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“A arquitectura, em tempos a súmula mãe de
todas as artes, completada pela pintura e a escultura e portadora de
significância e significado, vê-se reduzida a um espectáculo supérfluo.”,
escreveu Peter Buchanan, na edição de
Janeiro de 2015 da Arquitectura Viva
intitulada “Expanded Icons”. Meses antes o Wall
Street Journal dava conta das palavras públicas, depreciativas, proferidas
pelo Presidente Chinês, Xi Jinping, sobre a “arquitectura excêntrica”. Ambas reflectem
uma mudança de atitude, um novo consenso, um zeitgeist hostil relativamente à arquitectura icónica. As
declarações contrastam abertamente com o entusiasmo com que durante décadas a
política, os media, o público geral e
a própria arquitectura trataram este subsegmento da produção arquitectónica. A
euforia e o frenesim que acompanharam o Guggenheim de Bilbau ou a Casa da
Música do Porto parecem agora distantes, quase irreais. Midas perdeu o seu
toque. Parece agora definitivamente afastada a ideia do ícone arquitectónico como fórmula mágica para a resolução de problemas
económicos, sociais, urbanísticos e forma de ultrapassar a própria crise da
prática arquitectónica.
As obras
arquitectónicas e operações urbanísticas, antes vistas como o resultado da
aliança entre o génio artístico individual do arquitecto, a visão política, a
audácia dos promotores imobiliários e as capacidades tecnológicas do computador
são agora vistas como caprichos artísticos egocêntricos, populismo pouco
ilustrado, ganância do lucro e ditadura informática. A solução universal
tornou-se num problema global. Mas como chegamos aqui? Para entender o trajecto
do ícone temos de recuar a 1972, ano em que Rem Koolhaas escreve “A Cidade do
Globo Cativo”.
Ascensão
e queda
“ [A Cidade do Globo
Cativo] é a capital do ego, onde a ciência, a arte, a poesia e os tipos de
loucura competem em condições ideais para inventar, destruir e restabelecer o
mundo da realidade fenoménica”. O ensaio descreve uma cidade surreal, de
infinita extensão, organizada por uma retícula que “ (...) define um
arquipélago de ‘cidades dentro de outras cidades” e um globo em posição
central. Três premissas imutáveis (retícula, quarteirão e embasamento) formam
um sistema dinâmico que depois comporta todo o género de desvios e excepções.
Os edifícios em cada quarteirão variam livremente em número, altura,
configuração, uso, etc., funcionando o globo como um silencioso regulador.
Koolhaas cristaliza nesta utopia a libertação do ícone.
Até então o
ícone vive sob o espartilho de um consenso social mínimo, tecido pelo
Estado-Providência. Num pós-guerra dominado por uma modernidade funcionalista,
a arquitectura icónica, como a Igreja de Ronchamp de Corbusier (1955) ou a
Filarmónica de Berlim de Scharoun (1963), surge como excepção sensual, expressiva
e humanista, ligada a funções agregadoras do tecido social como a religião e a
cultura. No entanto, esta paz e hierarquia de valores onde assentava o
exercício arquitectónico estavam desgastados. O declínio das meta-narrativas
(descrença em Deus, no progresso, na democracia, na liberdade e no valor
redentor da arte), o nascimento da contracultura, o concilio Vaticano II, a
pressão consumista e a resistência à mesma corroem os alicerces culturais onde
assentava o modernismo. Às 3 da tarde do dia 16 de Março de 1972, este morre em
Pruit-Igoe.
No ano seguinte,
a Era Pós-Moderna abre com o primeiro choque petrolífero, a primeira grande
crise capitalista desde da grande depressão, e assim como o eclodir da crise de
1929 coincide com a conclusão do Empire State Building e do Edifício Chrysler,
a crise de 1973 coincide com a inauguração de dois marcantes ícones, o World
Trade Centre e a Ópera de Sidney.
