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1. Stultifera Navis
A abertura da “Histoire de la
Folie à l’Âge Classique”, obra publicada em 1972 por Michel Foucault,
confronta-nos com a descrição de um espaço inabitado e inabitável, ainda sem
inscrição política, que a extinção de um grande mal revelara:
“No final da Idade Média, a lepra desaparece
do mundo ocidental. Às margens da comunidade, às portas das cidades, abrem-se
como que imensas praias que esse mal deixou de assombrar, mas que deixou
estéreis e inabitáveis durante longo tempo. Durante séculos essas extensões
pertencerão ao desumano. Do século XIV ao XVII, vão esperar e solicitar,
através de estranhas encantações, uma nova encarnação do mal, um outro esgar do
medo, renovados processos mágicos de purificação e exclusão”.
À data em que escrevo, sob o inominável choque dos ataques de 13 de
novembro em Paris, é o terrorismo que se conforma como essa encarnação do mal.
Mas que espaço ele ocupa? Que espaço ocupa na nossa organização social e
política? Que disposição, face a ele, se ordena na separação do bem e do mal,
do normal e do anormal, da sanidade e da loucura? Como ele se situa, também, na
nossa linguagem? De que forma é por nós nomeado, inscrito e pensado? De que
forma se materializa imageticamente? Enfim, o que é e onde está “isso” que
nomeamos por terrorismo?
O capítulo inicial da “História da Loucura” de Foucault intitula-se,
adequadamente, Stultifera navis. Mais
do que a obra, quatrocentista, de Sebastian Brant, a metáfora da nave dos
loucos é de uma pertinência perturbadora na sua representação do mal
simultaneamente localizado (o navio enquanto topos) e deslocalizado (o navio
como trânsito, movimento, desterritorialização). Há, pelo menos, três premissas
que se podem retirar da representação da nave dos loucos: a da sua confinação
(de onde se retira, igualmente, a ideia de excepção), a da sua errância e da
sua não-inscrição.
Seja o leproso da antiguidade, seja o louco medieval, seja o terrorista da
actualidade, à representação do mal não corresponde a sua inscrição. Embora
confinado (seja numa confinação axiológica seja numa, mesmo que parcial,
localização geográfica), o mal move-se, muta-se e deforma-se, erra e difusa-se.
A ideia de mal corresponde, em certo sentido, à ideia de deformação do bem, não
necessariamente a sua antítese, mas o seu monstro. Mas se o pestilento, o louco
ou monstro são, em certos contextos históricos representações de um mal,
são-no, digamo-lo assim, “por
destino”, por sua vez o terrorista parece representar, na nossa perspectiva
ocidental, a escolha pelo mal.
2. O nome
O terrorismo não tem um nome, ele tem diversos nomes e aí reside a
dificuldade de o nomear. No texto epistolar de Judith Butler, dirigido a Eric
Alliez a 14 de novembro, é referido como em França predomina uma recusa em denominar
o terrorismo enquanto “état islamique”. Ele é dito através do acrónimo – ISIS,
ISIL – ou, preferencialmente, “Daesh”, palavra árabe inexistente no léxico
francês. A palavra que denomina o terrorismo é, assim, uma palavra não-inscrita,
um significante flutuante (qual Stultifera
navis) que se presta a ser interpretado de diversos modos, assumindo,
circunstancialmente, determinado significado.
Enquanto significante flutuante, dir-se-ia que o terrorismo é operado
por um discurso mítico. Essa operação é parte do combate, da violência que a
ele se dirige. Uma violência à violência, é este combate ao terrorismo que
permanece como não-inscrito em todos os lugares da nossa civilização: sem
inscrição nos valores, sem inscrição da nossa lei, sem inscrição na nossa
língua. Não o significar não corresponde, porém, a torná-lo insignificável.
Enquanto significante flutuante, no sentido dado ao termo por Lévi-Strauss,
esse monstro disforme transforma-se noutros regimes de signos, noutras
formações de poder, noutras ideias.
Dizer “état islamique” é demasiado insuportável. A expressão carrega em
si a afirmação do terrorismo enquanto “estado” e a sua significação ligada ao
Islão. Daesh pertence a outra ordem
de significação, a outro regime de poder, é uma não-palavra, algo que se poderá
eliminar sem inscrever um vazio, sem falha.
Mas se as tematizações do terrorismo por algum pensamento ocidental se
prestam a operar dentro de um discurso mítico, os corpos que tombaram a 13 de
novembro em Paris são reais. Essa realidade força um olhar materialista sobre o
terrorismo: ele não é uma ideia,
mesmo que haja uma ideia em nome da
qual se mata.
3. Estado Islâmico
Ao tráfego dos nomes e do inominável dos nomes corresponde um idêntico
tráfego das imagens e do irrepresentável das imagens. Há rostos e há fantasmas.
Os media, por uma vez, não publicaram as imagens dos rostos dos cadáveres das
vítimas de Paris. As vítimas não têm um rosto, tal como os ataques não tinham
um alvo. Somos todos nós. Todos nós matámos e fomos mortos em Paris a 13 de Novembro.
