É triste, no nosso tempo, assistir ao avanço da barbárie
nos costumes sociais, bem como ao embrutecimento moral dos indivíduos, que não
se poupam a nenhuma baixeza; neste novo universo ético, a concorrência já não é
atiçada pela excelência e a emulação, mas, pelo contrário, pelo aviltamento e a
denigração sistemática dos outros, tendo deixado de haver escrúpulos para
atingir o alvo através da calúnia e da ingratidão. A própria forma da calúnia,
a cínica ingratidão que atinge as pessoas perante as quais alguém se sente
obrigado, já não se limita apenas aos outros indivíduos, estende-se agora até
mesmo às coisas, e inclusive às próprias
palavras que designam as coisas. Ora, embora eu não pretenda que as
palavras sejam absolvidas como inocentes, invoco para elas um processo justo
antes de serem condenadas como culpadas.
Vejamos o caso da palavra «terrorismo», de resto
inventada pelos Franceses em 1793. Se a considerarmos sem preconceitos, somos
hoje obrigados a denunciar um inegável paradoxo: o terrorismo é quotidianamente
caluniado por todos os seus beneficiários, muito mais do que
é criticado por quem tem de o suportar; e caluniado de forma ainda mais virulenta
por aqueles que o financiam, que dele se aproveitam, o dirigem e o impõem às
populações que dele são vítimas. Muito injustamente, dizemos nós, porque é
graças ao terrorismo que actualmente estes demiurgos governam o mundo,
legiferam, torturam, condenam à morte, enriquecem e prosperam apoderando-se da
licença mais desenfreada para o comando do mundo, licença de que não poderiam
valer-se sem o terrorismo.
É também triste assistir à ingratidão, onde quer que se
manifeste; mas ainda mais desolador é vê-la em aplicação quando os ingratos
perseveram sem vergonha em extrair tão grandes benefícios da coisa caluniada.
Se se considerarem as coisas com espírito de equidade e imparcialidade, teremos
de admitir que nunca o débil Presidente francês, com o seu indigente governo,
teria podido impor à França todas as medidas anticonstitucionais e
extrajurídicas que pôde adoptar graças à operação Charlie e aos atentados de
13-11 – medidas sempre difíceis de impor, mas reclamadas por esses a quem
Hollande deve obedecer. Graças a isso, o governo mais fraco e impopular que a
França terá alguma vez conhecido pôde desencadear impunemente guerras e golpes
de Estado no estrangeiro, e instaurar no interior o estado de emergência, ou
seja, a suspensão das liberdades civis, coisa que constitui o sonho secreto da
maior parte dos governos do mundo.
Devemos constatar que o Presidente francês, tal como
aqueles a quem é chamado a prestar contas, têm um infinito débito de
reconhecimento para com o terrorismo, que tão injustamente caluniam sem cessar
como se ele estivesse na origem de todos os males, quando, bem pelo contrário,
ele é a fonte de todo o poder excedentário e extraordinário que acabam de se
arrogar contra a sociedade, e sem oposição.
É pois consternador ver a ingratidão ter a ousadia de se
transformar em pura hipocrisia, e a hipocrisia em poder constituído.
Consideremos agora sem preconceitos as outras vantagens
que o terrorismo dá aos que hipocritamente o condenam.
Face ao terrorismo deixa de haver riscos de revolta nos
subúrbios franceses, e isto apesar de as razões de revolta se terem agudizado,
tendo em mente as sublevações que há dez anos tanto preocuparam os responsáveis
políticos. Mas há outras vantagens.
Face ao terrorismo, a luta de classes e as greves passam
a ser actos de insubordinação, que podem ser esmagados de imediato, sem
quaisquer formalidades, impondo assim facilmente uma espécie de paz social, uma
paz armada – sem dúvida – mas armada de
um único lado.
Graças ao terrorismo, fecha-se toda a gente em casa, pode
criminalizar-se qualquer situação, acusar e condenar arbitrariamente qualquer
pessoa, fazer buscas onde e quando se quiser, nas casas e na Internet, pode
torturar-se, matar, obrigar a prisão domiciliária, impor uma censura apertada,
sem correr o risco de causar indignação, críticas ou oposição.
Graças ao terrorismo, o Estado, e os seus beneficiários
políticos, tornam-se como por magia «bons», porque, após terem sacrificado uma
pequena porção da população, podem erigir-se em protectores da restante. O terrorismo torna-se assim a pedra
filosofal por fim encontrada que santifica o poder, edifica os políticos e
legitima a mafiosa protecção dos súbditos a que qualquer Estado aspira.
Com a paz social adquirida no interior graças ao
terrorismo, a economia volta a arrancar, tal como os lucros, e podem fazer-se
suculentos negócios no estrangeiro, vendendo, por exemplo, aviões Rafale, que
noutras condições seriam invendáveis, aos financiadores do terrorismo. Como
proclamou angelicamente e claramente o presidente e director-geral da Dassault,
depois da operação Charlie, «Com os astros agora mais bem alinhados, vamos
procurar melhorar a vantagem para conseguirmos assinar um quarto contrato antes
do fim do ano» (cf. Le Point,
2-6-2015). Mas as vantagens do terrorismo para a economia são múltiplas e não
acabam aqui. No estrangeiro, graças aos exércitos terroristas criados a partir
do zero (Boko Haram, Al-Qaeda, E.I.), o Ocidente pode saquear com abundantes
lucros os países do Terceiro Mundo.
