≡
Quando o património, o turismo e o comércio (dito)
tradicional colidem, nunca se sabe o que vai resultar. Parte desta incógnita
explica-se facilmente pelo tipo de matérias em colisão - os nomes e as coisas
de que essas matérias são feitas não acertam
Património, quando era coisa do domínio privado,
percebia-se bastante bem enquanto legado de bens e valores que passavam de
geração em geração ao longo de dinastias familiares ciosas do seu estatuto, das
origens e da eternidade. Estrafegado para coisa pública e para a memória
colectiva, infinitamente subdividido em categorias desde as catedrais aos
chocalhos e pertencente sabe-se lá a quem desde a humanidade inteira até
ninguém que lhe acuda, transformou-se numa névoa problemática em estado
catatónico.
O turismo, se fosse estatística, era gente de um lado
para o outro que dormia pelo menos uma noite num estabelecimento hoteleiro.
Stendhal, o celebrado escritor da Cartuxa
de Parma ou do Vermelho e o Negro,
quando publicou as Memórias de um Turista
(Paris, 1838), ao mesmo tempo que inventava a palavra, actualizava o prestígio
social do aristocrata e do burguês viajante e culto que, na sequência da
tradição do Grand Tour, se podia dar
ao luxo de visitar gentes exóticas, ruínas e terras distantes só para marcar
diferenças e distanciamentos civilizacionais e animar serões distintos.
Democratizado com as férias remuneradas, as reformas e as viagens baratas, e
transformado em negócio global, o turismo perdeu rapidamente o verniz e
transformou-se no que muita gente distinta pensa ser uma versão contemporânea
das hordas dos vândalos equipados de electrónica, cartões de crédito e cabeça
leve. Nem tanto. Todos somos turistas mais ou menos distraídos ou obtusos.
O comércio tradicional é outra cegada. Nas minhas berças
eram lojas escuras e tabernas mal-cheirosas; nas galerias finas de oitocentos,
era coisa de requinte, muitas caixas e espelhos; nos bairros pobres era
comércio pobre; em Paris, luxo; nas ruas centrais seria comércio excepcional,
enxovais, mercearias finas, joalharias ou antiquários. Não adianta procurar
definições. É tradicional aquilo que se diz que é para os efeitos pelos quais
se diz que é e porquê. É uma definição como outra qualquer. Serve ao mesmo
tempo para falar das coisas e, sobretudo, a partir das coisas na demanda de
outros assuntos que assim se vão insinuando. Quando alguém quer dizer a alguém
que a sua condição é um pouco mais sofisticada, dir-lhe-á, por exemplo, sabes,
descobri este lenço naquela loja muito antiga, muito tradicional que há naquela
rua onde ninguém vai. O outro, se perceber, responder-lhe-á, sim, sim já sei, é
aquela loja que compra os restos de colecção da Zara. E pronto. Diz-se também
que o tradicional é autêntico. Outra vaca no milho. Autêntico é tudo o que
existe porque basta isso para lhe atestar a autenticidade, seja uma
falsificação de uma pintura conhecida, seja um porta-chaves com o Monstro do
Lago Negro.
Estamos quase a chegar. A Casa Oriental ostentava
bacalhaus autênticos e caixotes de fruta e legumes a esbordar para fora. Na
parede frontal tinha a mais execrável pintura de um escravo negro servindo o
seu amo branco em plena celebração colonialista: chá, café e cacau, tal como o
açúcar que os adoça, foram a base do sistema esclavagista que começava na costa
de África, passava pelos negreiros, pelas plantações, pelos engenhos, pelas
colónias e terminava em chávenas requintadas e concorridos serões sobre
encontros de culturas. Talvez a tal pintura mude agora de regime estético e
fique a flutuar incerta entre a denúncia dos direitos humanos e mais uma imagem
para a selfie.
Dentro da Casa Oriental é a folia total. O orientalismo
que a alta cultura europeia inventou vai para trezentos anos sempre se prestou
a fantasias, dourados, odaliscas, turbantes, pirâmides, ópio, seda e arabescos
entre outros adereços e ambiências como muito bem escreve Edward W. Said, 1978.
Agora que os estilos estão desformatados ou reduzidos a denominações tipo cool,
giro, diferente, retro, coiso…, tudo se complica – ou não – e então fica a
imaginação mais liberta para o mix: a lâmpada led e o lustre de cristal, as
letras e cartelas em falso metal a puxar ao antigo, uma espécie de tela pintada
a óleo com cartazes publicitários, fado, brasões, dourados, bolos de bacalhau,
flores de plástico, coisas penduradas a fazer de roupa a secar, simulacros de
simulacros, vernáculo e inglesing,
cores pastel, mosaico. Vomitei. Foi dos pasteis, perdão, bolos de bacalhau com
queijo da serra, coisa ainda mais detestável do que o bacalhau com natas das
cantinas e sem ser, tudo temperado com Fernando Pessoa “É a voz da terra
ansiando pelo mar”.
Vale tudo, percebem? Fusão, world music,
empreendedorismo, retórica de falsete,
É esse o problema, esse e os bacalhaus sintéticos pendurados na fachada.
É o conceito: o conceito é a tradição, percebem? Quero cheirar teu bacalhau,
Maria, etc,
Só não percebo porquê tanta polémica patrimonial,
turística, comercial, centro histórico, tanto regulamento, Unesco, tradição,
etc. Bastava uma coisa entre o Portugal dos Pequenitos, a Disneylândia, uma
feira medieval, Óbidos a escorrer chocolate, a feira popular e uma série do
canal história; isso e muitas aplicações, hosteis, bilheteiras, sustentável, sightseeing,
tuktour, design, short break, arte urbana, cycling, criativo, smart city… era
muito lindo, carago!
≡
Álvaro Domingues
Melgaço, 1959. É geógrafo e professor na Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto
Ficha Técnica
Data de publicação: 07.10.2016
Etiqueta:
Geografias \ Cidades
≡
Imprimir