≡
Caderno
\ Claire Fontaine
As razões de um amor que nunca morre fundamentam-se
frequentemente mais no passado do que no presente. Provavelmente porque o amor
não tem, por assim dizer, o sentido da realidade, mas tem o sentido do possível,
e está relacionado intimamente com o “ainda não” e o “não mais”. Que amemos o comunismo
– e que o amemos ainda – significa que para nós o futuro existe e que ele não é
apenas a propriedade privada dos dominantes de hoje ou de amanhã. Significa que
o amor que alimenta a passagem do tempo, que torna os projectos e as recordações
possíveis, não é possessivo, ciumento, indivisível, mas colectivo; que não teme
nem o ódio nem a raiva, não se refugia desarmado nas casas, mas percorre as
ruas e abre as portas fechadas.
Acredita-se, hoje, que os afectos são um
assunto privado e pessoal, mas na verdade são o lugar que o governo global
escolheu para colonizar, através das mercadorias ou do terror. Todos nós temos
desejos e medos que não aceitamos e que não queremos confessar, porque advêm
das obrigações que nos são impostas e não das preferências de cada um. Por
exemplo, todos esses terríveis corpos de desconhecidos que nos rodeiam, o que poderiam
partilhar connosco se não as ruas, as lojas e os transportes públicos? No
entanto… uma possibilidade dorme sob os nossos dedos cansados no final do dia,
nos olhares perdidos que lançamos das janelas, sobre as viaturas paradas no
trânsito debaixo de um céu metropolitano. É a possibilidade de descobrir que todos
somos uma singularidade qualquer, igualmente amável e terrível, prisioneira das
malhas do poder, à espera de uma insurreição que nos permita mudar a nós
mesmos.
Que amemos o comunismo quer dizer que
acreditamos que as nossas vidas, empobrecidas pelo comércio e pela informação,
estão prontas a elevarem-se como uma onda e a reapropriarem-se dos meios de
produção do presente.
≡
Claire
Fontaine
Claire Fontaine é um colectivo artístico
sediado em Paris, fundado em 2004 por Fulvia Carnevale e James Thornhill.
Trabalhando em néon, vídeo, escultura, pintura e texto, o seu trabalho pode ser
descrito como uma interrogação contínua da incapacidade política e da crise da
singularidade que parece definir a sociedade contemporânea.
Notas
da edição
Optou-se por traduzir o título original
italiano “Siamo tutti singolarità qualunque” por “Somos todos uma singularidade
qualquer”, embora uma tradução possível pudesse ser “Somos todos singularidades
quaisquer”.
Este texto faz parte da exposição “Siamo
tutti singolarità qualunque” a partir do Cubo
di Garutti à Bolzano (Setembro 2006 – Janeiro 2007). O texto foi afixado no
interior do cubo, que era inacessível ao público e situado no parque infantil
de um bairro social, e foi deixado para distribuição livre dentro de um
recipiente de plástico. Foi apresentado em versão bilingue italiana e a alemã.
Este texto é parte integrante do Caderno \ Claire Fontaine, coordenado por Luhuna Carvalho,
Mariana Pinho e Nuno Rodrigues. Tradução de Mariana Pinho. Revisão de Pedro Levi
Bismarck.
Imagem
Claire Fontaine, Untitled (We are all whatever singularities), 2015.
Ficha
técnica
Data de publicação: 28 de Janeiro 2016
Etiqueta: Pensamento crítico \ Politica;
Artes \ Escritas
≡
Imprimir