Será que uma perspectiva revolucionária já não tem simplesmente que
ver com a reorganização institucional da sociedade, mas com uma configuração
técnica dos mundos? Para o Comité Invisível, o poder está hoje (ou está, hoje,
mais que nunca) numa complexa rede de infra-estruturas e só uma articulação colectiva
e subversiva dos saberes técnicos poderá romper com a anemia existencial que
tomou conta de um mundo e de uma vida absolutamente decomposta em funções. “Aos
nossos amigos” é o último livro deste “não-grupo” (publicado recentemente em
português pelas edições antipáticas) e que aqui deixamos um pequeno fragmento.
O texto de Amador Fernández-Savater, “A revolução como problema técnico”, publicado
aqui no PUNKTO, em Fevereiro, é de leitura indispensável para ir ao encontro de
algumas ideias chave deste “não-grupo”.
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1. Que o poder
reside agora nas infraestruturas
Ocupação
da Kasbah em Tunes, da Praça Syntagma em Atenas, cerco do Westminster em
Londres aquando do movimento estudantil de 2011, cerco do parlamento em Madrid
a 25 de Setembro de 2012 ou em Barcelona a 15 de Junho de 2011, motins à volta
da Câmara dos Deputados em Roma a 14 de Dezembro de 2010, tentativa a 15 de
Outubro de 2011 de invasão da Assembleia da República em Lisboa, incêndio da
sede da presidência bósnia em Fevereiro de 2014: os lugares do poder
institucional exercem sobre os revolucionários uma atração magnética. Mas
quando os insurretos conseguem assaltar os parlamentos, os palácios
presidenciais e outras sedes de instituições, como na Ucrânia, na Líbia ou no
Wisconsin, descobrem lugares vazios, vazios de poder e decorados sem gosto
algum. Não é para impedir o “povo” de “tomar o poder” que este é tão ferozmente
protegido de uma invasão, mas para impedir que se perceba que o poder já não reside nas instituições. Não há
mais do que templos abandonados ali, fortalezas desafetadas, meros cenários –
porém verdadeiros engodos para
revolucionários. O impulso popular de invasão do palco para ver o que se
passa nos bastidores tem tendência a ser dececionante. Mesmo os mais fervorosos
adeptos do complot, se a eles tivessem acesso, não descobririam aí nenhum
arcano; a verdade é que muito simplesmente o poder já não é essa realidade
teatral a que a modernidade nos habituou.
A
verdade quanto à localização efetiva do poder não está no entanto nada
escondida; somos apenas nós que nos recusamos a vê-la de maneira a não esfriar
as nossas certezas tão confortáveis. Quanto a essa verdade basta que atentemos
nas notas emitidas pela União Europeia para ficar avisados. Nem os marxistas
nem os economistas neoclássicos o puderam admitir alguma vez, mas é um facto
arqueologicamente estabelecido: a moeda não é um instrumento económico, mas uma
realidade essencialmente política.
