≡
Muito se escreveu nos últimos dias sobre
Zaha Hadid, desaparecida um tanto ou quanto subitamente aos 65 anos de idade, no
pico de uma carreira intensa mas nem por isso breve. Os obituários são por
natureza registos difíceis: sempre demasiado próximos e, talvez por isso,
sempre tendencialmente generalistas ou redutores. Todo o texto escrito nestas
circunstâncias é um risco e este não é excepção.
De entre as diversas reacções
manifestadas puderam-se observar dois tipos de argumentos. Por um lado, elogiou-se
a sua condição feminina, o seu ser-mulher num mundo de homens. Um argumento que
no seu aparente feminismo guarda um certo tom de condescendência e acaba por
fabricar uma generalização, um tanto ou quanto pindérica, que nada nos diz de
significativo sobre ela, Zaha Hadid, e o seu trabalho (por exemplo, não
admiramos Lina Bo Bardi por simplesmente ser mulher, mas pelo papel que
desempenhou na e com a arquitectura, não querendo isso dizer que a sua condição
de ser-mulher não tenha contribuído para animar o seu projecto-de-arquitectura
e para fazer cair determinados preconceitos relativamente à profissão). Por
outro lado, contra os juízos apressados e simplistas do gosto, defendeu-se a
relevância cultural da arquitecta iraquiana para o património da arquitectura.
Mas também aqui todo o cuidado é pouco para – no relativismo cultural que hoje impera
– não fazer da história da disciplina simplesmente um cabinet de curiosités de pequenas relíquias despojadas de todo o
seu sentido.
O que se pode então arriscar dizer sobre
Zaha Hadid? Ou melhor – o que talvez seja mais útil – o que pode Zaha Hadid
ajudar-nos a dizer sobre o nosso tempo? Primeiro, é necessário reconhecer que ela
marcou, sem dúvida, o panorama recente da disciplina. Foi figura-referência,
agitadora e mobilizadora de todo um modo de produzir e entender a prática da
arquitectura. Mas, por isso mesmo, foi a arquitecta-chave de uma geração que
imersa no culto de um certo “experimentalismo formal” acabou por ir reduzindo a
arquitectura a um regime estetizado de produção de objectos isolados e auto-referenciais.
Uma arquitectura que, sem dúvida, recuperou e animou a experiência artística
das vanguardas históricas, mas esvaziando-a de toda a sua condição social e
política. Uma arquitectura sem projecto, diria, que fez da promessa libertadora
das vanguardas um simples instrumento de reprodução/acumulação de capital, ao
serviço de marketings urbanos e operações financeiras globalizadas e
desumanizadas. Tudo em nome de uma retórica do progresso, da civilização e da
democracia liberal, que há muito deixou de falar em nome de populações e comunidades.
Uma arquitectura endógena que ensimesmada na mecânica dos seus processos
criativos, nas suas efabulações e nas suas conceptualizações, perdeu ou
abandonou a capacidade de problematizar e dialogar criticamente com o mundo e
com a realidade onde se inscreve e que produz. Fez-se exercício pessoal e
individual, umas vezes eufórico outras vezes melancólico. Arrastando consigo um
exército de pequenos-arquitectos, que na divisão infinita do trabalho, se
transformaram em sujeitos de uma arquitectura sem projecto colectivo e sem
comum.
