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Há algum tempo atrás, nas páginas do International Herald Tribune, um
inocente artigo sobre a atracção turística de Carcassonne tinha o seguinte
título: Better Than Disney: Carcassonne,
the Fortress on a Hill [1]. Tratava-se de um título provocador: pôr em paralelo a
atracção turística dos grandes parques temáticos do ócio pós-moderno com um dos
lugares paradigma do restauro e conservação de monumentos históricos. Ainda que
sejam bem conhecidas as polémicas sobre a pertinência do restauro da vila
medieval de Carcassonne levada a cabo em meados do século XIX pelo jovem
Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc, não deixa de resultar surpreendente o
paralelismo entre a autenticidade arquitectónica e urbana de uma parte
importante das muralhas e dos edifícios da cidadela cátara e os conjuntos
deliberadamente fictícios, simuladores, da Disneyland,
Disneyworld ou Eurodisney. No entanto, não é menos verdade que se pensarmos no Pártenon
de Atenas, no Alhambra de Granada, em Carcassonne ou no Monte Saint-Michel, no
Coliseu de Roma ou na cidade de Veneza, nos apercebemos que a percepção e o
consumo contemporâneo destes lugares não estão talvez assim tão distantes da
percepção e do consumo que hoje se oferece aos rebanhos de multidões turísticas
que se dirigem massivamente aos actuais parques temáticos.
1. Riding, Alan, Better
Than Disney: Carcassonne, the fortress on a Hill, International Herald Tribune, 29 de Agosto de 1997, p.10.
Jean-Louis Déotte identificou recentemente
num livro um fenómeno característico da modernidade: a museificação [2]. Um
espectro percorre já não só a Europa, mas o mundo inteiro provocando um
fenómeno estético generalizado de desaparecimento dos objectos que,
aparentemente reais, se inscrevem neste recinto imaginário de que dispõe a
cultura moderna [3]. Efectivamente, o museu, com a sua aparente intenção de
salvaguardar objectos de interesse artístico, histórico, antropológico,
natural, etc., submete todos eles a um mesmo processo de exposição que conduz
indissoluvelmente a uma operação de suspensão das suas características prévias.
Os objectos de culto litúrgico, as pinturas dirigidas a comover a piedade dos
crentes, as armas dos guerreiros, os artefactos da vida quotidiana
desprenderam-se da sua substância cultural inicial (liturgia, piedade, luta,
conforto) para converterem-se, basicamente, em imagens. Imagens que se
convertem na base da história da arte, da experiência estética, da identidade
nacional, da ideia de progresso, do cosmopolitismo, etc.
2. Jean-Louis Déotte, Le musée, l’origine de l’esthétique, Editions L’Harmattan, Paris,
1993.
3. Paul Virilio, Esthétique de la disparition, André
Ballard, Paris, 1980.
A arquitectura tão-pouco
escapa a este processo. A museificação da arquitectura, também no sentido de
Déotte, nos monumentos (faróis da memória) ou nas ruínas (testemunhos de uma
genérica passagem do tempo), estão sujeitas ao mesmo processo de exposição que
fatalmente produzirá o seu desaparecimento enquanto objectos ligados a
situações e significados concretos. Deixarão de ser objectos comuns para
entrar, gloriosamente, num universo em que, graças à suspensão de qualquer
particularidade, será possível a sua inclusão no empirismo dos valores
transhistóricos.
Desde do exacto instante em que as esforçadas
elaborações de catálogos de protecção monumental incorporam um edifício ou um
local nos seus reportórios, estes objectos, arquitectónicos no nosso caso,
devem ser despojados do seu valor quotidiano migrando, ao invés, dos circuitos
do comum para um novo mercado de valores: o dos objectos elevados ao estatuto
genérico, universal e abstracto das ruínas, das obras de arte ou dos documentos
históricos. [4] Neste novo estado as arquitecturas áureas, ou pelo menos
distintas da edificação comum, entrarão, por sua vez, num particular sistema de
consumo que, ainda que não seja único, constituirá o seu mercado mais habitual
e numeroso. Efectivamente, tal como estudaram com acutilância e precisão Scott
Lash e John Urry [5], na actual sociedade da mobilidade não só se produz a
chamada compressão do espaço-tempo, mas também crescem como indústria
absolutamente principal as viagens, o turismo e o ócio. Para estes sociólogos
ingleses, só a partir de uma perspectiva cultural é possível avaliar as
consequências da multi-ubiquidade que, cada dia mais, gozam os indivíduos dos
países desenvolvidos. Aumento da ubiquidade que aparece ligado às modificações
da primeira indústria mundial que é, desde da II Guerra Mundial, o turismo. No
entanto, é muito importante observar como esta actividade e a indústria que a
organiza está assente em sistemas culturais não explícitos, mas, no entanto,
decisivos na hora de estabelecer as relações dominantes entre os objectos a que
o turismo e o ócio se dirigem, e a forma de os ver e apreciar.
