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O “Ensaio sobre a lucidez” de Saramago conta
a história de uma estranha sucessão de eventos que ocorrem na capital desconhecida
de um hipotético país democrático. Quando a manhã de um dia de eleições é assolada
por chuvas torrenciais, a afluência às urnas regista valores perturbadoramente
baixos, mas com a melhoria do tempo, a meio da tarde, a população dirige-se em
massa para as urnas. Contudo, o alívio do governo é de curta duração quando a
contagem dos votos revela que mais de 70% dos boletins foi deixado em branco.
Surpreendidos por este aparente lapso cívico, o governo dá uma nova hipótese
aos cidadãos e marca novo acto eleitoral uma semana mais tarde. Os resultados
são ainda piores: 83% dos boletins são deixados em branco. Será isto uma
conspiração organizada para derrubar não apenas o governo, mas a totalidade do
sistema democrático? E, se sim, quem está por detrás disso e como se conseguiu
mobilizar centenas de pessoas para um acto subversivo dessa dimensão sem que
nada o fizesse prever? A cidade continua a funcionar normalmente, numa
generalizável e inexplicável aceitação da situação existente, num gesto de verdadeira
resistência não-violenta à imagem de Gandhi…A lição deste ensaio ficcional é
clara: o perigo hoje não é a passividade, mas a pseudo-actividade, a vontade de
ser “activo”, de “participar”, de maneira a mascarar a vacuidade daquilo que
continua. As pessoas intervêm sempre, “fazem algo”, académicos participam em
debates sem importância e etc. O que é verdadeiramente difícil é recuar,
retirar-se. Aqueles que estão no poder preferem apesar de tudo uma participação
“crítica”, um diálogo, para silenciar – para nos colocar em diálogo, fazer com
que a nossa passividade ameaçadora seja anulada. A abstenção dos eleitores é um
verdadeiro acto político: confronta-nos directamente com a vacuidade absoluta
das democracias actuais.
É deste modo que os eleitores deveriam
responder à escolha entre Clinton e Trump. Quando perguntaram a Estaline, nos
anos 20, que desvio é pior, a direita ou a esquerdista, ele responde: “Os dois
são piores!” Não podemos dizer o mesmo relativamente às escolhas que os
eleitores americanos têm pela frente nas eleições presidenciais de 2016? Trump
é obviamente «pior», ele promete uma viragem à direita e leva a cabo a
decadência da moral pública; contudo, ele promete uma mudança enquanto Hillary
é “pior” porque faz da mudança algo absolutamente indesejável. Numa tal opção,
deveríamos ser capazes de pensar friamente e escolher o “pior”, que
significaria mudança – mesmo sendo uma mudança perigosa, pois abre espaço para
uma mudança mais autêntica. Mas a questão não está em simplesmente votar em
Trump – nem ninguém deve votar em alguém desse nível, nem devíamos sequer
participar nestas eleições. Devemos procurar guardar alguma distância
relativamente a esta questão e perguntar: qual destas vitórias é melhor para o
destino do projecto emancipatório radical, a de Clinton ou a de Trump?
Trump quer tornar América grande outra vez, enquanto
Obama responde que a América já é grande. Mas será que é mesmo? Pode um país
ser considerado grande, quando uma pessoa como Trump é um sério candidato à
presidência? Os perigos de uma presidência de Trump são óbvios: ele não prometeu
apenas nomear juízes conservadores para o Supremo Tribunal; ele mobilizou os
piores círculos de supremacia branca e celebra um racismo anti-imigração; ele despreza
as regras elementares de decência e simboliza a desintegração das regras éticas
básicas; e enquanto demonstra preocupação pela misérias das pessoas ele efectivamente
promove uma agenda neoliberal que incluí cortes de impostos para os mais ricos,
mais desregulação, etc. e etc. Trump é um oportunista vulgar, mas ele é ainda
um espécime vulgar da humanidade (ao contrário de entidades como Ted Cruz ou
Rick Santoro, que suspeito serem extraterrestres). O que Trump não é
definitivamente é um capitalista inovador e produtivo – ele aposta na sua bancarrota
e depois em fazer com que os contribuintes paguem as suas dívidas.