Nunca se viu moeda que não estivesse apoiada numa ordem política que a pudesse
garantir. É também por isso que as divisas dos diferentes países apresentam
tradicionalmente a figura pessoal dos imperadores, dos grandes homens de
Estado, dos pais fundadores ou as alegorias em carne e osso da nação. Ora qual
é a figura impressa nas notas de euro? Não são figuras humanas, não são
insígnias de uma soberania pessoal, mas antes pontes, aquedutos, arcos –
arquiteturas impessoais cujo centro é o vazio. Cada europeu anda com um
exemplar impresso no bolso da verdade sobre a natureza presente do poder. Ela
formula-se desta forma: o poder reside
hoje nas infraestruturas deste mundo. O poder contemporâneo é de natureza
arquitetónica e impessoal, e não representativa e pessoal. O poder tradicional
era de natureza representativa: o papa era a representação de Cristo na Terra,
o rei de Deus, o presidente do Povo, o secretário-geral do Partido, do
Proletariado. Toda esta política pessoal morreu, e é por isso que os poucos
tribunos que sobrevivem à face do globo divertem mais do que governam. O
pessoal político é efetivamente composto por palhaços de maior ou menor
talento: daí o sucesso fulminante do miserável Beppe Grillo em Itália ou do
sinistro Dieudonné em França. Tudo somado, eles ao menos sabem divertir: é de facto a sua profissão. Do
mesmo modo, criticar os políticos por “não nos representarem” não faz mais do
que alimentar uma nostalgia, além de forçar uma porta já aberta. Os políticos
não estão lá para isso, eles estão lá para nos distraírem, uma vez que o poder
está noutro lado. E é esta intuição justa que se torna loucura em todos os
conspiracionismos contemporâneos. O poder está noutro lado, bem fora das
instituições, mas no entanto não está escondido. Ou se o está, é como a Carta roubada de Poe. Ninguém o vê
porque toda a gente o tem, a toda a hora, à frente dos olhos – na forma de uma
linha de alta tensão, de uma autoestrada, de um sinal de rotunda, de um
supermercado ou de um programa informático. E se está escondido é como uma
rede de esgotos, um cabo submarino, fibra ótica que corre ao longo de uma linha
de comboio ou um data center no meio
da floresta. O poder é a própria organização deste mundo, este mundo preparado,
configurado, designado. Aí está o segredo, de
que não há segredo nenhum.
O
poder é agora imanente à vida, tal como a vida é agora organizada
tecnologicamente e mercantilmente. Ele tem a aparência neutra dos equipamentos
ou da página branca do Google. Determina a disposição do espaço, governa os meios
e os ambientes, administra as coisas, gere os acessos – governa os homens. O
poder contemporâneo tornou-se no herdeiro, por um lado, da velha ciência
policial, que consiste em zelar “pelo bem-estar e pela segurança dos cidadãos”
e, por outro, da ciência logística dos militares, a “arte de movimentar
exércitos” que se transformou na arte que assegura a continuidade das redes de
comunicação, na a mobilidade estratégica. Com a nossa conceção de linguística
da coisa pública, da política, continuámos os debates enquanto as verdadeiras
decisões eram executadas à nossa vista.
É em estruturas de aço que se escrevem as leis contemporâneas e não com
palavras. Toda a indignação dos cidadãos não poderá senão esbarrar a sua face
boquiaberta contra o betão armado deste mundo. O grande mérito da luta contra o
TAV em Itália é ter mostrado, com tanta clareza, tudo o que se joga de político
num simples estaleiro de obras públicas. É, por simetria, o que nenhum político
poderá admitir. Como esse Bersani que um dia respondeu aos No TAV: “No fim de
contas, é só uma linha de comboio e não um bombardeiro.” “Um estaleiro vale um
batalhão”, avaliava todavia o marechal Lyautey, que não dispunha de nada
semelhante para “pacificar” as colónias. Se por todo o lado no mundo, da Roménia
ao Brasil, se multiplicam as lutas contra os grandes projetos de equipamentos é
porque essa intuição está ela própria em vias de se impor.
Quem
quiser empreender o que quer que seja contra o mundo existente tem que partir
daí: a verdadeira estrutura do poder é a organização material, tecnológica,
física deste mundo. O governo já não está
no governo. O “vazio de poder” que durou mais de um ano na Bélgica atesta-o
de forma inequívoca: o país pôde prescindir de governo, de representantes
eleitos, de parlamento, de debate político, de jogo eleitoral sem que nada do
seu funcionamento normal fosse afetado. De igual modo, a Itália caminha desde
há anos a esta parte de “governo técnico” em “governo técnico” e ninguém se
comove por esta expressão remontar ao Manifesto-programa do Partido político
futurista de 1918, onde incubariam os primeiros fascistas.
