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A
importância da relação entre a teoria e a prática para a obra do arquitecto
põe-se hoje maioritariamente em relevo, dada a complexidade das escolhas
através das quais o “fazer” é guiado. Este problema é uma das emergências que
não se deve subvalorizar para a sobrevivência da própria disciplina. Os poucos
profissionais capazes de uma formulação lógica coerente e as poucas
possibilidades que eles têm de as levar avante, assim como a pesquisa teórica
no âmbito universitário e a concretização da mesma no âmbito profissional, são
pontos cruciais de onde o texto nasce. A Itália, país de origem de quem
escreve, é um exemplo evidente desta dicotomia e o arquitecto Eduardo Souto de
Moura é, pelo contrário, um exemplo positivo do qual se pode recomeçar. O texto
tenta analisar os pontos nos quais se alicerçam os pressupostos conceptuais e
operativos como instrumentos para a própria prática, na forma de trabalhar do arquitecto
português.
≡
1.
Depois de um passado culturalmente glorioso e activo na arquitectura
construída, a Itália parece hoje viver nas costas desse mesmo passado, não só
por causa da crise económica, que paira por quase toda a Europa, mas sobretudo
por ter ficado com o que restou dos ensinamentos dos últimos mestres. No “ring”
contrapõem-se as atitudes académicas e profissionais, com uma grande perda
(sobretudo pelos estudantes) do valor da transmissão do saber, que não pode ser
apenas teórico ou prático, mas sim a combinação dos dois.
Massimo Scolari, num ensaio intitulado Una generazione senza nomi, interpreta a
situação italiana, dividindo-a em três gerações e escreve: «a geração do meio
[onde inclui arquitectos como Aymonino, Rossi, Gregotti, Portoghesi] construía
pouco e escrevia muito. Esta qualidade, em conjunto com o desprezo pelo
“profissionalismo” da especulação urbanística, parecia aos estudantes um nobre comportamento
a seguir; e como tal começou a fazer parte das revoltas anti institucionais
destes anos» e continua, «Este terrorismo cultural, tanto mais mortal porque
conduzido por pessoas de indiscutível inteligência, teve por quase dez anos a
mão suspensa nas mesas de desenho […]» com o resultado de que as gerações
sucessivas «[…] inquinadas no tormento da análise urbana não ouviram o tiro que
reavivava a corrida à construção. E quando se aperceberam de tal facto de pouco
lhes serviram as obras L’architettura
della città ou Il territorio
dell’architettura. À maioria das “gerações sucessivas” foi reservado o
privilégio da arquitectura de papel›› [1]. Rafael Moneo, numa publicação onde refere outras passagens
de Scolari, continua o raciocínio na mesma linha, embora com menos ênfase: «A
ansiedade de chegar à utopia, as fantasias que tinham mantido viva a discussão
teórica em volta da arquitectura [em Itália], durante os anos setenta e oitenta,
colapsaram com a queda do muro de Berlim e o desmembramento da União Soviética».[2]
O período de ouro da arquitectura italiana soube
revelar-se para além dos confins do Bel
Paese, através de obras que se tornaram motivo de estudo por parte de arquitectos
de todo o mundo, também portugueses, graças à difusão de textos teóricos que
até hoje tiveram a força de influenciar a obra. No interior da entrevista A ambição à obra anónima, numa conversa com Eduardo Souto de Moura,
quando Paulo Pais pergunta se se interessava por poesia, Souto de Moura
responde enquadrando a questão no campo da arquitectura, afirmando que existe
um vazio de investigação teórica. Segundo este, os últimos arquitectos que
elaboraram textos teóricos foram Aldo Rossi com L’architettura della città e Robert Venturi com Complessità e contraddizioni nell’architettura
nos anos sessenta. O que significa quarenta anos (vinte e cinco à época) sem
que um livro tivesse guiado uma os arquitectos, que, entretanto, têm percorrido
estradas paralelas. Hoje, podemos afirmar que isto tem levado a uma pluralidade
de percursos (o que podia enriquecer a disciplina mas…) que infelizmente,
muitas vezes, tendem à superficialidade estética da intervenção, empurrada por
um irreprimível desejo de emergir no Olimpo da arquitectura, ultrapassando directamente
o cansativo processo de elaboração teórico-prático para chegar rapidamente a
uma aparência estético-formal, segundo o gosto pessoal e as tendências do
mercado que vêem a arquitectura como um produto comercial. A afirmação de Souto
de Moura, além de sublinhar um aspecto que se relaciona com a investigação
crítica da disciplina, sublinha a importância que ele atribui à estreita
conexão entre a elaboração teórica e a prática: a primeira não como especulação
intelectual solipsista, mas como matéria viva para o projecto. De facto,
continuando a entrevista citando Novalis (“Quanto mais real mais poético”), ele
chega a definir o objectivo de cada arquitecto, ou seja, fazer «poesia…mineral»
[3].
