Interlúdio. Gostaríamos
de falar agora um pouco sobre o Punkto – não tanto para falar de “nós” ou sobre
“nós”, mas antes falar para um “nós” que está algures aí e que não pode deixar
de ser convocado, encontrado e, sobretudo, agitado. Hoje, como sempre: tarefa
comum sempre em invenção.
O texto que aqui se dá a conhecer,
e que serviu de apresentação do Punkto em duas conferências sobre o tema
inesgotável que é a edição/publicação em arquitectura, não quer ser um manifesto
nem uma tomada de posição ou um libelo, mas qualquer coisa como um
estremecimento-que-fica, sinal luminescente de um movimento, de uma errância que
está já em vinda, um astro que escapa da sua órbita: enfim, um desastre.
≡
O ponto não é estabelecer um sistema de referências,
instituir leis, consumar um mecanismo. Digo que o ponto é propiciar o
aparecimento de um espaço, e exercer então sobre ele a maior violência.
Herberto Hélder, Photomaton & Vox
Existe uma palavra em latim para designar essa ferida,
essa picada, essa marca feita por um instrumento aguçado (…) Essas marcas,
essas feridas são, precisamente, pontos. A este segundo elemento que vem
perturbar o ‘studium’ eu chamaria, portanto, ‘punctum’; porque ‘punctum’ é
também picada, pequeno orifício, pequena mancha, pequeno corte – e também lance
de dados.
Roland Barthes, Câmara Clara
1. O Punkto tem agora mais de cinco anos desde que, em Maio
de 2010, foi lançado o número zero sobre a ideia de “ponto”. Um número que teve
como pano de fundo dois magníficos textos: um de Herberto Hélder, “Desenho” e
outro de Roland Barthes, “A câmara clara”; e que acabaram por definir o
ambiente temático do próprio projecto editorial. Entretanto foram publicados mais
três números: o primeiro sobre o “acaso” (em Novembro de 2010), partindo de
Mallarmé e do seu lance de dados; um número
dois, à sombra das ruínas da “destruição” (Maio 2011); e, por fim, o último
número, sob o signo da “Nostalgia”, publicado em Maio de 2013. Para além disso,
temos vindo a animar um site, com os
seus conteúdos próprios, regularmente actualizado, e temos vindo a desenvolver inúmeras
iniciativas, sobretudo no Porto (mesas-redondas, workshops). Mas mais do que
fazer uma descrição das iniciativas, dos números, do site, interessa-nos falar do âmbito temático deste projecto. Para
isso, importa clarificar o sentido desse mote que nos tem acompanhado desde o
início: «Punkto. Publicação indisciplinada
sobre limites: da prática, da teoria, do político e da arquitectura». E, assim, sinalizar três aspectos
fundamentais que nos têm mobilizado: (1) o papel da crítica e os limites entre
disciplinas, (2) as relações entre a teoria e a prática, (3) a relação entre
arquitectura e o político.
2. Para começar, é importante assinalar a
possibilidade de estarmos aqui a discutir este “Lugar do Discurso”. O que é
sempre uma instância rara, pois estamos perante a oportunidade de falar não com aqueles que geralmente
aparecem publicados, o que seria a
normalidade de um qualquer colóquio de arquitectura, mas com aqueles que publicam, que se consignam a essa
vontade de um tornar público. E que
podíamos definir como um dar a ver e dar a ouvir, que é tanto uma partilha
como uma exigência: o direito à
participação na invenção de um mundo,
como escreve a Susana Caló num magnífico dossier “Devir menor” que temos vindo a publicar no
Punkto.
3. Posto isto, é caso para dizermos que esta é
uma sessão de certo modo vocacionada para o desastre.
Mas não se trata de vaticinar um qualquer insucesso deste colóquio, bem pelo
contrário, trata-se de ir ao encontro de um outro sentido para a palavra desastre. Dés-astre, que significa qualquer coisa como
sem astro ou a deriva de um astro fora de órbita. Um modo de sair de órbita, de
se afastar, de traçar linhas de fuga, uma errância: um pouco para lá dos
astros, dos sistemas mediáticos das estrelas e dos seus brilhos, um pouco para
lá das imagens e dos seus efeitos de luz. Um pouco à procura de vida, diria, lá
onde ela parece totalmente ausente. Os movimentos do desastre são sempre os mais árduos e os menos ambiciosos. Porque o
desastre não é nenhum desígnio, nem mesmo uma condição, talvez mesmo apenas um
acaso, um desvio que teve que ser traçado, uma linha que foi necessário seguir:
um acidente, qualquer coisa que está prestes a cair.