O poder é agora a ordem mesma das
coisas, e a polícia está encarregue de a defender. Não é fácil
pensar um poder que está nas infraestruturas, nos meios que as fazem funcionar,
que as controlam e que as erguem. Como contestar uma ordem que não se formula,
que se constrói passo a passo e sem palavra. Uma ordem que se incorporou nos
próprios objetos da vida quotidiana. Uma ordem cuja constituição política é a sua
constituição material. Uma ordem que se revela menos nas palavras do presidente
do que no silêncio do seu funcionamento ótimo. No tempo em que o poder se
manifestava por editais, leis e regulamentos, ele deixava lugar à crítica. Mas
um muro não se critica: destrói-se ou grafita-se. Um governo que dispõe a vida através dos seus
instrumentos e suas combinações, cujos enunciados tomam a forma de uma rua
bordejada de circuitos e envolvida por câmaras, não pede outra coisa, muito
frequentemente, que não uma destruição também ela sem palavras. Atacar o
cenário da vida quotidiana tornou-se de facto um sacrilégio, algo como violar a
sua própria constituição. O recurso indiscriminado à destruição nos motins
urbanos fala, de uma vez, da consciência desse estado de coisas e de uma
relativa impotência face a ele. A ordem muda e inquestionável que materializa a
existência de um airbus não jaz infelizmente em pedaços quando este se
despedaça: a teoria das janelas partidas continua de pé depois de se quebrarem
todas as montras. Todas as proclamações hipócritas sobre o carácter sagrado do
“ambiente”, toda a santa cruzada pela sua defesa, apenas puderam ser
clarificadas no brilho desta novidade: o
próprio poder tornou-se ambiental, ele fundiu-se com o cenário. É a sua defesa
que merece a atenção de todos os apelos oficiais pela “preservação do
ambiente” e não a dos peixinhos.
2. Da diferença
entre organizar e se organizar
A
vida quotidiana não foi sempre organizada.
Para tal foi necessário, antes de mais, desmantelar a vida, a começar pela
cidade. A vida e a cidade foram decompostas em funções, em função das “necessidades sociais”. O bairro de
escritórios, o bairro fabril, o bairro residencial, os espaços para distensão,
o bairro da moda onde nos vamos divertir, a zona onde se come, a zona onde se
bule, a zona onde se engata, e o carro ou o autocarro para ligar tudo isto, são
o resultado de um trabalho de formatação da vida que é a devastação de todas as
formas de vida. Ele foi desenvolvido com método, durante mais de um século,
por toda uma casta de organizadores,
todo um exército cinzento de gestores. A vida e o homem foram dissecados num
conjunto de necessidades, e depois organizada a síntese. Pouco importa que
esta síntese tenha tomado o nome de “planificação socialista” ou de “mercado”.
Pouco importa que tal tenha levado ao fracasso das cidades-novas ou ao sucesso
dos bairros da moda. O resultado é o mesmo: deserto e anemia existencial. Nada
subsiste de uma forma de vida quando esta é decomposta em órgãos. Daí provém,
inversamente, a alegria palpável que extravasava das praças ocupadas da Puerta
del Sol, de Tahrir, de Gezi ou a atração exercida, apesar das infernais lamas
dos campos de Nantes, pela ocupação de terras em Notre-Dames-des-Landes. Daí a
alegria que se agarra a qualquer comuna.
Repentinamente, a vida deixa de estar recortada em pedaços conectados. Dormir,
lutar, comer, curar-se, festejar, conspirar, debater, provêm de um mesmo
movimento vital. Nada está organizado,
tudo se organiza. A diferença é notável.
Um apela à gestão, o outro à atenção – disposições em todos os pontos
incompatíveis.
Relatando
os levantamentos aymara do início dos anos 2000 na Bolívia, Raul Zibechi, um
ativista uruguaio, escrevia: “nestes movimentos, a organização não é desligada
da vida quotidiana, é a própria vida quotidiana que toma forma na ação insurrecional.”
