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O nosso tempo é o de uma
patrimonialização e musealização generalizadas, ao ponto de haver quem tenha
diagnosticado uma “doença patrimonial”, que não pode ser confundida com as manifestações
do “culto moderno dos monumentos”, a que o historiador de arte Alois Riegl
(Viena, 1858-1905) dedicou um célebre estudo com esse título, em 1903, decisivo
para a concepção moderna de património e para a definição dos princípios de uma
política patrimonial. Este fenómeno contemporâneo segue a par de uma
hipertrofia das questões da memória, que fez da díade memória/história uma das
problemáticas mais obsessivas do nosso tempo, prova de que as representações
construídas na esfera subjectiva e privada passaram a ser modos de conhecimento
e de retorno do passado que a ciência historiográfica teve de ter em conta. De
tal modo que as questões da “memória colectiva” e dos “lugares da memória” impregnaram
de maneira decisiva o trabalho dos historiadores. A memória tornou-se um dos
grandes temas actuais e a atitude patrimonialista deve ser entendida como uma resposta
aos deveres que ela incute.
Um dos paradoxos da
patrimonialização (bem visível quando o seu objecto são os centros históricos
de muitas cidades) é que ela retira do uso o que deveria fazer parte do curso normal
da vida quotidiana. O que é assim classificado exibe-se como passado
fossilizado e sublinha com grande relevo os anacronismos e os traços de
artificialidade. Ou seja, o que traz a salvação traz também consigo sinais de
morte. A propósito da hipertrofia da memória, importaria hoje, talvez,
reactualizar o gesto de Nietzsche, quando o filósofo alemão, na segunda metade
do século XIX, entrou em polémica com o historicismo que dominava a cultura do
seu tempo e denunciou, na sua segunda “Consideração Intempestiva”, intitulada, Das Vantagens e Inconvenientes da História
para a Vida, uma “doença histórica” que, segundo ele, tinha o efeito
devastador de esterilizar e aniquilar as forças criativas. De certo modo, foi
isso que fez o filósofo Hermann Lübbe, que diagnosticou na cultura ocidental
contemporânea uma obsessão pelo passado como nunca tinha acontecido antes, bem
visível na proliferação de museus e memoriais. Mesmo muitos dos monumentos do
século XIX, marcados por uma enorme pobreza estética e pelo único objectivo de
legitimar a política – desprezados e “demolidos” pelo modernismo e pelas
vanguardas históricas – beneficiam agora da nossa intensa cultura memorial.
Mas há um profundo paradoxo nesta
nova sensibilidade temporal. E esse paradoxo manifesta-se com grande
intensidade nos media actuais que, parecendo
muitas vezes estar sintonizados com esta lógica de celebração, monumentalização
e rememoração do passado segregam uma cultura da amnésia e difundem-na em larga
escala. Essa amnésia é, antes de mais, o efeito de uma aceleração do tempo que
os meios de comunicação promovem. A velocidade destrói o espaço e apaga a
distância temporal. A lógica totalitária dos media é o “zapping” e o que os move com mais força é a
fantasmagoria do novo, mesmo que esse “novo” seja o antigo fetichizado como
mercadoria e esterilizado como memória activa. Nos media, a preocupação patrimonial não é muito diferente daquela que
move geralmente o turista, na sua pretensão de satisfazer o desejo de viajar
pelo passado ou, até, de fazer viagens ao país dos arquétipos. Percebemos assim
as condições em que florescem as fantasmagorias do novo, do inédito, do que
nunca tinha sido descoberto antes, em todos os domínios (da arte, das letras,
da moda, dos costumes e do património, evidentemente), e está sempre a começar
ou a recomeçar, sob a forma de uma nova época, de uma nova geração, de uma nova
década, de um novo ano. O escritor alemão Botho Strauss apreendeu exactamente
esta situação num breve texto em que afirma que “nenhuma outra época produziu
em tão pouco tempo tanto passado como a nossa”. Esta lógica, que levou um
filósofo como Odo Marquard a falar da nossa época como “época das epoquizações”,
conduz à identificação de unidades de tempo cada vez mais breves, até ao ponto
em que o novo coincide com a efeméride e a comemoração (o fenómeno do revival a que estamos hoje tão
habituados é disso uma manifestação evidente). Podemos hoje ver como os media, de um modo geral, mais não fazem
do que passear pelo passado patrimonial como turistas que seguem um roteiro, e,
por conseguinte, escamoteando a verdadeira dimensão histórica, homogeneizando um
tempo-património que é morto, embalsamado, comemorado. E fazem-no segundo a
mesma lógica com que se aplicam constantemente a fazer a lista dos novos
talentos e a catalogar as formas novas e as tendências epocais nas artes e no
pensamento, numa busca desenfreada pela novidade que é uma espécie de versão niilista
da ideologia do progresso. Em parte, essa atitude é uma manifestação eloquente
do que se passa hoje com a obsessão da memória: seja sob a forma de dever de
memória ou de trabalho da memória, não se promove uma consciência mais aguda da
historicidade, mas relega-se tudo o que não releva do presente imediato quer
para o esquecimento quer para o museu. A museificação acaba por ter,
paradoxalmente, um efeito amnésico, e o passado museificado não parece impor
nenhuma outra responsabilidade que não seja apresentar-se como mercadoria
turística atractiva. Em 2002, o historiador de arte italiano Salvatore Settis
publicou um livro, chamado Italia S.p.A
(Einaudi) onde defendia que estava em curso, em Itália, um “assalto ao
património cultural”. O assalto não tem o mesmo grau de violência em todas as
latitudes, mas por todo o lado descobrimos facilmente que ele se tornou uma
regra.