4. A tríade que
aqui se enuncia reescreve as três noções formuladas por Aloïs Riegl no seu
fundamental Der Modern Denkmalkultus,
Viena, 1903.
5. Scott Lash; John Urry, Economies of Signs and Space, Sage Publications, Londres, 1994.
Susan Sontag, no seu celebrado livro “Sobre a
fotografia” [6], insistia sobre o valor psicológico do acto de
fotografar na cultura de massas. Por um lado, a fotografia turística, o maior
tema do consumo fotográfico, é, sobretudo, um acto de apropriação: o modo mais
barato de levar consigo o momento do encontro com a paisagem ou com o
monumento. No entanto, esta apropriação não é espontânea nem fruto de um olhar
ingénuo: terá sido largamente preparada através de reportórios de imagens
qualificadas que, previamente, o turista já viu em folhetos informativos, na
publicidade da sua viagem, em guias e em reportagens televisivas. Antes que se
produza o olhar real sobre o monumento, este foi já prefigurado por peritos em
história de arte e em produção do gosto, com o fim de atenuar a absoluta
surpresa ou a pura incompreensão. Mas, por outro lado, esta fotografia (tal
como o vídeo, a aquisição de livros ilustrados, etc.) constitui o meio através do qual se controla, ordena,
classifica e inscreve a cota de surpresa e/ou desorientação no acervo de
referências, imagens e conhecimentos do turista observador. Porém, a
multiplicação do olhar turístico não se desenvolve aceleradamente sem
introduzir, ao mesmo tempo, notáveis alterações. De novo Urry [7], é quem analisou
de forma sugestiva aquilo que chama a evolução do turismo organizado para o
turismo de serviços. Desde surgimento das primeiras agências de viagens em
meados do século XIX, como superação da condição arriscada e aventureira das
mesmas, até ao grande turismo de massas para as classes proletárias – que
emerge em conjunto com o fenómeno paralelo das férias pagas e cujo
desenvolvimento se produz após a II Guerra Mundial nos países do norte da
Europa –, toda uma cultura das paisagens e dos monumentos se codifica através
dos prestigiados guias turísticos: Baedeker,
Guide Bleue, Michelin, etc. [8]
Didácticos, selectivos e organizados através
de percursos precisos, estes vademécum do
viajante puseram ao alcance das massas a erudição académica e o gosto dos
especialistas. Com intensidades de maior ou menor grau, os monumentos eram
abordados com uma visão centrada nos objectos, na sua classificação estilística
e na descrição do mais valioso no que toca aos seus conteúdos escultóricos e
pictóricos (o modo de ver a arquitectura, próprio da cultura do movimento
moderno, foi sempre deixada de fora destes autênticos manuais de iniciação
artística).
6. Susan Sontag, On
Photography, Penguin Books, Handsworth, 1979
7. John Urry, The
Tourist Gaze, Leisure and Travel in Contemporary Societies, Sage
Publications, Londres, 1990.
8. Roland Barthes,
Mythologies, Éditions du Seuil, Paris, 1957.
Os estudiosos dos fenómenos turísticos estão
actualmente de acordo que, desde dos anos 70, já não somente no Ocidente, mas
também de modo incipiente nos países asiáticos emergentes, se está a
desenvolver um outro modo de viajar e com ele um novo modo de ver. O novo
turismo de serviços abandona o sistema das packaged
holidays e passa a oferecer, com total garantia, através de redes globais,
lugares em avião, quartos de hotel, dinheiro universal dos cartões créditos, guias
do tipo Discovery, Lonely Planet, etc., mediante os quais
as paisagens, os monumentos, os valores da cultura popular, a comida, os
museus, os ambientes, etc., são oferecidos, indiferenciadamente, como
alternativas possíveis ao viajante. Este, com a ajuda de organizações globais, é
convidado a descobrir e, portanto, também a interpretar um leque de
possibilidades, supostamente autênticas, que estão na realidade abrigadas pela redoma
protectora dos valores plurais que, de facto, caracterizam o sistema mental do
consumidor. Desta situação podemos pelo menos deduzir duas consequências. Em
primeiro lugar a multiplicação de olhares. Os monumentos, mas também os lugares
pitorescos, populares, as sobrevivências vernáculas e locais, são objecto de
uma constante reelaboração que propõe uma pluralidade de olhares. À cultura dos
guias canónicos do turismo organizado de massas, sucede uma nova cultura em que
a multiplicação da circulação de imagens de toda índole faz estilhaçar em mil
pedaços a bem elaborada visão ortodoxa dos objectos artísticos, própria dos
guias turísticos clássicos.