4. Neste sentido, também o Punkto está
absolutamente e alegremente vocacionado para o dés-astre – para essa geografia do desastre, das grandes planícies
escuras que rodeiam os astros, para aquilo que permanece um pouco fora de
órbita, à margem, sempre numa certa fuga àquilo que está demasiado iluminado. Porque
lá onde a luz é menor, lá onde a luz se vai esvanecendo, é também onde podemos
olhar a própria luz. E, como escrevia Michel Foucault, é preciso (antes de mais)
ver aquilo que nos impede de ver. Abrir-se um espaço, criar uma distância, deslocar-se ligeiramente. Mas não há
doutrinas nem profetas (sejam eles da luz ou da escuridão), mas sim um modo
próprio de se posicionar sobre o mundo. Pensar é colocar-se já sobre um limite, é um modo de se des-sujeitar: de compreender o lugar de
cada um no jogo de forças entre o saber do
poder e o poder do saber. A
crítica como uma certa “arte da inservidão voluntária” [1]. E a sua tarefa seria o limite. O
lugar onde nos libertamos das representações e onde aprendemos a interrogar os
limites do conhecimento, onde reconhecemos, como argumentava Michel Foucault,
que a “nossa liberdade está mais naquilo que pensamos do nosso conhecimento e
dos seus limites do que naquilo que fazemos, com mais ou menos coragem”. [2]
1. Michel
Foucault, “O que é a crítica? (Crítica e Aufklärung)”. Revista Imprópria Nº1,
1º Semestre, 2012, p.61.
2. Idem, p.62.
5. Era isto que queríamos dizer quando falávamos
do Punkto como uma publicação
indisciplinada sobre limites. Mas não só, ressoava também (e ressoa ainda)
um certo desencantamento sobre a compartimentação, a separação e o
encaixotamento dos saberes e das práticas: disciplinas confinadas aos seus jardins mimados do saber, devorando-se a
si mesmas. Uma espécie de canibalismo autofágico disciplinar que transforma os
objectos do mundo em simples representações abstractas. Práticas e saberes
elaborando as intermináveis listas da sua história e do seu território. Mas a dúvida
estava sempre aí. Pergunta Jacques Rancière “o que faz com que uma questão seja
considerada como filosófica ou política ou social ou estética [ou, mesmo,
arquitectónica, poder-se-ia acrescentar]?” Responde o mesmo Rancière: «Se a emancipação
tem um sentido, este sentido estará justamente na reivindicação de um
pensamento pertencente a todo o mundo, sendo que não há divisão natural dos
objectos de pensamento e que uma disciplina é sempre um reagrupamento
provisório, uma territorialização provisória de objectos e de questões que não
têm por si mesmo uma localização ou um domínio próprio» [3]. Se houve algo que procuramos no
Punkto foi precisamente escapar a essa
divisão das disciplinas, ir ao encontro desse “pensamento pertencente a todo o mundo”. E lá onde falávamos sobre pontos, acasos, destruições, nostalgias não
falávamos senão de arquitectura [4].É que é preciso falar menos de
arquitectos e mais de arquitectura. E para falar de arquitectura é preciso
fazer falar o mundo.
3. Jacques
Rancière, Et tant pis pour le gens
fatigues. Éditions Amsterdam, 2009, p.478.
4. Referência aos âmbitos temáticos dos quatro números
da Revista Punkto, lançados entre 2010 e 2013.
6. Fazendo, então, uma breve sinopse. «Punkto. Uma publicação indisciplinada sobre limites: da prática, da teoria, do político e da arquitectura». Portanto,
qualquer coisa como uma geografia do dés-astre,
movimentos e errâncias fora de órbita, uma certa arte da fuga e da inservidão
voluntária, critica dos limites e limites das disciplinas. Mas falta ainda
fazer falar esta segunda parte: «da
prática, da teoria, do político, da arquitectura». Outras duas divisões,
outras duas cisões. Porque, na verdade, é preciso ultrapassar este estigma de
que há lugares onde se pensa e
lugares onde se faz, sujeitos que
pensam e outros sujeitos que fazem, que há uma teoria ou uma história que é
tarefa de alguns e que há uma prática a
sério que constrói e se replica. Não há uma teoria antes nem uma prática
depois. Todas as práticas operam sob um determinado paradigma teórico que as
conceptualiza, define, que as territorializa
provisoriamente (a arquitectura, por exemplo, não foi sempre vista e enunciada
do mesmo modo, não teve sempre os mesmos objectos, os mesmos instrumentos, os
mesmos modelos de aprendizagem e de percepção do real).
Quem diz que
recusa a teoria já está a definir um determinado quadro conceptual, já está a
teorizar. Não se pode, por exemplo, afirmar que o projecto não precisa de
teoria. Porque estamos sempre a operar dentro de uma determinada lógica de
acção, dentro de um determinado paradigma teórico vigente. Podemos não querer
interrogá-lo, pensá-lo, problematizá-lo, podemos não querer sair dos limites
desse quadro conceptual, mas isso não é recusar a teoria é recusar o
pensamento.