Em 1978,
Koolhaas retoma o seu ensaio de 1972, agora como “conclusão fictícia” do seu
livro Delirious New York. O universo
utópico do ensaio é reforçado e sistematizado ao torná-lo descendente directo
de uma realidade física concreta prévia, a Ilha de Manhattan. A arquitectura icónica
tinha encontrado a sua bíblia. O sucesso do livro advém da sintonia entre as
novas ideias/premissas arquitectónicas expressas e as novas ideias coevas
noutros campos. As teorias que Koolhaas desenvolve, captam e espelham o espírito
da época. Delirous New York,
apresenta a ordem capitalista da cidade como única, apriorística e natural. A
liberdade individual e criação deve ser levada aos limites. A regulação deve
ser estrita mas mínima. O equilíbrio do conjunto é dinâmico, perfeito e perpétuo.
Todas as partes estão subliminarmente unidas mantendo-se simultaneamente absolutamente
autónomas. O esforço individualista de cada parte reforça a rede invisível que
as une e da qual estas desconhecem a existência. O livro transporta para o
universo da arquitectura as teorias de equilíbrio permanente dos mercados
financeiros, do enfraquecimento do papel dos reguladores, do capitalismo
auto-regulado, do individualismo extremo, dos sistemas em rede, da internet e
dos ecossistemas. O globo no centro da cidade é o computador.
Em 1979 dá-se o
segundo choque petrolífero, Margaret Tatcher vence as eleições em Inglaterra e
um ano depois Ronald Reagan é eleito presidente. O capitalismo ganha novo e
revigorado folego. Em 1989 cai o muro de Berlin e em 1991 colapsa a URSS. O
capitalismo havia triunfado por KO.
Uma nova
arquitectura icónica transnacional conquista paulatinamente o planeta. Os anos noventa
são os anos do encantamento. O ícone arquitectónico contemporâneo passa a ser o
carimbo no passaporte para cidade global. Koolhaas cavalga a onda optimista e escreve
dois influentes ensaios: “Grandeza, ou o problema do grande” e “ A cidade
genérica”. 1997 é o ano da crise Asiática
mas é também o ano de inauguração de dois ícones: as Torres Petronas na Malásia
e o Museu Guggenheim de Bilbau. Este último torna-se instantaneamente num dos
mais reconhecidos edifícios do mundo. A popularidade e sucesso do museu
restabelece a ligação entre a arquitectura e o grande público. O efeito-Bilbau
torna-se num case-study e entra na gíria
do debate arquitectónico, económico e político. O ícone arquitectónico passa a
ser visto como fórmula para a redinamização e transformação de cidades. A
arquitectura passa a peça central da máquina capitalista e os arquitectos
passam ao estatuto de superestrelas, verdadeiros heróis Randenianos.
Em 2001, dá-se o atentado às Torres Gémeas, o
rebentamento da bolha das dot-com e o
escândalo da Enron. O movimento de globalização acelera-se. O influxo de
capital cresce exponencialmente alimentando uma enorme bolha imobiliária. À
medida que prolifera quantitativa e geograficamente, a arquitectura icónica
torna-se mais excessiva e formalista.
Koolhaas, no
entanto, denota os primeiros sinais de cansaço da audiência global em relação à
arquitectura icónica que ele próprio ajudou a criar. No ensaio “Espaço-Lixo”
escreve: “Embora cada uma das partes (do espaço-lixo) seja o resultado de
inventos brilhantes, lucidamente planeados pela inteligência e potenciados por
computação infinita, a sua soma augura o fim do iluminismo, a sua ressurreição
como uma farsa, um purgatório desvalorizado...”. Mercantilização,
des-hierarquização, estandardização, infantilização, mediatização e rapidez,
transformam a utopia de Delirious New
York no pesadelo de “Espaço-Lixo”. Em 2007, Koolhaas declara publicamente
“O ícone está morto”.
Pós-ícone
Apesar do
descrédito, o ícone arquitectónico e a arquitectura icónica continuam a exercer
um enorme poder, quer de fascínio quer de repulsa – tantos são os que evitam
evocá-los como aqueles que os tentam ressuscitar. Presentemente, a prática da
arquitectura icónica diverge e diversifica-se depois de um período de relativa
uniformidade, conseguindo-se distinguir claramente dois tipos: um representando
uma ruptura formal e outro uma ruptura real.