Mas a questão não pode ser colocada
apenas no modo como os media representam
ou se servem do património cultural. A questão é mais funda e tem a ver com o
modelo de temporalidade que os media
instituem e do qual, ao mesmo tempo, são uma criação: a memória individual e
colectiva é hoje afectada pela emergência de uma nova estrutura de
temporalidade gerada pela aceleração da vida material, por um lado, e pela
aceleração das imagens mediáticas, por outro. Chegámos ao limite máximo de uma
temporalização da história que não deixa que nada se sedimente. Este fenómeno
que começou com a modernidade é determinado por um aumento progressivo da
velocidade de destruição do espaço e de apagamento da distância temporal. E
quanto mais resgatamos a memória do fundo dos arquivos ou das ruínas de pedra,
mais o passado é aspirado no nosso presente, pronto a ser projectado num ecrã.
O tempo dos media é o da simultaneidade de todos os tempos, subtraído a
qualquer sentido do antes e do depois, das continuidades e descontinuidades.
Tudo é acessível ao presente, que é a única dimensão do tempo que prevalece, e
a percepção da distância espacial e temporal é completamente apagada. O tempo
dos media é o tempo do passeio
turístico. E este “presentismo”, induzido pela simultaneidade das imagens, é em
boa medida imaginário. É como a desrealização narcísica operada pelas selfies. Deste modo, nada é tão eficaz
como os media para anular a diferença
entre passado e presente e para tornar imperceptível a alteridade no tempo
histórico ou na distância geográfica. Poder-se-ia dizer de um qualquer objecto
ou monumento do património histórico e cultural o que Walter Benjamin disse da
aura, mas invertendo os termos: em vez de ser a aparição de algo longínquo, por
mais próximo que esteja (assim definiu Benjamin a aura de uma obra de arte), o
património monumental – sobretudo esse – é a aparição de algo próximo por mais
distante que esteja. Ora, esta excessiva proximidade é um efeito mediático.
Nada escapa a esta lei do familiar que é uma característica do Kitsch. Tudo se apresenta e se
representa num horizonte previsível e exaustivamente calculável. O que
significa que não há lugar para uma experiência de conhecimento. Visitar hoje o
centro histórico de uma cidade é seguir um roteiro que nos assegura que nenhuma
verdadeira experiência pode ter lugar porque tudo é feito para que a visita
seja de reconhecimento: tudo é previamente representado e representável, pelo
que somos subtraídos a toda a experiência da distância; e tudo coincide consigo
mesmo, está assegurada a máxima adequação imanentista. Há, em suma, uma
determinação exclusiva do próximo, do reconhecível, do conforme. Isto
corresponde a uma kitschificação
generalizada, que vai a par da transformação do património em mercadoria. E
enquanto mercadoria ele não tem outra “temporalidade” que não seja a
circulação, uma circularidade temporal que é uma espécie de “eterno retorno”. A
questão que se coloca hoje, quando o modelo de temporalidade é eminentemente
mediático, é este: que consciência histórica nos é dada pelo património quando
entrámos na lógica de um apagamento ou de uma denegação veemente da
temporalidade – uma denegação que chega ao extremo da sua lógica no sistema mediático
e “tele-económico” em que vivemos? Por conseguinte, o problema não é tanto as
representações (verdadeiras ou falsas) ou as omissões do património cultural
nos media, mas muito mais a maneira
como percebemos e vivemos a nossa temporalidade, numa época em que os media visuais invadiram todos os aspectos da
vida pessoal, política e cultural.
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Notas de edição
Artigo publicado originalmente
na Revista Património nº3, Dezembro 2015 com o título “O tempo do património e
o tempo dos media”. O Artigo é
publicado com autorização do seu autor. As imagens escolhidas são da
responsabilidade da edição. Este texto é parte integrante do Dossier “Souvenirs
de Porto \ A cidade e o turismo!
Imagens
1. Michael Nash, Varsóvia, 1946.
António Guerreiro
Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Português/Francês). Foi
ensaísta e crítico literário do semanário "Expresso", actualmente é
colaborador do Público/Ípsilon., publicou um volume de ensaios, O Acento Agudo do Presente (Cotovia,
2000). Tem colaboração dispersa em revistas e volumes colectivos e editou, com
Olga Pombo e António Franco Alexandre, Enciclopédia
e Hipertexto (Editora Duarte Reis, 2006). Fundou com José Gil, Silvina
Rodrigues Lopes a revista Elipse. Walter
Benjamin e Aby Warburg (sobre os quais tem vários artigos publicados) são os
dois pontos fortes do seu trabalho nos últimos anos.
Ficha Técnica
Data de publicação: 02.11.2016
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