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Numa época que fez de todos os rituais
efemérides de um passado distante, o «tempo dos incêndios» apresenta-se como o seu
mais íntimo ritual. Ele ocupa já o calendário profano sem o qual é impossível
pensar a liturgia do ano. E se todo o ritual tem na sua origem um sacrifício, a
redenção é o fim último de todo o sacrifício. E, por isso, o «tempo dos
incêndios» é à vez sacrifício e redenção, consumação e celebração. Poderíamos
dizer: a celebração da consumação tanto como a consumação da celebração. Só esse
movimento duplo explica e permite que um evento de consequências tão
devastadoras como este possa, ano após ano, ser consignado ao esquecimento.
“Que tudo possa voltar à normalidade” é o repto e a mais genuína ambição que se
ouve um pouco por todo o lado. Mas que não significa outra coisa que: “voltar à
normalidade para que tudo possa acontecer de novo no próximo ano”.
O ritual é o lugar onde cada época exorciza e
celebra a inaptidão de lidar consigo própria. O ritual não precisa de
explicação: é porque sim, acontece porque acontece. Naturaliza. É como o «tempo
dos incêndios». Ele já tem um tempo próprio que é dele e que o torna
simultaneamente único e cíclico, terrível, sangrento, voraz, mas ao mesmo tempo
inescapável e irredutível, necessário. Na
liturgia sacrificial das imagens de fogos convertidos em espectáculo de jornal
da noite, cumpre-se plenamente a consagração do ritual na sua inevitabilidade e
fatalidade. O segredo do seu fascínio é a secreta e irreprimível complacência
que une os espectadores. O mote de todo o ritual permanece válido aqui: é
preciso que algo seja sacrificado para que a sociedade no seu todo possa ainda
esperar a salvação. E só na medida em que é transformado em ritual pode o
«tempo dos incêndios» ser tolerado e ser tolerável.
Mas, num outro sentido, o ritual é a
consumação necessária dos despojos da guerra e dos seus excedentes. A floresta
e as casas abandonadas ou devolutas, as zonas peri-urbano-rurais são hoje os
despojos, os restos e os excedentes de uma guerra e de uma economia que têm o
território como objecto e como fim. Hoje como sempre. Toda a guerra é uma
economia e toda a economia é uma guerra. Ao Estado cabe a missão inglória de
combater messianicamente a tragédia que ele próprio fabrica. Ano após ano. E, no
final, o «o tempo dos incêndios» serve o seu duplo propósito: normaliza a
catástrofe e renova o ciclo de extracção. Ano após ano. Consumação e
celebração. Fogo e esquecimento.
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Imagens
1. Fotograma de “O Sacrifício”, Andrei Tarkovski
Pedro Levi Bismarck
Pedro Levi Bismarck é editor do Punkto. Arquitecto,
assistente convidado na FAUP e investigador do CEAU.
Ficha Técnica
Data de publicação: 11.08.2016
Etiqueta: Territórios \ Cidades
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