Ele constata que nos bairros de El Alto, em 2003, “um ethos comunal tomou o
lugar do antigo ethos sindical”. Eis alguém que esclarece no que consiste a
luta contra o poder infraestrutural. Quem diz infraestrutura diz que a vida
foi desligada das suas condições. Que colocaram
condições à vida. Que esta depende de fatores sobre os quais já não tem
controlo. Que perdeu o pé. As infraestruturas organizam uma vida suspendida,
uma vida sacrificável, à mercê de quem as gere. O niilismo metropolitano não é
mais do que uma forma vaidosa de não o admitir. Inversamente, fica assim mais
claro o que se procura nas experimentações em curso em tantos bairros e vilas
de todo o mundo, bem como os seus inevitáveis escolhos. Não um regresso à
terra, mas um regresso sobre a terra.
O que constitui a força estratégica das insurreições, a sua capacidade de
destruir a infraestrutura do adversário de forma duradoura é, justamente, o
seu nível de auto-organização da vida comum. Que um dos primeiros reflexos de
Occupy Wall Street tenha sido ir bloquear a ponte de Brooklyn ou que a Comuna
de Oakland tenha procurado paralisar com milhares de pessoas o porto da
cidade, aquando da greve geral de 12 de Dezembro de 2011, são factos que dão
conta da ligação intuitiva entre auto-organização e bloqueio. A fragilidade da
auto-organização, que mal se esboçava nestas ocupações, não poderia permitir
que estas tentativas fossem mais longe. As praças Tahrir e Taksim são pelo
contrário nós centrais da circulação viária de Cairo e de Istambul. Bloquear
estes fluxos era abrir a situação. A ocupação era imediatamente bloqueio. Daí a
sua capacidade para desarticular o reino da normalidade numa metrópole inteira.
A um nível totalmente diferente, é difícil não fazer a ligação entre o facto
de os zapatistas se proporem atualmente a interligar 29 lutas de defesa contra
projetos de minas, de estradas, de centrais elétricas, de barragens,
implicando diferentes povos indígenas de todo o México, e que eles próprios
tenham passado os últimos dez anos a dotar por todos os meios possíveis a sua
autonomia em relação aos poderes federais como económicos.
3. Do bloqueio
Um
cartaz do movimento de 2006 contra o Contrato Primeiro Emprego, em França,
dizia: “É através dos fluxos que este mundo se mantém. Bloqueemos tudo!” Esta
palavra de ordem erguida, na altura, por uma minoria de um movimento também
ele minoritário, mesmo se foi “vitorioso”, conheceu desde então um sucesso
notável. Em 2009, o movimento contra a “pwofitasyon” que paralisou toda a ilha
de Guadalupe aplicou-o em grande. Depois vimos a prática do bloqueio, durante o
movimento francês contra a alteração do sistema de pensões, no Outono de 2010,
tornar-se prática de luta elementar, aplicando-se de forma semelhante a um
depósito de combustíveis, a um centro comercial, a uma estação ou a um local de
produção. Eis que se revela um certo estado do mundo.
Que
o movimento francês contra a reforma do sistema de pensões tenha tido no seu
centro o bloqueio de refinarias, não é um facto politicamente negligenciável.