7. Mas é preciso dizer que esta cisão entre o fazer e o pensar (ou entre prática
e crítica, se quisermos) veio a
revelar-se um mecanismo muito útil para perpetuar uma certa lógica que teima em
afirmar que não existe tal coisa como objectos
políticos em arquitectura. E entramos aqui na terceira coordenada.
Foi-se
construindo a noção que a arquitectura operava agora livremente num espaço
próprio, neutro, objectivo e racional, ao serviço do progresso, da civilização
e do bem-estar material, para além de todas as ideologias e de todas as
políticas. Mas o espaço homogéneo da objectividade científica da disciplina parece
confundir-se excessivamente com esse espaço de “pura logística” [5] do capital financeiro: a
configuração sem limites do território debaixo de um paradigma de gestão
puramente económico, onde tudo é integrado e absorvido, gerando um espaço
homogéneo e sem qualidades, onde as
contradições e as desigualdades da produção capitalista são ultrapassadas (não
por serem resolvidas, mas por serem ocultadas).
5.Cf. Paul Virilio, Vitesse et Politique. Édition Galilée, 1977.
Um espaço onde
a arquitectura encontrou o seu lugar enquanto mercadoria e bem de consumo prête à porter – astros solitários e
cintilantes. Uma arquitectura na alcova,
como já vaticinava Tafuri evocando Sade [6]: entretendo-se no cuidado infinito
de si, removida de qualquer contexto social, político e económico; reduzida a
exercício de estilo e a uma pura linguagem, conduzida à finíssima textura das
“peles” e dos “envelopes” [7] (como, aliás, defendia Alejandro Zaera Polo,
num conhecido texto publicado na revista Volume). Infelizmente, temos vindo a aprender que todas essas promessas de felicidade [8] civilizacionais parecem menos
direccionadas para a satisfação das necessidades de populações e comunidades, e
muito mais para satisfazer as necessidades próprias de reprodução e expansão do
capital e da economia, provocando violentos processos de especulação,
expropriação e privatização, com toda a gama já bem conhecida de consequentes
exclusões e desigualdades sociais e políticas, da China à Europa.
6. Manfredo Tafuri,
“L’Architecture dans le Boudoir: The language of Criticism and the Criticism of
Language”, in HAYS, K. Michael (Ed.), Oppositions:
reader, New York, 1998, p.291-316 (Publicado originalmente em: Oppositions 3, 1974).
7. Alejandro Zaera Polo, “The Politics of the Envelope. A Political
Critique of Materialism”, in Volume 17, 2008, p.76-95.
8. «A beleza não é mais
que uma promessa de felicidade», Stendhal, Do
Amor, Relógio d’Água, Lisboa.
Um recente
artigo de Paulo Moreira no J.A. [9] a propósito da demolição de um edifício em
obra de Zaha Hadid, em Sevilha, construído à revelia da população local é um
bom exemplo disso mesmo. Patrick Schumacher, o braço direito da arquitecta
iraquiana, defende (e defende-se) dizendo: “Parem com o politicamente correcto
em arquitectura. [...] Os arquitectos são responsáveis pela forma do ambiente
construído, não pelo seu conteúdo” [10]. Mas isso são apenas manigâncias
retóricas, um modo de salvar a pele e de salvar essa arquitectura da pele.
Aliás, essa é já uma separação ideológica: forma
de um lado e conteúdo do outro, prática e teoria. Sempre as cisões e as separações.
E pergunto:
entender a arquitectura apenas como forma
do ambiente construído não será, afinal de contas, conduzir a disciplina a
uma definição muito empobrecedora de si própria? E o horizonte (ou o limite) de
tal entendimento não será a progressiva conversão da arquitectura numa mera
técnica, uma “prestação de serviços” burocratizada e desumanizada? Contra isso,
aliás, contra uma tal ideia de arquitectura, já Adolf Loos levantava a sua voz
em 1910. Denunciando “uma arquitectura que passou a ser graças aos arquitectos
– esses ágeis desenhadores, como Loos
os chamava – uma simples arte gráfica” [11].
9. Paulo Moreira, “O Efeito Sevilha”, Jornal
Arquitectos 250, Maio-Agosto, p.400-403.
10.
Patrick Schumacher, Cit. in, Paulo
Moreira.
11. Adolf Loos, “Arquitectura” (1910), Ornamento y delito y otros escritos,
Editorial GG (1972), p.224.