Zaha Hadid é de facto uma “mulher do
seu tempo”, como alguém dizia, e na sua obra podemos ler as marcas e, sobretudo,
as ilusões que animaram esse tempo que hoje tanto pesa sobre nós. Para uma
geração inteira, a “experimentação formal” e a afirmação de uma “autonomia” da
arquitectura serviram para sacudir o peso de um passado ideologicamente
carregado e, assim, sair desse caminho que parecia ter como destino o bloqueio
total da arquitectura. Para muitos, a liberdade e a exuberância do seu gesto
formal foram, enfim, o sinal da liberdade e da superabundância viabilizados por
um capitalismo em fim-de-história: derrotados todos os seus inimigos, caídos
todos os muros (a primeira obra de Zaha Hadid foi construída precisamente em
Berlim, 1986-1993, a dois passos do muro que dividia a cidade e cuja queda, em
1989, assinalou o fim do bloco soviético). Mas essa liberdade – sabemos hoje mais
do que nunca – era pouco mais que aparente. Ou, melhor, essa “liberdade das
formas” não era mais que o modo de alimentar a esperança e a promessa de uma
outra liberdade – essa derradeiramente impossível no actual reino absoluto da
economia. Mas há muito que tínhamos trocado a liberdade e a democracia por todas
essas breves “promessas de felicidade” (para invocar a definição que Stendhal
dava do belo).
Talvez seja essa a razão pela qual os
“objectos” de Zaha Hadid sejam simultaneamente familiares e estranhos.
Familiares porque pertencem ao nosso tempo. Estranhos porque parecem estar
sempre demasiado próximos. Essa é a sua virtude: são a imagem fiel daquilo que
não conseguimos ver – a nossa própria época. Estamos perante os edifícios de Zaha
Hadid como estamos perante os mercados financeiros. Observadores atónitos dos seus
movimentos delirantes, das suas linhas vertiginosas e aceleradas, dos seus
planos infinitos subindo e descendo, do delírio das acções, dos fluxos
constantes das transacções, dos crashs iminentes,
do seu esplendor e da sua crise, da crise como lógica absoluta e como irracionalidade
calculada: a ascensão e a queda “sábia e magnífica dos sólidos sob a luz” (parafraseando
Le Corbusier). Eles são a representação da nossa época ou, melhor, condensam/cristalizam
na sua lógica interna formal a lógica de todo um sistema económico e político.
Uma ironia que não está isenta de
cinismo. Quanto mais livre e exuberante é o gesto formal de Zaha Hadid, quanto
mais os mercados afirmam a “livre iniciativa”, a “livre circulação”, as suas infinitas
possibilidades, mais presos estamos na sua lógica, mais emaranhados estamos no
seu sistema, incapazes de o compreender, de reagir e de encontrar meios de lutar
e resistir contra a nossa transformação progressiva em sujeitos-mercadorias de
um jogo financeiro sem fim. Perante os “objectos” de Zaha Hadid estamos sempre
sós – nunca estamos com eles, mas
sempre diante deles. Somos
espectadores solitários que vivem a sua própria aniquilação (ou, talvez, o
desejo dela) como absoluto prazer estético. Neles não há nem crítica nem esperança,
apenas consumação e morte.
Aqueles que ainda hoje alimentam esse
sonho continuam a dormir o sono profundo dessas “promessas de felicidade” por
cumprir. Cultivam a ilusão que a salvação da disciplina passa por um exercício
de sublimação formal e por uma falsa autonomia artística esvaziada, agora, de
todo e qualquer projecto colectivo e político. E, por fim, na afirmação desse
discurso ensimesmado e endógeno, eles são também os artífices de uma ilusão
absoluta acerca da condição presente da arquitectura que se tornou
insustentável e cujo horizonte não é outro senão o da própria irrelevância da
disciplina.
≡
Pedro Levi Bismarck
Editor da Revista Punkto. Assistente convidado na FAUP.
Investigador do CEAU e Bolseiro de doutoramento da FCT.
Imagens
1. Zaha Hadid na exposição “City
of towers” na Zaha Hadid Design Gallery. Londres, 2013. (Fonte: Zaha
Hadid)
3. Zaha Hadid, Galaxy Soho, Pequim, 2009-201. Fotografia de Huffon & Crow (Fonte: Dezeen).
Ficha técnica
Data de publicação: 5 de Abril de 2016
Etiqueta:
Arquitectura \ Espaços
≡
Imprimir