Esta afirmação sintetiza eficazmente uma atitude do arquitecto
português. A poesia é uma escrita, uma escrita teórica; é também a síntese
máxima, onde o poeta exprime de forma culta e concisa, um pensamento. A poesia
não pode prescindir da precisão da palavra, para não comprometer a exactidão
com que o poeta quer comunicar; quanto mais preciso for o termo utilizado, mais
consegue transmitir a densidade do seu pensamento; é como se se criasse uma
contínua tensão entre as regras compositivas, que podíamos definir verticais e
horizontais, e a liberdade do pensamento, ao qual podíamos atribuir uma
ilimitada profundidade.
De igual modo, a obra arquitectónica de Eduardo Souto de
Moura deve ser precisa; síntese compositiva de uma elaboração culta surgida no
tempo. A atenta escolha e justaposição dos elementos pode comunicar algo de
profundo, como uma poesia, que tem a ver com a evolução da mesma disciplina e
esclarece o ponto de vista do qual o arquitecto observa o mundo e a história da
arquitectura e dos lugares. A linguagem é simples, sem retórica; deve comunicar-se
à essência do pensamento. Assim como a poesia é composição verbal em versos,
segundo determinadas leis da métrica, também a projecção surge respeitando
determinadas regras. Mas estas regras,
em Eduardo Souto de Moura, são releváveis a dois níveis, entre os quais se
entrelaça a elaboração teórica e prática. O primeiro nível tem a ver com a arquitectura
através da cidade. Ele aprende a partir de um representante da cultura arquitectónica
italiana, Aldo Rossi, e através do seu texto mais famoso, L’architettura della città, os instrumentos teóricos e o método
para uma análise mais eficaz e concreta, cujos resultados sejam aplicáveis no projecto.
O mesmo prémio Pritzker afirma: «[…] se Siza me deu a “mecânica” do projecto,
Rossi deu-me a “epistemologia”, o suporte conceptual à leitura da realidade e
do projecto». [4]
2.
O encontro com Rossi surge durante os anos da formação.
Estudar na Escola de Belas Artes do Porto naqueles anos significou a realização
de poucos projectos («Cheguei ao quarto ano e tinha só feito um projecto […]» [5] afirma o arquitecto) mas o desenvolvimento de uma série
análises que confluíam em sínteses que tardavam em chegar, segundo uma
ideologia que entendia a arquitectura como uma ciência social, apoiando-se no
estruturalismo ou no marxismo. A geração dos seus professores tem origem numa
viragem neo-realista e marxista de reacção ao Movimento Moderno e aos preceitos
da Carta de Atenas que, se bem que «plena de boas intenções» obteve «resultados
pouco brilhantes, como a urbanização periférica das cidades». [6]
A respeito da tábua rasa que o Movimento Moderno aplica
no confronto da história e do seu contexto, os seus professores instruem-no,
através do estruturalismo e da linguística, para uma análise da estrutura das
coisas para depois conseguirem agir. Mas estas análises ficam por aí, sem uma
elaboração prática consequente. Todos estes motivos levam os arquitectos
portugueses a terem “sede” de teoria, algo que naquela época em Itália se produz
de forma intensa entre múltiplos ensaios e publicações. Lendo L’architettura della città nessa altura,
Souto de Moura toma consciência de ter finalmente encontrado as regras em que se
apoiar. Estas regras servem para conduzir a transformação urbana, evocando
também as fontes literárias e de memória, o que é feito pela primeira vez.
