arrendatários poderão
alugar quartos da sua casa, retirando mais dinheiro dessa renda do que do seu
trabalho. As transformações são tão mais evidentes porque implicam a totalidade
do tecido social, não apenas os grandes agentes económicos ou os decisores
políticos. Na boca de Catarina Portas a questão torna-se evidente no que tem de
ridícula: a lojista é, geracional e culturalmente, de modo impar, o exemplo
desta Lisboa proto-hipster que triunfou através de uma exploração do
“autêntico” e que agora vê o seu lugar contestado na hierarquia da cidade.
Portas não lamenta a decadência da cidade mas sim a decadência da sua classe na
hierarquia urbana, já que esta perde o seu lugar decisório no organigrama da
cidade. Quem é este “nós” espoliado que emerge enquanto patronal dos flâneurs
e que se reclama de legitimidade representativa dos interesses da polis? Não
será certamente o da grande maioria dos habitantes da cidade, que para lá de
não fazer a mínima ideia de quem é Catarina Portas (ou o que vende a sua loja)
também não passará no Chiado mais do que uma vez por ano e tem preocupações bem
mais centrais do que a abertura de um McDonalds numa zona da cidade que de modo
explícito está reservada a consumos que nunca foram os seus.
Que este confronto entre elites económicas
apareça trasvestido de problemática “política”, “crítica” ou “de esquerda” é
apenas sintoma da incapacidade de pensar o que querem hoje dizer estes termos.
Há evidentemente uma problemática complexa, até urgente, à volta destas
questões, que traduz de modo contundente a brutalidade do impacto das dinâmicas
do capital na organização da vida de qualquer um de nós. Mas essa,
infelizmente, é apenas ocultada por todo o arraial de escândalo moralista e
cripto-reaccionário que se desenha à volta do desaparecimento da Lisboa
“autêntica”, ou pior, da Lisboa “Portuguesa” e dessa xenofobia “de esquerda”
que é o desprezo pelo turista, como se esse paradigma de subjectividade não
fosse transversal a esta pequeno-burguesia global. Essa “Lisboa verdadeira”,
que se está “a tornar irreconhecível”, não existe para lá de um quilómetro
quadrado no centro histórico da capital e o processo que a procura tornar
emblemática da cidade apenas serve a esconder a multiplicidade de locais,
realidades e culturas que constitui Lisboa. Este discurso serve, ainda, a
naturalizar todas as relações de exploração e de pobreza que já existiam, de
modo disseminado e óbvio, antes da chegada do turismo, como se a brutal
desigualdade social da cidade e dos seus inúmeros fogos sem infra-estruturas
higiénicas básicas fossem mais “naturais” e “desejáveis” do que um trabalho no
McDonald’s ou do que uma vida nos subúrbios, o pesadelo existencial de Catarina
e dos seus amigos. Por todo o choradinho que já se leu sobre a perda dos
“locais autênticos” de Lisboa ainda ninguém se lembrou de pensar em que
consequências terá tido no Bairro Alto, por exemplo, a chegada na década de 80
de uma classe média urbana emergente que obviamente tinha um poder de compra
superior à média da população local (e que aliás incluiu a abertura de um
McDonald’s, entretanto encerrado).
O “autêntico” é assim uma operação política.
Quando dizemos que uma “tasca” é autêntica dizemos duas coisas: (1) que temos
enquanto naturais o tipo de actividade aí levado a cabo e (2) que reconhecemos
e legitimamos as relações sociais aí encenadas. O cerne da questão reside na
causalidade entre estas operações: é por nos parecer natural e normal um
determinado método de exploração que nos parece normal e natural um determinado
contexto social. A “Lisboa autêntica” é aquela onde um tipo de 70 anos nos traz
cervejas à mesa às três da manhã para ganhar pouco mais do que um salário
mínimo (aos sábados, porque “nós” a partir dos trinta já não saímos como
antes), e a “Lisboa descaracterizada” é aquela onde, durante a ressaca do dia
seguinte, um puto black de um bairro social nos dá um hambúrguer para
ganhar um pouco menos que um salário mínimo. A “Lisboa real” é aquela onde
mostro o meu portfólio a um cliente na tasca da Tia Alice (que ainda me chama
menina) e a “Lisboa descaracterizada” é aquela bomba de gasolina onde o pessoal
bebe cervejas porque o seu bairro não tem uma “tasca típica” (e que me mete um
pouco de medo, pelo menos até aparecer no Ipsilon). É por aqui que o barco da
indignação “cidadã” começa a meter água por todos os lados, já que aquilo que
era um “movimento cívico” é afinal, em toda a linha, apenas a defesa acrítica
de um privilégio de classe que deixa inalteradas as condições que criaram o
problema que pretende abordar.
Porquê acrítica? Por duas razões. Primeiro
porque camufla as questões materiais na origem da questão: a organização da
cidade segundo grelhas de valorização e as relações de poder aí naturalizadas. Segundo
porque não atenta no modo como esta situação decorre, em toda a linha, de uma
derrota da “esquerda”. Esta derrota é simultaneamente histórica e crítica.