O museu imaginário de André Malraux [9] não é
apenas o princípio de um ilustrado populismo da cultura, mas a chave que abre o
recinto sagrado do artístico a uma multiplicação dos olhares, das reportagens,
dos livros de imagens, das revistas especializadas em geografia-turismo, em
antropologia-turismo, em arte-turismo. O cânone dos valores estéticos
elaborados pela alta cultura perde vigência, imerso e manipulado no eclético
universo das mil e uma propostas visuais. No entanto, a mudança cultural no
olhar universal do turismo produz-se necessariamente unido ao crescimento do
poder das próprias imagens. Este é o segundo aspecto da situação que tentamos
analisar. Graças às sofisticadas tecnologias da imagem, é cada vez mais
poderosa a mediação que as imagens adquirem na estetização de todas as áreas da
vida quotidiana. Como assinalou Joan Foncuberta [10], o universo das imagens
propõe-se hoje, ao mesmo tempo, como algo mais real que a realidade em si mesma
ainda que, por sua vez, cresçam as possibilidades de falseamento e manipulação.
O hiper-realismo de que fala Umberto Eco não é apenas uma corrente artística,
mas sim o resultado de uma tecnologia capaz de expandir de forma inquietante
qualquer processo de simulação [11]. Os limites entre a realidade e o simulacro tendem a
esbater-se quando não mesmo a produzir fenómenos de substituição. O cozinhar das imagens através da
digitalização permite, ao mesmo tempo, um sem número de derivações da realidade
representada que chegam a ofuscar qualquer forma de aproximação directa.
9. André Malraux, La tête d’obsidienne, Gallimard, 1974.
10. Joan
Fontcuberta, El beso de Judas. Fotografia
y verdade. Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 1997.
11. Umberto Eco, Travels
in HyperReality, Picador, Londres, 1986.
No processo de substituição da realidade pelas suas
imagens e modo de ver, os monumentos e os lugares tende igualmente a
dissolver-se num imaginário que já não é controlável, nem a partir da
autoridade da ciência e do conhecimento especializado, nem a partir do poder
regulador do museu instituição. O que podemos chamar o efeito parque temático sobre a recepção do património
arquitectónico é, precisamente, a mais imediata consequência desta nova
situação cultural.
Michael Sorkin [12]
analisou com perspicácia a cultura que sustêm
esta crescente indústria do ócio e do turismo organizado. Os parques temáticos
Disney, mas também todos aqueles que buscam novas atracções a partir de temas
monográficos, têm em comum as tecnologias do hiper-realismo e a simulação. Como
redutos plenamente controlados, os parques temáticos exploram um turismo
sumamente organizado que, por sua vez, no interior, recebe uma suposta
liberdade de movimentos. Com a eficácia do turismo de massas organizado a que
nos referimos anteriormente, o parque temático tenta simultaneamente oferecer
uma experiência aberta, múltipla, dentro da qual o consumidor pode e deve
elaborar o seu próprio programa de preferências.
Nesta mescla de cidade fortificada e errática
cidade-jardim suburbana, o que se oferece à escolha do consumidor é, sobretudo,
simulação. Simulação de lugares históricos, de personagens, de monumentos e de
ambientes. Estas simulações têm, por um lado, uma capacidade persuasiva tão ou
mais eficaz que a própria realidade a que aludem, tal é a sofisticação
tecnológica e, sobretudo, a condição indiferente do consumidor. Na medida
exacta em que se simulam imagens já conhecidas, em que o efeito estético
exacerba o prazer da imitação e da redundância, a relação entre realidade e
ficção torna-se circular, reiterativa, retroalimentada. Suportando esta cultura
tipicamente pós-moderna estão, necessariamente, mecanismos de mercantilização
de todo o processo, no sentido proposto por Guy Debord [13]
ao analisar a relação entre a sociedade do
espectáculo e o universo da mercadoria capitalista.
12. Michael Sorkin, “See you in Disneyland”, em
Sorkin, Michael(ed.), Variation a Theme
Park. The New American City and the End of Public Space, Hill & Wang,
Nova Iorque, 1992.