Há rostos por detrás do Estado Islâmico, tal como Osama Bin Laden foi o
rosto da Al Qaeda. Dar um rosto ao terrorismo inscreve-se na violência que
sobre ele exercemos, é parte de um procedimento biopolítico. Mas os rostos que
representam o terrorismo enquanto ideia são uma espécie de projeção
fantasmática do mal que se combate, um rosto distante, errante, deformado e
alterado – em alteridade, também.
Os nomes, tal como os rostos, não são ocidentais. Para uma parte do
mundo ocidental, a não-ocidentalidade é já uma não-inscrição que possibilita o
transito para um certo registo ficcional. Quando Estado Islâmico conquistou
Mossul, a norte do Iraque, Abu Bakr al-Baghdadi era o seu principal líder. الموصل (Mossul) era, à data da ocupação,
uma cidade com 2,5 milhões de habitantes e uma história marcada pelo conflito.
Tomada e retomada, como outras regiões
de
localização estratégica nas rotas da Índia, da Pérsia e do Mediterrâneo, foi
conquistada pelos Turcos no século XIX, pelos Mongóis no século XII, pelos
Otomanos no século XVI, pelos Britânicos no século XX, depois pelos Iraquianos
e pelos Norte-Americanos já neste século. A 5 de Julho de 2010, durante o Ramadão, na
conhecida homilia da Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, Abu Bakr
al-Baghdadi declarou-se o primeiro Califa ao fim de várias gerações. A
reconstrução do califado, simultaneamente um território geográfico e um espaço
mítico, tornou-se num dos objectivos das acções do Estado Islâmico.
Khalifa é o representante de Maomé. Quando morre em 632, Maomé tinha a
liderança política de uma vastíssima região que os quatros Califas que lhe
sucedem conseguem expandir levando as fronteiras do califado desde os confins
entre a Índia e as regiões do Paquistão, Afeganistão e Tadjiquistão,
atravessando as regiões do Golfo Pérsico e do norte de África e incluindo a
Península Ibérica.
O autodeclarado Califa, Abu Bakr al-Baghdadi é Ibrahim al-Badri, nascido
em Samarra, Iraque, em 1971. Este tráfego dos nomes é comum aos principais
ideólogos da Al Qaeda e do Estado Islâmico. Abu Muhammad al-Maqdisi é o nome
abreviado de Abu Muhammad Aasim
al-Maqdisi. Este foi o nome assumido por Aasim Muhammad Tahir al-Barqawi na grafia ocidental para o nome árabe عصام محمد طاهر البرقاو
Musa Cerantonio é visto
pelas autoridades ocidentais como um dos mais importantes jihadistas a operar
no ocidente. As suas pregações são feitas essencialmente no Twitter. Em Junho
do ano passado foi detido nas Filipinas e deportado para a Austrália onde se
encontra detido. Robert “Musa” Cerantonio nasceu na Austrália, tem ascendência
italiana e irlandesa, cita Monty Python e dedica-se à leitura e pregação do
Corão. Musa Cerantonio nas suas pregações via Twitter tem ajudado a legitimar a
reivindicação de Abu Bakr al-Baghdadi em ser Califa. Ser Califa implica cumprir uma série de
condições impostas pela lei islâmica — ser adulto de ascendência quraysh;
ter legitimidade moral e integridade física e mental; e ter amr, ou
autoridade. Este último critério requer, entre outros requisitos, que o Califa
tenha território no qual possa exercer a lei islâmica.
A autodenominação “Estado
Islâmico” é, desta forma, uma ideia política sustentada num discurso teológico.
O não reconhecimento do “Estado Islâmico” é parte do combate político, desde
logo no plano da linguagem, em complementaridade com o combate militar – feito
em inúmeros cenários como as recentes notícias do ataque de hackers a 3800
contas de Twitter de membros ou apoiantes do Estado Islâmico exemplificam.
O que se esgrime é também um
exercício de tradução. Procuramos (quando o procuramos) estabilizar um sentido
em certas palavras traduzidas para português, trabalhando sobre o termo árabe,
hebraico ou grego. O esforço de tradução leva-nos a confrontar sentidos
etimológicos em mais do que uma língua, trabalhando invariavelmente com línguas
mortas – e as palavras parecem pouco mais que cadáveres.
4. Futuro
Nas suas inúmeras intervenções após o 11 de Setembro,
Noam Chomsky tem insistido no facto da palavra “terrorismo” ter um duplo
significado. Há um significado literal, dado por um enquadramento legal e moral
das sociedades ocidentais e há um significado ideológico ou doutrinário.