Histórica porque ilustra como esta esgotou sua missão fundamental de defender
um determinado pólo na relação entre capital e trabalho, derrota sublinhada
durante a governação de Passos Coelho, e crítica porque essa derrota se traduz
num estado das coisas onde a “esquerda” não é capaz de mais do que assumir o
lugar de “consciência moral” da “sociedade”, em tons mais moderados ou mais
histriónicos. O problema desta abordagem à problemática da cidade surge
explícito naquilo que não é dito. Quando dizemos que há uma “crise de
cidadania” na cidade de Lisboa afirmamos um determinado modelo de cidadania. Ora
essa fenomenologia de participação na polis assume a cidade e a
sociedade enquanto locais independentes do capital, quando na verdade não há
fenómenos mais emblemáticos do seu triunfo do que as metrópoles modernas e as
relações que as preenchem. Ao afirmar-se que há uma sociedade ameaçada pelo
turismo estamos precisamente a fazer coincidir um ideal de participação e
igualdade com a maior máquina de exclusão e exploração da história. O espectro
político da cidade não é a falhada síntese entre os cidadãos mas o confronto
latente entre as classes, um confronto que contemporaneamente se espelha e
multiplica em posições contraditórias. O significado clandestino da
“turistificação” e da “gentrificação” é que numa altura onde todos os campos da
vida estão sujeitos a valorização todos somos simultaneamente proletários e
especuladores.
Que fazer então com a delapidação dos mapas
emocionais das cidades e com o desaparecimento dos locais que marcaram os
nossos hábitos, encontros e maturações? A questão, legítima, vai rapidamente ao
encontro da deriva conservadora da esquerda abrileira e soixant-huitard
que afirma não existir aquilo que não reconhece nos seus próprios termos. Por
toda a banal metafísica da resistência que compõe a liturgia da “esquerda”
torna-se embaraçosa a dificuldade em reconhecer que a única possibilidade de
autenticidade decorre da materialidade das lutas e não do folclore das suas
formas passadas. Esse mapa emocional da cidade, esse sentido que ela possa
fazer, decorre das formas que se encontrar de a habitar colectivamente, em
oposição a estes processos e tantos outros, e não na conservações dos ícones
das formas de exploração caducas.
Há obviamente formulações mais sofisticadas do
que a de Catarina Portas ou da banal indignação online, que procuram
traduzir estas problemáticas para lá dos habituais termos do ressentimento
burguês. Nos últimos anos tem ganho notoriedade uma discussão local sobre
“gentrificação” que não obstante procure retraduzir estas problemáticas em
termos políticos encontra ainda alguns problemas. Se por um lado a
generalização do conceito se deveu bastante a um voluntarismo tão ou mais
devedor ao conceito de “autêntico” do que os exemplos anteriores, por outro
apenas parcialmente se pode falar de gentrificação em Lisboa. Existe de facto
um deslocamento populacional por motivos económicos, mas este ocorre devido ao
turismo e não devido à emergência de uma classe económica superior autóctone (o
que implica consequências diferentes). Se por um lado as classes gentrificantes
nunca consolidaram o seu poder de compra, e até viram a sua emergência
hegemónica frustrada pela austeridade e pela emigração, por outro as tentativas
estatais de requalificação urbana apenas parcialmente se conseguiram substituir
a este processo. De outro modo, existe uma gentrificação sem gentry, sem
um sujeito sociocultural determinado por trás dele.
A vulgarização do termo surge nas grandes
cidades americanas dos anos 80 e 90. Nos anos 50 e 60 as populações brancas
abandonaram as cidades após os motins raciais de Detroit, L.A. e Newark — o great
white flight. As décadas seguintes marcaram um lento regresso da classe
média à cidade, marcado precisamente pela emergência de novas classes
profissionais ligadas às actividades “criativas”, que preferiam a aventura da
cidade ao tédio dos subúrbios americanos. A crítica elaborada sobre os
processos económicos decorrentes deste regresso — a expulsão das populações minoritárias que tinham encontrado nos bairros
abandonados um território — ocorre já num período de refluxo da esquerda, num rescaldar das insurreições globais dos anos 60 e 70. Como tal, o conceito de “gentrificação” parece
surgir enquanto materialização urbana de uma crítica do capital que teria
abandonado qualquer possibilidade imediata de ruptura revolucionária e que se
procurava reinventar enquanto ciência de sofisticação moral e humana de um
capitalismo avançado. Traz por isso tantos problemas críticos às costas, não
sendo os menores a defesa da “autenticidade” ou a incógnita relativamente às
relações de propriedade que defende. Surge de aí uma conclusão latente às
várias lutas locais contra a gentrificação: não há notícia de uma que tenha
sido vitoriosa, sequer parcialmente. Isto porque a gentrificação não é um
processo, mas sim uma consequência de um modo de produção cujas formas de
valorização assumem por vezes essa forma. Separar estes fenómenos corre o risco
de transformar o diagnóstico de uma nocividade numa ferramenta do senso comum
reaccionário. É possível ser contra a gentrificação de um modo conservador
assim como é possível ser contra a corrupção enquanto se defende uma economia
de mercado.
Recuperando uma crónica relativamente recente de
António Guerreiro onde este afirma que quem fala do turista está
inevitavelmente a falar sobre si próprio, torna-se evidente que o luto que “a
esquerda” faz sobre a “sua” cidade que desaparece é um luto por uma relação
social complexa. Chora-se ao mesmo tempo a perda de um privilégio (burguês) de
classe e, ironicamente, a perda de uma força (proletária) de classe. Que se
possa esboçar o ocaso do momento onde estas coincidiam não é necessariamente o
pior dos cenários.
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Notas da edição
O texto «Cidade e
“esquerda”» foi originalmente escrito em Março de 2016. Foi incluído no Caderno
\ Souvenirs de Porto.
Ficha
Técnica
Data de publicação: 14.03.2017
Etiquetas: Territórios \ Cidades