Estamos
a viver um momento de luto ou de submissão a um poder de estado cada vez mais
militarizado, de suspensão da democracia? De que maneira esse modelo de estado
se instaura mais facilmente quando é vendido em nome do luto? Perguntas e
reflexões de Judith Butler a partir de Paris, onde esteve na noite de
sexta-feira, para tentar compreender o que se passou, mas também o que está aí diante
de nós.
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Estou em Paris. Ontem à noite, passei perto de um dos
locais na rua Beaumarchais. Todos aqueles que eu conheço estão bem, mas muitos
que eu não conheço estão mortos, traumatizados ou em luto. É escandaloso e
terrível. Hoje de tarde as ruas estiveram cheias de movimento, mas vazias à
noite. A manhã acordou apática. As discussões televisivas, que ocorreram
imediatamente após os eventos, parecem deixar claro que o “estado de
emergência”, ainda que temporário, na verdade cria precedente para uma
intensificação do estado de segurança. As questões debatidas na televisão
incluem a militarização da polícia (como “completar” esse processo), o espaço
da liberdade, e a luta contra o “islão”, este último entendido como uma
entidade amorfa. Hollande, ao nomear isso como “guerra”, procurou passar um
aspecto viril, mas o que chamou atenção foi o aspecto imitativo da sua
performance – tornou-se difícil, então, levar seu discurso a sério. E no
entanto, é esse agora o jogral que assume o papel de cabeça do exército.
A distinção entre estado e exército dissolve-se num
estado de emergência. As pessoas querem ver a polícia, querem uma polícia
militarizada para protegê-las. Um desejo perigoso, ainda que compreensível.
Muitos são atraídos pelos aspectos beneficentes dos poderes especiais
concedidos ao soberano num estado de emergência, como as corridas gratuitas de
táxi na noite de ontem para qualquer um que precisasse voltar para casa, e a
abertura dos hospitais para todos que foram atingidos. Não há toque de recolher
instaurado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações,
proibidas – inclusive os “rassemblements” (encontros)
para lamentar os mortos foram considerados ilegais. Compareci a um desses
encontros na Place de la République, onde a polícia reiterou que todos deviam
dispersar, e poucos obedeceram. Nisso vi um breve momento de esperança.
Os que comentam os eventos procurando distinguir as
diferentes comunidades muçulmanas, com suas diversidades de posição política,
são acusados de procurarem “nuances”: o inimigo precisa ser total e uno para
ser aniquilado, e as diferenças entre muçulmanos, jihadistas e o Estado
Islâmico vão ficando mais difíceis de discernir nos discursos públicos. Mesmo
antes do ISIS assumir a responsabilidade pelos ataques, muitos já apontavam o
dedo, com total certeza, ao Estado Islâmico. Pessoalmente, achei interessante
que Hollande tenha proclamado três dias de luto oficial ao mesmo tempo que
intensificou os controles de segurança – mais uma maneira de ler “Mourning
becomes the law” (O luto torna-se lei), o título do livro de Gillian
Rose. Estamos a viver um momento de luto ou de submissão a um poder de estado
cada vez mais militarizado, de suspensão da democracia? De que maneira esse
modelo de estado se instaura mais facilmente quando é vendido em nome do luto?
Serão três dias de luto público, mas o estado de emergência poderá estender-se
por 12 dias até que seja necessária sua aprovação em assembleia nacional. E
ainda, a explicação do estado é de que é preciso restringir liberdades a fim de
defender a liberdade – um paradoxo que não perturba os doutos comentadores da
televisão. De facto, os atentados foram evidentemente dirigidos a locais emblemáticos
da actividade livre e quotidiana francesa: o café, a sala de espectáculos, o
estádio de futebol. Na sala de espectáculo, aparentemente, um dos assassinos
responsáveis pelas 89 mortes violentas acusou a França de ter falhado na
intervenção na Síria (contra o regime de Assad), e o Ocidente pela intervenção
no Iraque (contra o regime baathista). Não se trata, portanto, de um
posicionamento (se é que podemos chamá-lo assim) totalmente contrário à
intervenção ocidental em si.