As refinarias foram desde o final dos anos 1970 a vanguarda do que então se
denominava como “indústrias de processo”, as indústrias “de fluxo”. Pode-se
dizer que o funcionamento da refinaria serviu, desde então, como modelo para a
reestruturação da maioria das fábricas. De resto, não se deve falar mais em
fábricas, mas de locais, locais de
produção. A diferença entre a fábrica e o local é que uma fábrica é uma
concentração de operários, de saber-fazer, de matérias-primas, de stocks; um
local é apenas um nó num mapa de fluxos produtivos. O seu único traço comum é
que tanto o que sai de uma como do outro sofreu, em relação ao que lá entrou,
uma certa transformação. A refinaria é o local onde primeiramente se derrubou a
relação entre trabalho e produção. O operário, ou antes o operador, já nem
sequer tem ali as tarefas de manutenção e reparação das máquinas, que são
geralmente confiadas a temporários. Deve unicamente manter uma determinada
vigilância em torno de um processo de produção plenamente automatizado. É uma
luz que se acende e que não devia. É um gluglu anormal numa canalização. É um
fumo que se escapa de forma estranha ou que não tem o aspeto que devia. O
operário de refinaria é uma espécie de vigilante das máquinas, uma figura
inativa da concentração nervosa. E o mesmo se passa agora, enquanto tendência,
num bom número de sectores da indústria no Ocidente. O operário clássico
identifica-se gloriosamente com o Produtor: aqui a relação entre trabalho e produção é muito simplesmente invertida.
Só há trabalho a partir do momento em que a produção para, quando um
disfuncionamento a entrava e é necessário remediar a situação. Os marxistas
podem de novo vestir-se: o processo de valorização da mercadoria, desde a
extração à bomba, coincide com o processo de circulação, que por sua vez
coincide com o processo de produção, e depende, exteriormente, em tempo real,
das flutuações finais do mercado. Dizer que o valor da mercadoria cristaliza o
tempo de trabalho do operário foi uma operação política tão frutuosa como
falaciosa. Numa refinaria, como em qualquer fábrica perfeitamente automatizada,
isso transformou-se numa marca de ironia cortante. Dêem mais dez anos à China,
dez anos de greves e de reivindicações, e será a mesma coisa. Não se toma
evidentemente como coisa negligenciável o facto de os operários das refinarias
estarem desde há muito tempo entre os mais bem pagos do sector industrial, e
que tenha sido nesse sector que primeiramente se experimentou, pelo menos em
França, o que por eufemismo se denomina como a “fluidificação das relações
sociais”, nomeadamente sindicais.
Aquando
do movimento contra a reforma das pensões, a maioria dos depósitos de
combustíveis de França foram bloqueados não pelos seus poucos operários, mas
por professores, estudantes, motoristas, maquinistas, carteiros, desempregados,
estudantes do secundário. Não que esses operários não tivessem direito a isso.
É apenas que num mundo em que a organização da produção é descentralizada,
circulante e largamente automatizada, onde cada máquina não é mais do que um
ponto num sistema integrado de máquinas que a subsume, onde esse sistema‑mundo
de máquinas, de máquinas que produzem máquinas, tende a unificar-se
ciberneticamente, cada fluxo particular é um momento da reprodução de conjunto
da sociedade do capital. Já não há uma “esfera de reprodução”, da força de trabalho
ou das relações sociais, que seja distinta da “esfera de produção”. Aliás, esta
última já nem é uma esfera, mas antes a trama do mundo e de todas as relações.
Atacar fisicamente esses fluxos, em qualquer ponto, é assim atacar
politicamente o sistema na sua totalidade. Se o sujeito da greve era a classe
operária, o do bloqueio é perfeitamente qualquer um. É não importa quem,
qualquer um que decide bloquear – e assim tomar partido contra a presente
organização do mundo.
É
muitas vezes no momento em que atingem o seu máximo grau de sofisticação que as
civilizações se afundam. Cada cadeia de produção estende-se até um tal nível de
especialização para um número tal de intermediários, que basta que um único
desapareça para que o conjunto da cadeia fique paralisado, ou mesmo destruído.
As fábricas Honda no Japão registaram há três anos os mais longos períodos de
desemprego técnico desde os anos 1960, apenas porque o fornecedor de um chip
específico tinha desaparecido no terramoto de Março de 2011 e nenhum outro era
suscetível de o produzir.