Chomsky exemplifica evocando, entre outros casos, os drones assassinos autorizados pela governação Obama como exemplo de
acções terroristas. É certo que Chomsky faz um exercício de estilo, trabalha
com a linguagem na sua literalidade, isto é, no despojamento (tanto quanto
possível) da sua semântica moral ou política para produzir conclusões morais e
políticas. O que Chomsky faz é uma gramatização dos acontecimentos da qual
resulta algo de perturbador e complexo, com uma propagação do estado terrorista
e consequente propagação das suas vítimas. Como a peste ou a lepra da
antiguidade, o estado de terror alastra, propaga-se, faz perigar o que se
pensava serem espaços seguros, abala uma determinada ordem, deforma-a e
obriga-nos a repensá-la, através de medidas securitárias, de violência sobre a
violência, no meio do medo que vem do passado e parece já manchar o futuro. O
terrorismo combatido por terrorismo (hackers, drones assassinos) é parte do funcionamento do terrorismo, da
existência desse estado de terror.
Questionado sobre o “Estado
Islâmico”, Slavoj Zizek recorre ao termo “islamofascismo”, considerando que a
ascensão do fundamentalismo islâmico é consequência do desaparecimento da esquerda
socialista secular em países muçulmanos. O raciocínio de Zizek, sem dúvida
desastrado, parece fazer eco de discursos que perante o atual problema do
terrorismo recordam, saudosos, Saddam Hussein e Bashar al-Assad. A defesa, dita
geopolítica, de Saddam Hussein é perturbadora, ela assenta na aceitação de uma
ditadura horrenda na medida em que ela se circunscrevia a uma região do médio
oriente. O horror não é um “em si”, o horror é uma presença sobre nós. Saddam
Hussein foi condenado por crimes contra a humanidade por um tribunal presidido
pelo juiz curdo Raouf Abdul Rahman. De acordo com notícias que circularam nas
redes sociais, Raouf Abdul Rahman terá sido capturado e executado por elementos
do “Estado Islâmico” em 2014.
Não parece possível
pensarmos o actual estado de terror acreditando, ainda, na operatividade de
conceitos políticos definidos na segunda metade do século XIX. Socialismo,
comunismo, liberalismo, estado laico, estado religioso, são hoje termos que
falham no confronto com a realidade. Há uma conferência de Jacques Derrida,
publicada em Portugal pela Vega em 1997, intitulada “De um tom apocalíptico adoptado há pouco em Filosofia”. Neste texto
notável, Derrida analisa a adopção (e ele próprio adopta) do discurso
apocalíptico que, em parte, pode ser compreendida pela sua actualidade e
pertinência. O que obriga a colocar a questão da crise. Como Carlos Leone faz
notar no posfácio da edição portuguesa, a crise da existência e a crise do
sentido da existência.
Ao contrário da profecia, o
apocalipse não pode ser ignorado se não se concretizar. Porque a verdade do
sentido ditada pelo apocalipse é sempre adiada e transformada, ela não se
revela por acção da história. A função apocalíptica é, assim, da ordem da
crise, da crise como estado. Nas palavras de Derrida: “O nosso apocalypse now: já não haveria
oportunidade, fora o acaso, para um pensamento do bem e do mal cujo anúncio
viria congregar-se para estar com ele mesmo numa palavra de revelação”. Não
haver oportunidade, fora o acaso, para um pensamento do bem e do mal é a forma
apocalíptica que Derrida encontra para aludir à crise das
“onto-escato-teleologias”, a que nos poderíamos referir por crise da tradição
ocidental. A crise parece, porém, mais profunda; ela afecta, perturba, uma
ideia e modelo de civilização, herdeiros da revolução francesa, mas igualmente
uma ideia de mundo árabe; ela assume-se como uma crise que é mais do que um
renovado choque de civilizações. O tom apocalíptico que coincide com o actual
estado de terror revela a crise da existência e a crise do sentido da
existência.
O combate ao estado do
terror poderá exigir diversas modalidades, mas ele não será alcançado se não
conseguirmos fazer sentido sobre o essencial, a nossa existência, a nossa coexistência.
O combate ao estado de terror faz-se, também, do valor simbólico, oratório, da
linguagem; na sua poética; na sua política; na sua literalidade: uma vida é uma
vida é uma vida é uma vida. Seja uma vida de parisiense ou de um sírio, a vida
de um norte-americano ou de um iraquiano, a vida de um árabe ou de um zulu, de
um cristão ou de um muçulmano. Uma vida é uma vida, seja a vida de um judeu
irlandês ou de um muçulmano belga ou de um cristão libanês.
Uma vida é uma vida é uma
vida é uma vida.
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José Bártolo
Professor Coordenador com Agregação em
Design. Desenvolve actividade de docência, investigação e curadoria em design,
arte e arquitectura desde 1998. Doutorado em Ciências da Comunicação (2006) é
Presidente do Conselho Científico da ESAD de Matosinhos e Professor Coordenador
Convidado da ESAD.CR. É Director da ESAD-IDEA Investigação em Design e Arte e
investigador no CECL da Universidade Nova de Lisboa. É editor da revista Pli
Arte & Design.
Ficha técnica
Data de publicação: 20 de Novembro
de 2015