Souto de Moura participa, assim, em dois seminários em
Espanha, um dos quais, em Santiago de Compostela em 1976, organizado pelo
próprio Rossi. Aqui aprende direitamente com o arquitecto italiano a
importância de explicar as razões do projecto, porque segundo Rossi «a única
coisa que importa na arquitectura é conseguir ter razão» [7]. Afirma-se assim o conceito de arquitectura como
disciplina científica, que influencia o futuro do arquitecto e compreendendo-se
a importância de um sistema que coloca a tipologia em relação com o local e a
forma. Finalmente, é possível analisar a história da cidade concretamente,
através do seu “corpo”; o famoso texto que influencia Souto Moura para a
precisão com que se tratam as partes deste “corpo”, às quais se atribuem nomes
precisos, classificando-as e ordenando-as através de uma hierarquia.
Assim, o livro de Aldo Rossi define as regras e um método
pelo estudo dos factos urbanos. Como lhe chama Alberto Ferlenga, trata-se de
uma análise que pede um «[…] esforço de recolha e de escolha […]» [8]; este é o processo intelectual que serve ao arquitecto
para chegar às instituições teóricas que estão disponíveis como material para o
projecto, o que comprova concretamente a própria teoria. Deste modo, Souto de
Moura usa a diversidade para uma estratégia de reconhecimento do terreno onde
trabalha. É como fazer um tratado de Biologia, primeiro classificam-se as
plantas e os animais, mas a Biologia não é só classificação de plantas e
animais. Mas numa determinada fase é necessário recorrer a um inventário. [9]
Através desta fase, e no reconhecimento das diversidades,
ele procura aquela regra comum que se constitua como crucial fundamento para
conduzir o projecto. Assim ele afirma: «Aquela minha obsessão sobre a procura
da regra, a procura da ordem, a procura do racional é um pressuposto teórico
para poder trabalhar, mas não tem um objectivo final». O arquitecto do Porto
reconhece a importância do tipo, mas uma vez individualizado, a investigação
não termina; o tipo recebe uma transformação dada pelas necessidades de
circunstância e esta transformação confere qualidade ao relacionamento entre arquitectura,
programa e lugar; o “como” surge, em vez disso, fazendo parte da autobiografia
do arquitecto. Souto de Moura não
atribui ao tipo o mesmo valor que atribuía Aldo Rossi, afirmando:
Uso as tipologias,
mas não defendo que a tipologia seja a base do projecto, como o Rossi – “Sem a
Tipologia não há Arquitectura” – As tipologias que me fornecem são
satisfatórias, porque os modos de vida não mudaram assim tanto. Uso as
tipologias, estudo-as, desde o momento em que não haja ruptura entre a
tipologia e o novo programa que me fornecem. [10]
Podia definir-se a acção de projectar de Eduardo Souto de
Moura numa palavra: equilíbrio. Ele não se deixa levar pela excessiva
(aparente) liberdade, do protagonismo do gesto pessoal, que afinal de contas
leva só a um resultado dificilmente compreensível: mas ao mesmo tempo consegue
evitar o coleccionismo maníaco e a própria classificação, que noutros casos
levam a uma arquitectura feita de colagem, de resultado caricatural. Ele é guiado
pela razão prática, prepara o terreno para o “Big Bang” da criação.
Contra quem pensa fazer arquitectura livre de vínculos e
constrangimentos olhando só para o próprio objecto, partindo do início de cada
vez e sentindo-se inventor de cada projecto, Souto de Moura coloca-se como
exemplo a recordar que a verdadeira liberdade, no campo artístico assim como no
campo científico existe só se passar através de um contexto assimilado de
conhecimentos e de consciência. Passada esta fase obrigatória porque é no
núcleo onde está contida a própria energia do acto criativo, agora podem entrar
em jogo todas aquelas sugestões que qualificam a arquitectura; imagens que
constituem o significante da poesia construída.