Há, ainda, uma política dos nomes: ISIS, ISIL, Daesh. A
França recusa-se a dizer “état islamique” para não reconhecer sua
existência enquanto estado. Querem manter o termo “Daesh”, palavra árabe que
não é acolhida pela língua francesa. Nesse meio tempo, foi essa a organização
que assumiu a responsabilidade pelos ataques, afirmando que se tratava de uma
retaliação pelo bombardeamento que matou muçulmanos no território do califado.
A escolha de uma sala de espectáculos como alvo de ataque – como cenário para
os assassinatos, na verdade – foi justificado pelo facto de ali ser um local de
“idolatria”, de um “festival de perversão”. Mas pergunto-me onde é que eles
foram buscar essa palavra: “perversão” – parece que estiveram a ler
bibliografia de outra área.
Os candidatos à presidência já estão aí com suas
opiniões: Sarkozy já propõe campos de detenção, afirmando a necessidade de
prender qualquer suspeito de ter ligações com jihadistas. E Le Pen advoga pela
“expulsão”, ela que há pouco tempo apelidou os novos imigrantes de “bactérias”.
É bem possível que a França consolide a sua guerra nacionalista contra os
imigrantes a partir do facto de que um dos assassinos claramente entrou no país
pela Grécia.
A minha aposta é de que será importante acompanhar o
discurso em torno da liberdade nos próximos dias e semanas, pois este terá
consequências para o estado de segurança e para as versões cada vez mais
estreitas de democracia que temos diante de nós. Uma versão de liberdade é
atacada pelo inimigo; outra é restringida pelo estado. O estado defende o
discurso do “ataque à liberdade” por parte do inimigo como um ataque à essência
do que é a França, mas suspende a liberdade de reunião (o “direito à
manifestação”) em pleno luto, e prepara uma militarização ainda maior da
polícia.
A questão política fundamental parece ser: que versão de
extrema-direita irá prevalecer nas próximas eleições? E o que será a “direita
tolerável” quando Marine le Pen for considerada de “centro”? São tempos
assustadores, tristes e preocupantes, mas há a esperança de que ainda somos
capazes de pensar, falar e agir no meio de tudo isto. O processo de luto parece
ter sido totalmente restringido dentro do território nacional. Praticamente não
se fala dos quase 50 mortos em Beirute no dia anterior, tampouco dos 111 mortos
na Palestina apenas nessas últimas semanas. A maioria das pessoas que conheço
dizem que estão num “impasse”, incapazes de pensar sobre a situação. Para
pensar sobre tudo isto talvez seja necessário inventar um conceito de luto
transversal – isto é, considerar o modo como a métrica do lamento ocorre, como
e porque é que os assassinatos no café me comovem de modo mais intenso que os
ataques ocorridos noutros locais. Parece que o medo e a raiva poderão vir a ser
um feroz apoio ao estado policial. Talvez seja por isso que prefiro aqueles que
dizem estar num impasse: significa que levarão um certo tempo para pensar a
situação. É difícil pensar no espanto. É preciso ter tempo, e ter companhia
para atravessar esse tempo – há, talvez, espaço para que isso se dê num
“rassemblement” não autorizado.
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Nota da edição
Texto publicado e
traduzido a partir da versão portuguesa publicada no site da Revista
Cult (repórter Helder
Ferreira, tradução Sofia Nestrovski) e a partir da versão inglesa publicada no
Blog da Verso
Books.
Imagem
1.Homenagens
deixadas na Place de République. Imagem via Verso
Books blog.
2. Soldados
patrulham as ruas do centro de Paris, no sábado, depois dos ataques da noite
anterior. Fotografia: Zuma Press.
Judith Butler
Filósofa e
professora na Universidade da Califórnia (Berkeley). Com um percurso académico reconhecido,
tem desenvolvido intensa e percursora investigação e debate em tornos dos
estudos do género e feminismo.
Ficha técnica
Data de publicação:
16 de Novembro de 2015
Etiqueta: Política
(Pensamento crítico)