Nesta
mania de tudo bloquear, que doravante acompanhará cada movimento de alguma
amplitude, deve ler-se uma clara reviravolta na relação com o tempo. Olhamos
para o futuro da mesma forma como o Anjo da História de Walter Benjamin olhava
para o passado. “A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para
ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e
lhas lança aos pés.” O tempo que passa é visto tão-somente como uma lenta progressão
em direção a um fim provavelmente medonho. Cada década futura é apreendida como
mais um passo em direção ao caos climático, do qual toda a gente percebeu
perfeitamente que era a verdade contida no insípido “aquecimento climático”. Os
metais pesados continuarão, a cada dia, a acumular-se na cadeia alimentar, tal
como se acumulam os nuclídeos radioativos e tantos outros poluentes invisíveis
mas fatais. É também necessário ver cada tentativa de bloquear o sistema
global, cada movimento, cada revolta, cada levantamento como uma tentativa
vertical de parar o tempo, e de o
bifurcar numa direção menos fatal.
4. Da pesquisa
Não
é a fraqueza das lutas que explica o desvanecimento de qualquer perspetiva
revolucionária: é a ausência de perspetiva revolucionária credível que explica
a fraqueza das lutas. Obcecados que somos por uma ideia política de revolução,
negligenciámos a sua dimensão técnica. Uma
perspetiva revolucionária já não tem que ver com a reorganização institucional
da sociedade, mas com a configuração técnica dos mundos. Trata-se, enquanto
tal, de uma linha traçada no presente, não uma imagem flutuante no futuro. Se
queremos reaver uma perspetiva, teremos que reagrupar a constatação difusa de
que este mundo não pode mais continuar desejando construir outro melhor. Pois
este mundo mantém-se, antes de mais, por via da dependência material que faz de
cada um, na sua simples sobrevivência, dependente do bom funcionamento geral
da máquina social. Teremos que dispor de um aprofundado conhecimento técnico da
organização deste mundo: um conhecimento que permita, simultaneamente, colocar
fora de uso as estruturas dominantes e reservar-nos o tempo necessário à
organização de numa desconexão material e política do curso geral da
catástrofe, desconexão que não seja assombrada pelo espectro da penúria, pela
urgência da sobrevivência. Para o dizer de forma clara: enquanto não soubermos
como nos livrar das centrais nucleares e enquanto desmantelá-las for um negócio
para aqueles que as querem eternas, aspirar à abolição do Estado continuará a
fazer sorrir; enquanto a perspetiva de um levantamento significar por certo
penúria de cuidados médicos, de alimentos ou de energia, não haverá nenhum
movimento de massas decidido. Por outras palavras: temos que retomar um
meticuloso trabalho de pesquisa. Temos de ir ao encontro, em todos os
sectores, em todos os territórios que habitemos, daqueles que dispõem de
conhecimentos técnicos estratégicos. É somente a partir daí que os movimentos
ousarão verdadeiramente “bloquear tudo”. É somente a partir daí que se
libertará a paixão de experimentar uma outra vida, paixão técnica em larga
escala, que é como a inversão da situação de dependência tecnológica de todos.
Este processo de acumulação de saber, de estabelecimento de cumplicidades em
todos os domínios, é a condição de um regresso sério e massivo da questão
revolucionária.
“O
movimento revolucionário não foi vencido pelo capitalismo, mas pela
democracia”, dizia Mario Tronti. Ele foi ainda vencido por não ter conseguido
apropriar-se do essencial da potência operária. O que faz o operário não é a
sua exploração por um patrão, o que ele partilha com qualquer outro assalariado.