Como sublinha o arquitecto do Porto, Aldo Rossi, não
obstante as regras que tinha mencionado, demostra a inteligência do saber mover-se
no interior do universo dos conhecimentos, dos “factos” objectivos, o saber incluir
memórias pessoais, lembranças e sugestões, levando, como em poesia, a um
pensamento preciso sobre o tema. E também o faz com um texto teórico, Architettura per i musei. Citamos o arquitecto
italiano: «[…] é, de facto, impensável que ao fazer esta ou aquela determinada arquitectura
nós não queiramos exprimir também qualquer coisa de outro, qualquer coisa de
nosso»; continuando questiona-se: «Mas como se concilia este acordo com os
princípios racionais e transmissíveis sobre os quais insisti, com a matriz de
uma arquitectura clássico-racional?», respondendo que «Inteligência e técnica
(os exemplos e a prática) são, portanto, aquilo que torna possível fazer e com
isto a libertação do elemento pessoal» [11]. Parecia um processo de “construção” e sucessiva
“destruição”, mas na realidade podíamos defini-lo como um processo de
“construção” e “libertação”. Na entrevista de Paolo Pais, Souto de Moura
explica constantemente como, depois de ter encontrado a regra, ele procurou a excepção
que a confirmasse; que, por contraposição, a fixou definitivamente: «Quando
consigo uma certa ordem, uma regra de construção, ou um módulo base, parece que
tudo vai bem mas é quando surgem os acidentes, e se eles não aparecem, então
invento-os eu». Exemplos práticos desta concepção são o concurso para o Hotel
em Salzburgo e a casa na Quinta do Lago (Algarve).
3.
Este último aspecto introduz um segundo nível
sobre o qual se revela uma investigação teórica de regras, para a utilizar no aspecto
prático da construção; podemos dizer que este nível se relaciona mais especificamente
com a história da arquitectura, como disciplina autónoma. O processo que o arquitecto
cumpre é uma abstracção da realidade, procurando os factores comuns que dão
continuidade à disciplina. Para o arquitecto português, estes factores comuns
são valores que passam da arquitectura clássica em diante; por isso diz: «O
problema do desenho não existe; existe o problema do redesenho. Desenhar deve
ser um fenómeno de inteligência, e desenhar do zero é um fenómeno de estupidez,
porque é perder um legado de informação disponível» [12]. E continua:
Sempre entendi o Movimento Moderno como uma
continuidade do Classicismo, por mais verborreia que se disse contra o
Classicismo. No fundo, é um discurso de continuidade com meios técnicos e
intenções diferentes, mas com um campo comum: as proporções, a relação da
estrutura com a forma, a linguagem depurada. O Schinkel fazia essa relação com
o Classicismo, não prescindindo das novas aquisições que havia de materiais.
[…] Ele usa o ferro, percebendo que o ferro é um novo material que pode
substituir outros e que até dá para fazer Neogótico. E depois também deu o
Mies, e por aí fora… [13]
Assim, para além das análises urbanas, que permitem ler
as estratificações e conhecer o presente através do passado, Souto de Moura
analisa a disciplina e as estruturas que sustentam a forma de edifícios e espaços
e a métrica, se nos quiséssemos ligar ao texto poético. Esta aproximação
permite-lhe encontrar uma regra compositiva para cada projecto, e como ele
próprio afirma, aquela continuidade que permite a «sobrevivência» [14] da própria disciplina. Ritmos, proporções, distâncias e
elementos, propensos sempre à simplificação e à pureza geométrica, são
colocados em relação com o lugar e as novas exigências, a evolução da
disciplina e as suas conquistas, não obstante o espírito do tempo (actualizações
tecnológicas, de programas e outros aspectos, em geral, que têm a ver com a
sociedade em que vivemos); desta “inter-relação”, através da extracção, nasce
uma reacção, permitindo a unidade formal da obra final. A forma não é um objectivo,
mas é uma consequência. Não há intenção estética em Souto de Moura (ao contrário
de Rossi). Para compreender melhor o que isto significa, podemos fazer
referência a Mies Van der Rohe, arquitecto que ele estuda profundamente e que
tem uma grande influência sobre a sua arquitectura.