Os liberais, desorientados por Trump,
descartam a hipótese que uma vitória eventual de Trump possa iniciar um
processo de onde uma verdadeira esquerda emergiria – o seu contra-argumento é a
referência a Hitler. Muitos alemães comunistas receberam a tomada de poder dos
nazis como uma renovada oportunidade para a esquerda radical os conseguir
derrotar, mas como sabemos hoje, isso foi um erro catastrófico. A questão é:
passa-se o mesmo com Trump? É Trump um perigo que deve juntar uma frente
alargada, tal como se fez com Hitler, uma frente onde conservadores decentes e
libertinos lutam lado a lado com liberais progressistas e com aquilo que resta
da esquerda radical? Frederic Jameson tinha razão quando alertava para os
perigos de chamar ao movimento de Trump um novo fascismo: «as pessoas dizem: isto
é um novo fascismo e a minha resposta é – ainda não» (de facto, a palavra
fascismo é hoje uma palavra vazia que se usa quando algo de perigoso aparece na
cena política, mas falta-nos um entendimento cabal do que ela significa de
facto – não, os populistas de hoje não são simplesmente fascistas!) E porquê,
ainda não?
Primeiro, o medo que uma vitória de Trump
possa tornar os EUA num Estado fascista é uma exageração ridícula. Os EUA têm
uma rica textura de instituições política e civis que impedem que o “Gleichschaltung”
seja simplesmente decretado. De onde vem, por isso, todo este medo? A sua
função é obviamente juntar todos contra Trump e assim ofuscar as verdadeiras e
reais divisões políticas que correm entre uma esquerda ressuscitada por Sanders
e Hillary – que é a verdadeira candidata do sistema suportada por uma alargada
coligação que incluí velhos guerreiros de Bush como Paul Wolfowitz e a Arábia
Saudita. Segundo, o facto é que Trump vai buscar apoios precisamente aos mesmos
quadrantes de onde Bernie Sanders mobilizou os seus partidários – ele é
percebido pela maioria dos seus apoiantes como o candidato anti-sistema, e o que
nunca deveremos esquecer é que a raiva popular corre ao sabor do vento e pode
ser sempre redireccionada. Os liberais que temem a vitória de Trump não estão
realmente com medo de uma deriva radical à direita. Aquilo que eles temem é uma
verdadeira mudança social. Para repetir Robespierre, eles admitem (e estão
sinceramente preocupados com isso) as injustiças da nossa vida social, mas eles
querem curá-las com uma «revolução sem revolução» (num paralelismo exacto com o
nosso actual consumismo que oferece café sem cafeína, chocolate sem açúcar,
cerveja sem álcool, multiculturalismo sem confrontos imediatos, etc.): uma
visão da mudança social sem qualquer mudança, uma mudança onde ninguém se magoe,
onde liberais bem-intencionados permanecem encasulados nos seus enclaves
seguros. Em 1937, George Orwell escrevia:
“Todos nós gritamos contra distinções de
classe, mas muito poucos querem de facto abolir essas distinções. Aqui chegamos
à importante constatação de que toda a opinião revolucionária retira parte da
sua força daquela secreta convicção de que na verdade nada pode ser mudado”
O argumento de Orwell é de que os radicais
invocam a necessidade de uma transformação revolucionária como uma espécie de totem
que deve assegurar exactamente o oposto, isto é, prevenir precisamente a única
mudança que realmente importa, a mudança daqueles que nos governam. Quem
realmente quer governar o EUA? Não estamos já a ouvir os sussurros daquelas
reuniões secretas onde membros das elites financeiras (e outras) estão a
negociar a distribuição das posições-chave na administração Clinton? Para ter
uma ideia de como essas negociações funcionam é suficiente ler os emails de John
Podesta ou os discursos que Hillary Clinton fez para a Goldman Sachs. A vitória
de Hillary é a vitória de um status quo ofuscado
pela possibilidade de uma nova guerra mundial (e Hillary é definitivamente a
típica fria guerreira democrática), o status
quo de uma situação onde gradualmente, mas inevitavelmente, se desliza para
uma catástrofe tanto económica como humanitária. Por isso é que considero
extremamente cínica a critica esquerdista da minha posição ao reivindicar que:
para intervir numa crise a esquerda deve
estar organizada, preparada, e ter o apoio da classe trabalhadora e dos
oprimidos. Não podemos de maneira nenhuma apoiar o racismo e o sexismo que nos
divide e que enfraquece a nossa luta. Devemos sempre permanecer do lado dos
oprimidos e devemos ser independentes, lutando por uma alternativa de esquerda
para sair da crise. A catástrofe de Trump para a classe governante é também a
nossa catástrofe, se não se erguer as bases para a nossa própria intervenção.