13. Guy Debord, La
societé du spectacle, Éditions Buchet-Chastel, Paris, 1967.
A este jogo de espelhos
não escapa a arquitectura histórica, protegida e consagrada. Efectivamente, a
simulação de imagens de todo tipo, tiradas, inspiradas, apropriadas de
monumentos ou lugares conhecidos pode servir neste contexto como acompanhamento
ou como prato forte de qualquer proposta de espectáculo. Uma série de emoções e
de efeitos não desdenháveis podem produzir-se a partir do poder persuasivo que,
para o olhar, podem chegar a ter estas arquitecturas incorporadas nos circuitos
das imagens áureas. A suposta realidade das arquitecturas monumentais viajaria não
em suporte de papel, de vídeo ou de CD-ROM, mas sim através de efeitos
tridimensionais onde a realidade virtual é capaz de produzir a sua particular
confrontação com uma remota referência ao qual queremos continuar a chamar de
verdadeiro.
As consequências desta situação que é difícil negar a
evidência são, para a arquitectura protegida, de três tipos.
Em primeiro lugar, o caleidoscópio de imagens que reúnem
indissoluvelmente realidade e representação, tendem a validar posições abertas,
multi-significativas, inclusive experimentais no tratamento do património
construído. Não se trata de advogar por uma espécie de laissez faire ultraliberal, mas antes o reconhecimento de que não
há uma única razão nem um único método com o qual abordar a protecção, o restauro
e a reutilização. De facto, a própria pluralidade destes três termos, e de
tantos outros cunhados nos tempos mais recentes, são um indiscutível indício do
pluralismo com que a nossa cultura arquitectónica pode abordar qualquer
proposta de relação entre um objecto arquitectónico valioso e a sua
visualização.
Em segundo lugar, a multiplicação das interpretações. Se
algo se pode considerar positivo na situação cultural contemporânea é que se
passou de um sistema de valores definidos, legitimados, estabelecidos pelos
poderes, a uma situação re-flexiva na
qual o juízo sobre uma experiência, umas imagens ou uma conduta não é formado aprioristicamente,
exigindo, pois, um processo de elaboração através do confronto de indivíduos ou
grupos, através de interpretações. Da parte de quem actua como perito, como
artista, como político no chamado Património Monumental existem sempre riscos
que há que assumir e que apenas se desvanecem através do debate e do confronto
de ideias e opiniões distintas. Por outras palavras, a única possibilidade é a
de fazer propostas que, na medida em que não podem ter validação prévia, devem
ser suficientemente flexíveis, provisórias, abertas para permitir que sejam
emendadas, reconsideradas e modificadas.
Por último, como afirma Guy Debord [14], perante a
impotência de se colocar frontalmente contra a sociedade do espectáculo e a
universal mercantilização de qualquer actividade ou produto, resta apenas a
astúcia e a deriva. Astúcia para se mover com mais agilidade, engenho e rapidez
que a máquina universal do mercado. Deriva como forma alternativa de se mover
no seio do corpo minado dos sistemas de poder que, iniludivelmente, vão
registar qualquer proposta incorporando-a no mercado universal da simulação e
do consumo. Se a deriva urbana era para Debord um modo de se encontrar com a
cidade movendo-se entre o acaso e o improviso, a relação que possamos propor
para os edifícios ou os lugares que consideramos notáveis oscilará também entre
a aposta arriscada e a confiança nascida da intimidade.
14. Guy Debord, Potlatch
(1954-1957), Éditions Gérard Lebovici, Paris, 1985.
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Notas de edição
Artigo publicado
originalmente na Revista Loggia,
Arquitectura & Restauración, 5 de Julho de 1998 e republicado em
“Territórios”, Ignasi Solà-Morales, Gustavo Gili, 2002. A tradução para
português foi realizada por Rui Gilman.
Imagens
1. Martin Parr, Notre-dame de Paris.
2. Duane Hanson,
Tourists II, 1988
3. Estátua de
cera, Kim Kardashian a tirar um selfie (Getty
Images)
Ignasi de Solà-Morales
Barcelona, 1942/Amsterdão, 2001. Arquitecto e filósofo, foi
catedrático de Teoria e História de Arquitectura na ETSAB e professor convidado
em numerosas universidades americanas e europeias. Membro fundador da ANY,
formava parte de comités editoriais de várias revistas internacionais. Autor de
diversos livros e artigos de crítica, publicados nas principais revistas
especializadas do mundo, partilhava a sua actividade teórica e docente com a
sua actividade enquanto arquitecto.
Ficha Técnica
Data
de publicação: 01.12.2016
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