Detlef Mertins escreveu um ensaio
interessante, explicando bem qual o significado que Mies atribui ao conceito de
“arquitectura orgânica”. Quando chegou à América vindo de Berlim, o arquitecto
alemão é projectado num novo mundo, onde os valores que indicam o espírito não
são os mesmos da Europa:
In coming to America in 1937, Mies found himself
immersed in a country whose native inventiveness he had admired from Berlin for
almost thirty years […]››; e continua: ‹‹In a letter describing his educational
program for the Armour Institute of Technology (AIT), later the Illinois
Institute of Technology (IIT), Mies signaled his concern over the “danger of
grafting one form of culture on an environment of another character.” […] Mies admired
the technical and material accomplishments of American Industry, economy, and
engineering, but pointed to an inadequacy or “uncertainty” in the cultural
sphere, in the realm of spirit. “Culture”, he explained,
invoking an organic analogy, “is the harmonious relationship of man to his
environment” and architecture “the manifestation of this relationship”. [15]
Para Mies, a identidade da cultura americana reside no
«poder das forças organizacionais e técnicas existentes». A América representa
uma nova cultura intrinsecamente conectada ao desenvolvimento tecnológico e
científico.
Mas como exprimir formalmente esta cultura? Como representá-la?
Mies encontra, nos conceitos teóricos de Wright, relacionados com a arquitectura
orgânica, uma estrada à qual poderá dar uma interpretação personalizada. Ao
contrário do arquitecto americano, que pensa na arquitectura orgânica como uma
auto geração de formas do terreno, como um florescimento natural que produz
articulação formal, Mies pensa na organicidade, assim como Schinkel pensa na arquitectura
como continuação da natureza, na sua actividade construtiva; arquitectura em
que tal processo construtivo deve permanecer visível, assim como Cézanne fala
em relação às sugestões que estão por debaixo das formas de cada coisa na
natureza. Referir-se à natureza não significa referir-se ao aspecto visível, às
suas formas, mas sim indagar como as formas se podem constituir, qual a
estrutura que subjaz e sustém a forma, precisamente como consequência desta
investigação. O objectivo é, para Mies, encontrar um sistema arquitectónico que
permita produzir uma «inexhaustible richness of form». [16] A beleza liga-se à lei, à regra, mas livre de dogmas.
Mies consegue manter os princípios arquitectónicos já desenvolvidos em Berlim e
integra-os com esta investigação no espírito da cultura americana:
“Such men must be able to design structures
constructed of modern technical means to serve the specific requirements of
existing society. They must also be able to bring these structures within the
sphere of art by ordering and proportioning them in relation to their
functions, and forming them to express the means employed, the purposes served,
and the spirit of the times” [17]
Como explica Detlef Mertins, Mies resolve a oposição
entre arte e tecnologia, a máquina e o organismo, a ordem e a função numa
unidade regulada pelas leis naturais de expressão e auto geração. Isto é dado
pelo carácter da linguagem, o qual é purificado através da racionalização, da
matematização e da geometrização, assinalando a autonomia.
Também Aldo Rossi nos fornece um contributo para a
compreensão da concepção miesiana que, como dizíamos, influencia notavelmente a
poética do projecto de Eduardo Souto de Moura, mas é necessário dar mais um
passo ainda para compreender o que está em jogo: «Para Mies van der Rohe, o
artesanato ou técnica é parte de uma verdade absoluta; […]»; a sua é «uma arquitectura
que nasce da história que se relaciona directamente com Schinkel, mas que
procura o essencial, não um nada niilista mas um nada que é a forma da verdade»
[18]. Como nos diz Aldo
Rossi, «[…] o modo clássico foi possível pela inteligência da técnica» [19]. E ainda assim é nos projectos do arquitecto português,
onde o máximo da tecnologia disponível se conjuga com os valores clássicos e
racionais, que continuam a transmitir o significado da arquitectura, pensamos, por
exemplo, no pavilhão polifuncional de Viana do Castelo.