Verdade, a «esquerda deve estar organizada,
preparada, ter o apoio da classe trabalhadora e dos oprimidos» – mas neste caso
a questão deveria ser: que candidato contribuiria mais para a organização da
esquerda e para a sua expansão? Não seria lícito pensar que a vitória de Trump poderia
«erguer as bases para a nossa intervenção» muito mais que a vitória de Hillary?
Sim, há um grande perigo na vitória de Trump, mas a esquerda só se mobilizará
através de uma tal ameaça ou catástrofe – se continuarmos nesta inércia do status quo existente não haverá
certamente qualquer mobilização de esquerda. Estou tentado a citar Hölderlin: «mas
onde está o perigo, também cresce aquilo que salva». Na escolha entre Clinton e
Trump nenhum deles “permanece do lado dos oprimidos” e, portanto, a verdadeira
escolha é: abster de votar ou escolher aquele que, independentemente de quem
seja, possa desencadear uma nova dinâmica política que leve a uma radicalização
massiva à esquerda.
Muitos dos eleitores pobres afirmam que Trump
fala por eles – como podem eles reconhecerem-se na voz de um bilionário cujas
especulações e falhanços são uma das causas da sua própria miséria? Como os
caminhos de deus, os caminhos da ideologia são misteriosos. Quando os apoiantes
de Trump são denunciados como «white
trash», é fácil discernir nessa designação o medo pelas classes baixas que
caracteriza a elite liberal. Este é o título e o subtítulo de uma reportagem
que o The Guardian fez de um comício
de Trump: “Dentro de um comício de Donald Trump: boas pessoas numa espiral de ódio
e paranoia. A multidão de Trump está cheia de pessoas honestas e decentes – mas
as invectivas do candidato Republicano têm um efeito arrepiante nos fãs deste one-man show». Mas como é que Trump se
tornou a voz de tantas pessoas honestas e decentes? Trump de uma só vez arruinou
o partido republicano, antagonizando tanto o antigo establishment do partido como os fundamentalistas cristãos – aquilo
que, hoje, permanece como o núcleo desse suporte são os portadores da raiva
populista contra o sistema, e esse núcleo é desvalorizado pelos liberais como «white
trash» – mas não são estes precisamente aqueles que devem ser trazidos para a
causa da esquerda radical (e isto foi o que Bernie Sanders conseguiu).
Devemo-nos livrar dos falsos pânicos, temendo a vitória de Trump como um último
horror que nos faz apoiar Hillary apesar de todos os seus evidentes defeitos. Embora
a batalha pareça perdida para Trump, a sua vitória teria criado uma situação
política totalmente nova com hipóteses para uma esquerda mais radical – ou,
para citar Mao: «Há desordem debaixo do céu, por isso a situação é excelente».
Há ainda um outro aspecto do duelo Trump/Clinton
que diz respeito à diferença de género. Surpreendentemente, o comunista Maoista
Alain Badiou – no seu novo livro “La vraie vie” – avisa-nos acerca dos perigos
de crescer numa crescente ordem niilista pós-patriarcal que se apresenta a si
mesmo como o domínio das novas liberdades. Vivemos numa era extraordinária onde
não existe uma tradição onde basear a nossa identidade, nenhum enquadramento para
uma vida com sentido que nos permitiria viver para além de uma simples
reprodução hedonista. Esta Nova Desordem Mundial, afecta exemplarmente os mais
novos que oscilam entre a máxima intensidade (prazer sexual, drogas, álcool) e
a procura de sucesso (estudar, ter uma carreira, ganhar dinheiro…dentro da
ordem capitalista existente), sendo a única alternativa a tudo isso um retiro
violento numa qualquer tradição ressuscitada artificialmente.