§
O filósofo produz ideias, o poeta, poemas, o padre,
sermões, o professor, tratados, etc. O terrorismo produz atentados. Se
encararmos de mais perto este último ramo da produção relativamente ao conjunto
da sociedade, poremos de parte muitos preconceitos. O terrorismo não produz
apenas atentados, produz também toda a legislação antiterrorista, os juristas
para redigir as leis, os jornalistas para intoxicar a opinião pública, os
programas de televisão, os filmes, os magistrados especializados, os polícias
instruídos para a repressão do terrorismo, os professores que dão aulas na
universidade e publicam os inevitáveis tratados, os psicólogos de massas, os
romances sobre a submissão, sendo posteriormente estes livros, filmes, etc.
lançados como mercadorias no mercado geral. Produz-se assim um aumento da
riqueza nacional.
O terrorismo produz depois todo o antiterrorismo, a
justiça criminal, os esbirros, prisões, carrascos, juízes, bem como todo um
ramo da indústria e dos serviços de vigilância e segurança. E todos estes
diferentes corpos e ofícios, que por seu turno constituem outras categorias da
divisão social do trabalho, desenvolvem diversas capacidades do espírito
humano, criam novas necessidades e novas formas de satisfação. Deste modo, a
tortura deu lugar às invenções mecânicas mais fecundas e ocupou muitos honestos
artesãos na produção desses instrumentos.
O terrorismo produz um efeito por vezes moral, por vezes
trágico, segundo as circunstâncias, prestando assim serviço aos sentimentos
morais e estéticos do público e da classe política, à qual dá sempre a
oportunidade de se lançar contra qualquer coisa de mais manifestamente imoral
do que ela própria.
O terrorismo rompe com a monotonia e a segurança quotidiana
e banal da vida burguesa. Impede a estagnação e suscita a tensão e inquieta
mobilidade sem as quais o aguilhão da concorrência embotaria. Estimula assim as
forças produtivas, impele as finanças, electriza a Bolsa.
Ao mesmo tempo que o terrorismo, quando é praticado em
larga escala, elimina uma parte excedente da população do mercado de trabalho,
diminuindo por consequência a concorrência entre os trabalhadores, ele impede
também – quando causa muitos danos e vítimas – que o salário desça abaixo do
mínimo, absorvendo a luta contra o terrorismo uma parte desta mesma população e
reduzindo assim o desemprego.
Em todo o caso, o terrorismo, por ser sempre a encenação
de uma guerra civil destinada a evitá-la, comparado com esta poupa assim muitas
mortes.
O terrorismo não é apenas útil, é até necessário, como o mal. Sabemos que isso
a que chamamos mal é o grande princípio que faz de nós seres sociais, que é a
base, a vida e o esteio de todas as ocupações, sem excepção; é aqui que convém
procurar a origem verdadeira de todas as artes e de todas as ciências. A partir
do momento em que o mal deixasse de existir, a sociedade seria condenada ao
declínio, ou mesmo a perecer por completo.
O terrorismo, apresentando-se como o mal e o horror
extremo, como a quintessência de um horror misterioso, cruel, enigmático e
inexplicável, que até os inocentes golpeia cegamente, pretende concentrar em si
mesmo todo o mal. E atraindo para si todos os olhares, tem a vantagem
extraordinária de distrair a atenção do público de todos os outros horrores,
que assim pretende apagar da vista, ou pelo menos torná-los aceitáveis como
menos graves, incutindo o medo em toda a gente; graças a ele, torna-se fácil e
«justificável» que qualquer governo imponha leis excepcionais, que limitam e
anulam, para seu bem, qualquer liberdade precedentemente dada por adquirida
pelos cidadãos. Inversamente, os Estados, que usam o terrorismo e dele fazem um
biombo, alcançam assim o optimum de
liberdade para os governantes enquanto
a sociedade se torna maleável e submissa a um novo sistema institucional
formalmente idêntico, mas na realidade completamente retorcido. Isto
corresponde à imposição e generalização no Ocidente de regimes
pós-constitucionais, a meio da indiferença universal.
As motivações verdadeiras e os objectivos de qualquer
terrorismo, a sua utilidade,
encontram-se sempre nos seus resultados. E destes resultados não faz parte que
os povos o ponham a nu e se insurjam contra o engano e a impostura das
narrativas oficiais sobre os crimes de Estado.
Foi por isso que o primeiro-ministro britânico requereu
oficialmente, na 69ª Assembleia Geral da ONU, que quem ponha em discussão a
versão oficial dos atentados do 11 de Setembro nos Estados Unidos, ou a versão
dos de Londres de 7 de Julho ‒ os pretensos «extremistas não violentos», como ele os
definiu ‒ seja
perseguido ao mesmo título que os
terroristas, por ser responsável pela «corrupção das mentes juvenis» [1]. Foi assim introduzido
oficialmente e pela primeira vez na Historia o famigerado orwelliano «psico-crime»
(thoughtcrime ou crimethink) que permite ao Estado prender, torturar e eliminar
qualquer pessoa que ponha em dúvida a sua narrativa dos massacres terroristas.
A partir do atrás exposto, direi, a concluir, que a
utilidade do terrorismo, para todos os Estados que o praticam e o encobrem, não
precisa de ulterior demonstração.
1. Assembleia-Geral
das Nações Unidas, Nova Iorque, Setembro de 2014.
Notas da edição
Traduzido do italiano por Júlio Henriques. Imagem: Assembleia-geral
da Nato.
Gianfranco
Sanguinetti
Autor do livro Do
Terrorismo e do Estado (Antígona, Lisboa, 1981) e de outras obras não
traduzidas em português. Antigo membro da Internacional Situacionista.
Ficha técnica
Data de publicação: 17 de Janeiro 2016
Etiqueta:
Pensamento crítico \ Politica