Voltando a Mies, a arquitectura deve respeitar a cultura
na qual se insere, representa a sua evolução e, como uma forma na natureza é
adequada ao ambiente, também a arquitectura será adequada ao contexto no qual
se insere. Assim é, da mesma maneira, por Eduardo Souto de Moura. Mas o
conceito de natureza e simplicidade da obra, podemos dizer que, na realidade, é
um gene preexistente no arquitecto do Porto, cujas origens se podem encontrar
nos anos da formação, através dos ensinamentos de Fernando Távora, o qual, numa
entrevista explica:
a arquitectura
moderna […] é hoje sobretudo uma ocasião para vender produtos. O arquitecto
tradicional, pelo contrário, vivia e trabalhava num pequeno mundo: a sua
cidade. Não tinham monografias, revistas, entrevistas, como esta, e ao arquitecto
não se punha o problema da variedade, da abertura a outras condições:
trabalhava num mundo entre o qual fazer arquitectura era um acto natural como
respirar ou comer [20].
Diz igualmente que:
Um edifício deve estar
perfeitamente integrado com o lugar, a gente deve senti-lo como próprio: uma arquitectura
que permanece no lugar de origem de uma forma natural, não espectacular. Um
fazer simples e natural: é uma ideia minha orientadora, muito elementar dada a
minha pouca predisposição a intelectualizar [21].
4.
Fernando Távora ilumina-nos sobre o que podia ser
definido como a passagem fundamental e definitiva do processo de projecto, ou o
momento em que a obra é construída e nos aparece. Aqui reside propriamente dita
a qualidade visível e tangível da arquitectura de Souto Moura; não obstante a
forte abstracção dos elementos e da linguagem não é uma arquitectura que se
abstrai do contexto, antes, é uma arquitectura que, graças à atitude analítica
previamente explicada, permite construir o essencial, restitui a complexidade
da realidade analisada de uma maneira simples e quase natural. O objectivo
final é o de uma arquitectura “anónima”, era para Távora e também o é para
Souto de Moura. Arquitectura anónima não significa não ter carácter, mas sim
uma arquitectura que seja assimilada pelo lugar onde se insere, quase como se
não tivesse sido um arquitecto a projectá-la, quase como se se encontrasse ali,
no sítio onde está, desde sempre.
Uma vez terminado o processo, a arquitectura pode
verdadeiramente dar um contributo à construção da cidade e da civilização, encerrando
em si valores que são o fruto de uma atenta elaboração e relação
teórico-prática. Sem teoria, a prática do fazer torna-se um virtuosismo sem substância;
sem prática, a teoria perde-se nos meandros da nossa mente, não encontrando a
libertação da plenitude. Evidentemente, para fazer isto é necessário tempo.
Como resolver este problema para garantir a sobrevivência da disciplina? Citando
directamente o arquitecto Souto de Moura: «[…] neste momento as obras que estou
a fazer são um inventário de materiais, de formas, de estratégias para permitir
a sobrevivência. Porque o que se discute hoje é a própria sobrevivência da
disciplina de Arquitectura». [22]
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Nota do autor
O presente texto foi elaborado durante o curso “Teoria da
Arquitectura Contemporânea” do Professor Doutor Carlos Machado, na FAUP, no
âmbito do programa de doutoramento (PDA), e coloca-se como primeira
concretização de uma pesquisa pessoal, devido à necessidade de encontrar
figuras no panorama arquitectónico contemporâneo que mantenham vivo um valor
fundamental, do qual não se pode, segundo minha opinião, prescindir para se ser
arquitecto, na relação entre a teoria e a prática. Tal necessidade surge
principalmente na sequência da experiência de estudos na Itália, onde é ainda
mais complicado encontrar exemplos de arquitectos que mantenham uma profícua
relação entre conceitos teóricos e práticos num projecto. O estudo de algumas
figuras da arquitectura portuguesa permitiu observar como alguns dos valores
fundamentais podem manter-se vivos e renovarem-se no seio da disciplina.
