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Há duas perguntas que os
eleitores de centro-esquerda nos EUA estão a fazer: quem são essas pessoas que
votaram em Trump? E porque é que esse resultado nos apanhou de forma tão
desprevenida? A palavra “devastação” é apenas uma primeira forma de expressar o
sentimento generalizado que atravessa as pessoas que conheço. Não tínhamos
consciência do quão disseminada é a raiva contra as elites, o quão profunda é a
raiva de homens brancos contra o feminismo e contra o movimento pelos direitos
civis, o quão desmoralizadas muitas pessoas estão à custa da despossessão
económica e o quão inebriadas as pessoas estão pelo isolacionismo e com a
perspectiva de novos muros e belicosidade nacionalista. Será essa a nova
“whitelash” [reacção branca]? Como foi que não previmos a dimensão disto?
Assim como os nossos
amigos no Reino Unido depois do Brexit, estamos agora cépticos quanto às
pesquisas das intenções de voto: quem é inquirido e quem não é? As pessoas
dizem a verdade quando são inquiridas? É mesmo verdade que os homens brancos
representaram a grande maioria de eleitores e que muitas pessoas de cor ficaram
fora? Quem é esse público raivoso e nulificante que preferiria ser governado
por um louco do que por uma mulher? Quem é esse público raivoso e niilista que
põe as devastações do neoliberalismo e do capitalismo desregulado na conta da
candidata do Partido Democrata? Temos que refletir agora sobre populismo (à
direita e à esquerda), e sobre misoginia – o quão profundamente enraizada ela
realmente está.
Para o bem ou para o
mal, Hillary é identificada com a política do establishment. Mas o que não deve ser subestimado é a raiva
profundamente enraizada contra sua figura – em parte resultado de uma rank misogyny e uma repulsa contra
Obama, alimentada por um racismo que há muito vem fermentando. Trump libertou
uma raiva reprimida contra feministas (representadas como uma polícia
censuradora), contra o multiculturalismo (visto como uma ameaça aos privilégios
brancos) e contra migrantes (enquadrados como uma ameaça à segurança). A
retórica vazia da falsa força triunfou – sinal de um desespero mais profundo do
que pensávamos. Mas talvez estejamos mesmo testemunhando uma repulsa contra o
primeiro presidente negro ligada a uma raiva diante da possibilidade de se
eleger a primeira presidente mulher da história do país, por parte de muitos
homens brancos e algumas mulheres. Para um mundo que está cada vez mais erroneamente
caracterizado como pós-racial e pós-feminista, estamos agora a ver como a
misoginia e o racismo se sobrepõem ao juízo e a um compromisso com objetivos
democráticos e inclusivos – são paixões sádicas, ressentidas e destrutivas que
conduzem o nosso país.
Quem são essas pessoas
que votaram em Trump, mas quem somos nós que não vimos o seu poder, que não
antecipamos isso tudo, que nem sequer imaginávamos que havias pessoas que seriam
capazes de votar num homem com um discurso racista e xenófobo, com um histórico
de ofensas sexuais, de exploração de trabalhadores, de desprezo pela
constituição, por migrantes, e defendendo um plano negligente de avanço da
militarização? Talvez o isolamento do nosso pensamento de esquerda e liberal
nos tenha impedido de compreender a verdade. Ou quem sabe fomos demasiados
ingénuos em acreditar na natureza humana. Em que condições é que a raiva libertada
e a militarização irresponsável conduzem a um voto maioritário?
É claro, ainda não
sabemos qual foi a porção da população que de facto votou. Mas fica a questão
de saber como é que uma democracia parlamentar nos deixou um presidente violentamente
antidemocrático, e se agora não teremos de nos preparar para ser mais um
movimento de resistência do que um partido político. Afinal, num comício
recente de Trump, os seus apoiantes desavergonhadamente revelaram o seu ódio
exuberante: “Nós odiamos muçulmanos, nós odiamos negros, nós queremos tomar o nosso
país de volta”.
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Notas da edição
Artigo publicado em inglês no site e-flux e no blog da Boitempo. Tradução Jornal Punkto a partir da
versão brasileira e da versão inglesa.
Judith Butler
Filósofa e professora na Universidade da Califórnia
(Berkeley). Com um percurso académico reconhecido, tem desenvolvido intensa e
percursora investigação e debate em tornos dos estudos do género e feminismo.
Ficha Técnica
Data
de publicação: 11.11.2016
Etiqueta: Pensamento Crítico \ Política
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