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Adensa-se a sensação que as nossas cidades,
sobretudo as mais antigas, se encontram a pontos de submergir num efervescente
ambiente de “sempre em festa” promovido por exércitos de empreendedores,
abundantes empresas criativas e numerosas start-ups,
tudo bem enquadrado pelo poder autárquico que, sem qualquer pudor, aplica as
mesmas fórmulas mercantis de qualquer empresa bem cotada na bolsa, destinado
que está a convencer os “consumoeleitores”, a derrotar a concorrência e a
animar o povo, quanto mais não seja de 4 em 4 anos.
Em Portugal, desde pelo menos os anos 60 do
século passado que se aposta na “utilidade turística do país” tendo sido
criados os necessários instrumentos legais capazes de, numa primeira fase,
impulsionar a criação de muitas unidades hoteleiras e, numa segunda, promover planos
de urbanização sobretudo em zonas balneares, continuando assim a tendência que
vinha de finais do século XIX. Hoje a turistificação a que assistimos já não se
limita às áreas costeiras nem se faz só de mega-urbanizações e hotéis,
territórios apesar de tudo bem delimitados. A aposta agora é atingir o próprio
coração das cidades, as zonas e os bairros mais antigos onde as mudanças de
vida da população residente e as alterações urbanísticas ocorreram apesar de
tudo até agora de forma gradual, processo este em grande parte resultante do
anterior regime de arrendamento urbano e da estrutura socioeconómica a ele
associada.
Hoje, de forma brutal pela rapidez do
fenómeno, o turismo entrou na vida e na casa de cada um, no verdadeiro sentido
do termo, com cada vez mais pessoas a abandonar, mesmo que temporariamente, as
suas residências para que os turistas usufruam da intensa sensação de ser um local a custo reduzido. O turista é
agora um animal voraz munido de um arsenal técnico altamente sofisticado e
portátil capaz de captar as experiências mais genuínas e, num segundo, transmiti-las
ao mundo. Tudo está organizado à partida, o mundo é um lugar feliz e seguro
onde o manual de instruções cabe no bolso de cada um. Locais antes repletos de
gente que trabalhava, por vezes em condições muito duras, estão hoje destinados
ao ócio, espaços ordenados, higienizados e formatados, imagens nauseantes pelo
seu grau de oportunismo e falta de pudor. É assim que se canibalizam edifícios deixando-os
reduzidos a tristes fachadas, se expulsam os feios, porcos e maus que antes
frequentavam as ruas e vielas, as tabernas e as fábricas, os mercados e as
oficinas, dando lugar a estabelecimentos modernos cheios de jovens eficientes e
devidamente explorados. Por vezes, nestes novos espaços, há lugar para um
pequeno memorial dedicado às antigas actividades e aos seus trabalhadores, é
nele que as entidades com responsabilidades na gestão do património cultural,
os promotores e os projectistas descansam a sua consciência patrimonial e os
turistas podem, enfim, saciar a sua curiosidade. Dos edifícios pouco restou,
apenas o pitoresco de algumas formas, certos vestígios arqueológicos e uma
colecção de materiais de construção, tudo a servir de objectos decorativos que
vendem bem. O património é assim transformado num simples recurso económico e,
o turismo, a sua forma mais eficaz de exploração.
Imbuídos deste ambiente deveras estimulante,
nada melhor que passar agora a apresentar o nosso caso de estudo, exemplo
perfeito de como a passo de corrida se caminha para a extinção do que faz uma
cidade e ao surgimento de perversas e perigosas aberrações. Trata-se da
história da nossa Casa Oriental que teve o azar de se encontrar na rota do
exército de visitantes e oportunistas encartados. Esta antiga loja de venda de
chás, cafés e chocolates era até há bem pouco tempo um estabelecimento
tradicional do Porto, um negócio rentável e um apoio à população local por ser
uma das poucas mercearias do bairro e um famoso local de venda de bacalhau. Nos
seus antigos expositores de madeira brilhavam legumes, frutas e outras iguarias
de uso quotidiano, num ambiente meio desordenado típico de um local com vida.
Hoje a Casa Oriental é como uma sucursal museológica da “Histórica Casa
Portuguesa do Pastel de Bacalhau” nascida em 2016.
Ao interior da Casa Oriental agora bem
composta em “Estilo Lello” [1] que
parece ter sempre existido, corresponde uma fachada brilhantemente enfeitada com
falsa roupa a secar, falsa placa de bronze alusiva ao nome da falsa casa
portuguesa. Igualmente os bacalhaus de plástico à entrada, agora graças a Deus
higiénicos e sem cheiro, condizem com a falsa empregada de semblante
eternamente alegre mas de traços pouco lusitanos. A experiência inesquecível do
famoso pastel de bacalhau que no Porto, por sinal, se chama bolo, é acompanhada
por elegante copinho de vinho descartável da famosa Casa Taylor’s [2], empresa
com conhecidos pergaminhos no ramo do turismo como desígnio nacional. Como não
poderia deixar de ser, todo este ambiente sai valorizado com a presença de uma
obra de arte contemporânea, neste caso uma pintura de famosa artista nacional. Nela
se observa, sobre uma paisagem de inspiração medieval, um esplendoroso bacalhau
tal qual Santo iluminado por qualquer Graça divina!
E assim nasce mais uma pérola turística da
cidade mais alegre da Europa e uma das mais felizes do mundo, sempre com o alto
patrocínio das entidades que neste ano em que se celebram os 20 anos de
classificação do “Porto como Património da Humanidade”, deveriam estar a
trabalhar para honrar os compromissos que tomaram perante o país e perante a
UNESCO defendendo a cidade e os seus cidadãos deste estranho e deprimente
espectáculo.
Tchim
tchim ao Porto, um Real Fake!
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Referências
1.Livraria
Lello do Porto foi construída nos inícios do século XX sendo considerada uma
das mais bonitas do mundo.
2.Grupo
Taylor’s possuiu um hotel em Gaia (Yeatman Hotel), pretendendo agora alargar o
projecto turístico a toda a encosta até ao rio ocupando as antigas caves com
alojamentos, bares, restaurantes etc. Chamam-lhe a “Cidade do Vinho”.
Maria M. Ramalho
Arqueóloga.
Imagens
Fotografias
da autora do texto.
Ficha Técnica
Data de publicação: 19.10.2016
Etiqueta:
Territórios \ Cidades
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