Mas não se
trata de moralismos. Digamos que se há uma potência da arquitectura esta está precisamente
nesse limite entre o dar forma e o fazer falar o conteúdo, no estabelecer com
o programa uma relação crítica de problematização e, até, de resistência e
transgressão. O drama, mas também, toda a potência da arte de construir. O
limite forma-conteúdo é o espaço onde
se descobre a condição ética e política da arquitectura. Isto é, onde esta
reconhece que não opera sobre um espaço euclidiano, homogéneo, puramente logístico e funcionalizante, e que os seus objectos arquitectónicos não são diamantes
impolutos ou astros intocáveis orbitando sozinhos na solidão das folhas
brancas, mas pertencem a um território contestado de corpos e indivíduos,
objectos e coisas, grupos e comunidades que têm as suas relações de poder, as
suas exigências políticas, os seus conflitos legais e sociais, os seus desejos
e sonhos. Objectos políticos, necessariamente.
A arquitectura
é, antes de tudo, aquilo a que poderíamos chamar um regime de partilha e disposição
dos espaços e dos tempos, dos corpos e dos seus lugares, uma forma de recortar
e articular o comum e o próprio, o colectivo e o privado, um modo específico de
dividir, compartimentar e hierarquizar os espaços (sejam eles domésticos ou
urbanos), definido regimes de visibilidade (do que é visível, do que permanece
oculto) e regimes de uso (daquilo que é usável e daquilo que permanece
proibido).
A potência da
arquitectura está aí nesse ponto onde ela é capaz de encontrar a vida. Onde já
não se coloca apenas o problema da forma,
mas sim da forma de vida, e onde se
reconhece que toda a estética é já
uma estética da existência. E isso é uma
questão tanto política como artística. Ter como objecto a vida, não para a
capturar ou aprisionar, mas para a abrir a outras possibilidades de existência,
a outros modos de vida, traçando novas linhas de participação/encontro, e,
sobretudo, de resistência e fuga perante os discursos totalizantes do poder e
os seus modos de sociabilização dominantes.
A arquitectura
como uma prática de libertação de espaços, que promova práticas de emancipação
e subjectivação das comunidades, capazes de se oporem a esse espaço sem rostos e sem qualidades da logística
económica, e a todas essas promessas de felicidades brilhando crepuscularmente antes do desastre. E
cito, novamente, a Susana Caló: “A política faz-se e pratica-se nos espaços da
existência como uma luta pela vida. O direito ao espaço é o direito à
participação na invenção de um mundo” [12].
12. Susana Caló, “Devir
Autónomo e Imprevisto. Por novos espaços de liberdade”, in Dossier Devir menor, espaço, território e
emancipação social. Perspectivas a partir da Ibero-América. Revista Punkto
online. Outubro 2014.
8. Para concluir. Digamos que o que temos
tentado fazer, de modo tão imperfeito e incompleto, neste pequeno projecto que
dá pelo nome de Punkto, foi tentar orbitar em torno dessas práticas (do
pensamento, da escrita ou do fazer) que contra a catástrofe do tempo presente,
opõem uma geografia do dés-astre, esses
múltiplos movimentos fora de órbita, sempre um pouco à
margem, esgueirando-se, desarvorando-se, riscando, e arriscando, “propiciando a
abertura de um espaço”, como escrevia Herberto Hélder.
Práticas e
escritas que reclamam para si esse direito
à participação na invenção de um mundo. E, sobretudo, procurando já não uma
arquitectura que desenhe o mundo, mas
sim que desenhe com o mundo.
Nota da edição
Texto escrito
e apresentado por Pedro Levi Bismarck no Colóquio Internacional Da/UAL - Posições Publicadas / Published Positions,
que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, a 25 de Outubro 2014. Organização
Joaquim Moreno e Ricardo Carvalho. Contou com a presença de Diogo Seixas Lopes,
André Tavares, Andrés Jaques, Margarida Brito Alves, Rute Figueiredo, José
Manuel Pozo e Kersten Geers. Texto igualmente apresentado na sessão “Novos
Editores - As novas bases do Discurso”, do projecto de investigação “O lugar do
discurso”, decorreu na Sede da Ordem dos Arquitectos, em Lisboa, a 21 de Abril
2015. Organização: Paulo Tormenta Pinto e Ana Vaz Milheiro. Contou com a
presença de Pedro Baía, Alexandra Areia, Hugo Oliveira, Tiago Krusse.
Imagens
4. “Quintas-feiras Negras: ciclo de
conversas e imagens sobre arquitectura e destruição”, Novembro 2011, Porto.
4. Lançamento
do Número 3 “Nostalgia”, Matéria-prima, Porto, 1 de Junho 2013.
5. “Porto : Modo(s) de Usar”, Manifesto-em-acção na FBAUP e na
FAUP no contexto das Unneeded
Conversations 2012.