Eduardo Souto Moura representa um exemplo positivo a seguir para quem esteja
interessado neste tipo de aproximação e considere importante a relação entre a
teoria e a prática como método para a concretização, não privada de significado
das próprias obras.
Referências
1. Massimo Scolari, Una
generazione senza nomi, em «Casabella», n. 606, 1993.
2.Rafael Moneo, L’altra
modernità. Considerazioni sul futuro dell’architettura, Christian Marinotti
Edizioni, Milano, 2012, pp. 113-116.
3. Paulo Pais, A
ambição à obra anónima. Numa conversa com Eduardo Souto de Moura, Blau, em
Luiz Trigueiros, Eduardo Souto de Moura, Blau, Lisbona, 1994.
4. Antonio Esposito,
Eduardo Souto Moura su Aldo Rossi, entrevista em «d’Architettura» n°23, op.
cit., pp. 162-191.
5. Ibidem.
6. Ibidem.
7. Ibidem.
8. Alberto Ferlenga, Aldo
Rossi: opera completa 1993-1996, volume III, Electa, Milano, 1997, pp.
11-14
9. Paulo Pais, Ibidem.
10. Ibidem.
11. Aldo Rossi, Architettura
per i musei, in AA.VV., Teoria della
progettazione architettonica, Dedalo, Bari, 1968, pp. 122-137
12. Paulo Pais, A
ambição à obra anónima. Numa conversa com Eduardo Souto de Moura, Blau, in
Luiz Trigueiros, Eduardo Souto de Moura, Blau, Lisbona, 1994
13. Paulo Pais,
14. Ibidem.
15. Ibidem.
16.Detlef Mertins, Living in a Jungle: Mies, Organic
Architecture, and the Art of City Building, in Phyllis Lambert, Mies in America, catálogo da exposição no Canadian Centre for Architecture and
Whitney Museum of American Art, Montréal, Maggio 2001, pp. 591-641.
17. Ibidem.
18. Ibidem.
19.Prefacio de Aldo Rossi em, Benedetto Gravagnuolo, Adolf Loos: teoria e opere, Idea Books,
Milano, 1981
20.Ibidem
21. Fernando Távora, Fernando Távora, pensieri sull’architettura, raccolti da
Giovanni Leoni con Antonio Esposito, in «Casabella», n. 678, maggio 2000, pp.
14-17.
22. Ibidem
Imagens
1. Reconversão de uma ruína, Gerês, 1980-1982, fonte: Frank Boehm e Nuno Graça Moura, Souto de Moura 1980-2015, catálogo da
exposição, Stiftung Insel Hombroich, Neuss, 2015.
2. Colecção de slides de Atenas 1, Hermes, impressão
Kodak s/d., fonte AA.VV., Eduardo Souto de Moura. Atlas de Parede. Imagens de
Método, Dafne Editoria, Porto, 2011.
3. Eduardo Souto de Moura, A house for Karl Friedrich Schinkel, 1979, fonte AA.VV., Eduardo Souto de Moura. Atlas de Parede.
Imagens de Método, Dafne Editoria, Porto, 2011.
4. Eduardo Souto de Moura, Metro do Porto, esquissos de
estudo de estações subterrâneas, fonte Fátima Fernandes e Michele Cannatà, Eduardo Souto de Moura, A Arquitectura do
Metro. Obras e projectos na Área metropolitana do Porto, Civilização
Editoria, Porto, 2006.
Andrea Matta
Está actualmente a desenvolver um período de estudos na
FAUP Porto. Licenciado em arquitectura com o Professor Carlo Quintelli e o
arquitecto Fabio Nonis, é doutorando em “Arquitectura e Cidade” no DICATeA da
Universidade de Parma. Na mesma Universidade faz parte da unidade que
desenvolveu o projecto Mastercampus, regeneração do campo universitário da
cidade, colaborando também com o projecto pela abertura do museu-arquivo CSAC.
Ficha Técnica
Data de publicação: 05.07.2016
Etiqueta: Arquitectura
\ Espaços
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