Badiou observa de uma forma perspicaz que
estamos perante uma versão decadente e reactiva do recuo do Estado anunciado
por Marx: o Estado, hoje é cada vez mais um regulador administrativo do
egotismo de mercado, sem autoridade simbólica, completamente desprovido daquilo
que Hegel chamava a essência do Estado (a comunidade abrangente pela qual todos
nós estaríamos prontos para nos sacrificarmos). A desintegração desta Substância
ética é assinalada pela abolição do recrutamento militar (universal) em muitos
países desenvolvidos: a própria noção de estar preparado para pôr em risco a
vida por uma causa comum é considerada insignificante senão mesmo ridícula, de
modo que as forças armadas, como corpo em qual todos os cidadãos participam
igualmente, estão a transformar-se em forças mercenárias.
A desintegração de uma Substância ética
partilhada afecta os dois sexos de diferentes formas: os homens tornam-se
gradualmente eternos adolescentes sem um momento claro de iniciação que marque
a sua entrada na maturidade (o serviço militar, a profissão, mesmo a educação
deixou de desempenhar este papel). Não é de admirar, então, que para suplantar
esta falha, proliferem os jovens gangs pós-paternais, oferecendo uma falsa
iniciação e identidade social. Ao contrário dos homens, as mulheres são hoje
cada vez mais precocemente desenvolvidas, tratadas como pequenas adultas, esperando-se
que tenham controlo sobre as suas vidas, sobre as suas carreiras profissionais…
Nesta concepção de diferença de género os homens são adolescentes lúdicos, foras-da-lei, enquanto as mulheres são
fortes, maduras, sérias, cuidadosas e punitivas. Hoje a ideologia dominante não
considera as mulheres como subordinadas, mas são chamadas a ocuparem cargos
como juízas, administradoras, ministras, CEOs, professoras, e até mesmo polícias
ou soldados. Um cenário paradigmático que ocorre diariamente nas prisões ou
instituições de correcção; é que são efectivamente professoras, juízas,
psicólogas a lidarem com jovens rapazes delinquentes, anti-sociais… Uma nova
figura está assim a surgir: uma agente do poder frio e competitivo, sedutora e
manipuladora, confirmando o paradoxo que “na condição capitalista as mulheres
podem ser melhores que os homens” (Badiou). Evidentemente isto não quer dizer
que são as mulheres as agentes do capitalismo; mas demonstra sim que o
capitalismo contemporâneo inventou a sua imagem ideal da mulher.
Existe uma tríade política que traduz na
perfeição a categoria descrita por Badiou: Hillary – Duterte – Trump. Hillary
Clinton e Donald Trump são hoje o melhor casal político: Trump é o eterno
adolescente, um hedonista imprudente com tendências a brutais explosões
irracionais e que afectam directamente a possibilidade de ser eleito; enquanto
Hillary representa o novo ideal feminino (a primeira mulher presidente), uma
manipuladora implacável e autocontrolada que explora brutalmente sua condição feminina,
e se apresenta como protectora dos mais vulneráveis, dos marginais e das
vítimas – a sua condição feminina potencia a eficácia da sua manipulação. Não
deveríamos, por isso, ser seduzidos pela sua imagem de vítima do marido Bill a
galantear-se e a consentir que mulheres lhe façam sexo oral no trabalho – ele
era o verdadeiro palhaço enquanto Hillary é o “senhor” da relação – permitindo
ao seu servo pequenos prazeres irrelevantes… E o que dizer de Rodrigo Duterte,
o Presidente Filipino que solicita publicamente homicídios extrajudiciais a
drogados e traficantes, chegando mesmo a comparar-se a Hitler? Ele apoia a
decadência do sistema judicial transformando o poder do Estado numa máfia fora
da lei que aplica uma justiça selvagem; desta forma, ele consegue fazer o que
ainda não é publicamente permitido nos nossos “civilizados” países Ocidentais.
Se condensarmos estes três num só, obtemos a imagem ideal do Politico actual:
Hillary Duterte Trump.
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Notas
da edição
Artigo publicado em português e em
exclusivo na versão integral enviada pelo próprio autor. Tradução Revista
Punkto.
Slavoj
Žižek
Nasceu na cidade de Liubliana,
Eslovénia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos
contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência
principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efectua uma inovadora crítica
cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e
do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a
Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos directores do
centro de humanidades da University of London. Arqueóloga.
Ficha Técnica
Data de publicação: 08.11.2016
Etiqueta: Pensamento Crítico \ Política
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