Aquilo que positivamente faz o operário é o seu domínio técnico, incorporado,
de um modo de produção particular. Há aí uma inclinação ao mesmo tempo sábia e
popular, um conhecimento apaixonado que constituía a riqueza própria do mundo
operário antes de o capital, precavendo-se contra o perigo aí contido e não
sem antes ter previamente sugado todo esse conhecimento, ter decido fazer dos
operários operadores, vigilantes e agentes de manutenção das máquinas. Mas
mesmo aí, a potência operária mantém-se: quem sabe fazer funcionar um sistema
também o sabe sabotar eficazmente. Ora, ninguém pode dominar individualmente o
conjunto de técnicas que permitem ao sistema atual reproduzir-se. Isso, apenas
uma força coletiva o pode fazer. Construir uma força revolucionária, nos dias
de hoje, é justamente isso: articular todos os mundos e todas as técnicas
revolucionariamente necessárias, agregar toda a inteligência técnica numa força
histórica e não num sistema de governo.
O
fracasso do movimento francês de luta contra a reforma das pensões, do Outono
de 2010, ter-nos-á dado uma áspera lição: se a CGT teve mão sobre toda a luta,
foi em virtude da nossa insuficiência nesse
plano. Teria bastado fazer do bloqueio das refinarias, sector onde ela é
hegemónica, o centro de gravidade do movimento. E de seguida, ganhar a
possibilidade de a qualquer momento apitar o fim da partida, reabrindo as veias
das refinarias e afrouxando dessa forma toda a pressão sobre o país. O que
então faltou ao movimento foi precisamente um conhecimento mínimo do
funcionamento material deste mundo, conhecimento que se encontra disperso nas
mãos dos operários, concentrado na carola de alguns engenheiros e certamente
tornado comum, no lado adverso, numa qualquer obscura instância militar. Se
tivéssemos sabido parar o aprovisionamento de gás lacrimogéneo da polícia ou se
tivéssemos sabido interromper por um dia a propaganda televisiva, se
tivéssemos sabido privar as autoridades de eletricidade, podemos ter a certeza
de que as coisas não teriam acabado tão desgraçadamente. De resto, temos que
considerar que a principal derrota política
do movimento terá sido deixar ao Estado, na forma de requisições policiais,
a prerrogativa estratégica de determinar quem
teria gasolina e quem dela seria
privado.
“Se
hoje em dia quiser desembaraçar-se de alguém, deverá atacar as suas
infraestruturas”, escreve com muita justeza um universitário norte-americano.
Desde a Segunda Guerra Mundial que a Força Aérea norte-americana não parou de
desenvolver a ideia de “guerra infraestrutural”, vendo nos equipamentos civis
mais banais os melhores alvos para pôr de joelhos os seus adversários. Tal
explica, aliás, que as infraestruturas estratégicas deste mundo estejam
rodeadas de um crescente sigilo. Para uma força revolucionária, não faz sentido
saber como bloquear a infraestrutura do adversário, se não se souber como a
pôr a funcionar em seu proveito, caso seja necessário. Saber destruir o sistema
tecnológico supõe experimentar e pôr em prática simultaneamente as técnicas
que o tornam supérfluo. Regressar à terra é, para começar, não mais viver na
ignorância das condições da nossa existência.
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Notas da
edição
Este texto é um capítulo do livro “Aos nosso
amigos” do Comité Invisível, traduzido e publicado em português pelas Edições Antipáticas em 2015 e gentilmente cedido para
publicação no Punkto. O texto de Amador Fernández-Savater “A
revolução como problema técnico”, publicado no passado mês de Fevereiro, deverá ser visto como um
preâmbulo, um convite à leitura deste último livro. A utilização do novo acordo
ortográfico neste texto seguiu a versão original traduzida pelas Edições
Antipáticas. Imagens retiradas do livro.
Comité
Invisível
Comité
Invisible é uma tendência da subversão presente.
Um grupo de colaboradores anónimos que começou por lançar em 2007 o primeiro
livro “A insurreição que vem”, publicado em francês pelas edições La fabrique e traduzido para português
(também) pelas Edições Antipáticas.
Ficha
técnica
Data de publicação: 1 de
Março 2016
Etiqueta: Pensamento \ crítica
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