O primeiro é o
dos “Anti-Ícones”, edifícios colossais que afirmam o seu valor imagético
contrariando as habituais expectativas sobre a arquitectura icónica. Assentam
numa geometria de sólidos platónicos puros usando como valores a repetição e a
dimensão. O minimalismo substitui o expressionismo modernista, como inspiração
histórica. A curto prazo esta promete ser a corrente predominante pois
essencialmente muda o invólucro, mantendo intactas todas as premissas que
nortearam a arquitectura icónica durante últimos 30 anos.
O segundo, a que
chamo “Ícones Divergentes”, assenta numa prática arquitectónica diversificada e
heterodoxa. Não detêm qualquer espécie de gramatica formal comum. É mutante,
experimental e esquiva a classificações definitivas. Assim cada exemplo
funciona autonomamente. O seu sucesso é particular, alicerçado numa cúmplice e
indestrinçável relação com o sítio.
Ícones
Divergentes
Ícone Aberto
1111 Lincoln
Road, Herzog & de Meuron, Estados Unidos.
Este edifício
consiste num esqueleto estrutural que serve a função principal de parque de
estacionamento enquanto simultaneamente alberga lojas, galerias, residências e
um restaurante. O Icónico deriva da superação sensata das limitações tipológicas
e expressivas da função primária. Uma actividade mecânica, rotineira e
aborrecida torna-se numa experiência surpreendente. Servindo uma dinâmica rua
de Miami, o edifício funciona como mediação entre visitante e a cidade. A dupla
suíça aproveita o clima e inspira-se no modernismo tropical ao mesmo tempo que
reinterpreta algumas das lições de Koolhaas. O espaço apesar de adequado a uma
função específica está preparado para receber todo um outro tipo actividades
temporárias ou permanentes. O edifício posiciona-se como uma obra aberta cuja
vida mimetiza a da cidade.
Ícone Vazio
Museu de Arte de
Teshima, de Ryue Nishizawa, Japão.
Construído numa
pequena ilha do arquipélago japonês, o museu consiste em duas cúpulas
irregulares de betão de apenas 25cm de espessura. A cúpula menor alberga um
escritório e uma loja, enquanto a principal alberga apenas uma instalação de
arte inspirada no desenho arquitectónico. O ruído normalmente provocado pelos
elementos construtivos, como caixilharias, foi reduzido virtualmente a zero,
aumentando a naturalidade e tornando o espaço permeável aos elementos (chuva,
vento, sol, etc.). As duas cúpulas, semelhantes a etéreas gotas de água,
adaptam-se discretamente à morfologia do terreno, esbatendo as fronteiras entre
o natural e o construído. A qualidade icónica deriva desta combinação entre um
desenho e programa minimalista e uma inserção silenciosa num território remoto.
O difícil acesso torna o percurso de chegada parte da experiência
arquitectónica, uma quase peregrinação, um preâmbulo necessário para a
meditação e a contemplação dum “quase vazio” uma vez chegados.
Ícone Ruína
New York High Line, James Corner Field Operations com
Diller Scofidio + Renfro, Estados Unidos.
O projecto
consiste na transformação da antiga linha de comboio elevada num espaço urbano
pedonal novo. Destinados a serem desmantelados e demolidos, os viadutos
ferroviários albergam agora um passeio urbano verde a uma cota superior à da
rua, um jardim corredor aéreo que serpenteia os arranha-céus da cidade. A
qualidade icónica assenta no estabelecimento de relações novas e surpreendentes
entre os edifícios e as pessoas. Esta criação de um espaço público
verdadeiramente inovador não provoca, no entanto, estranheza, pois parte da
memória imanente da cidade. Viadutos, antes percorridos velozmente por
máquinas, são agora percorridos lentamente pelas pessoas, numa lógica romântica
de ruína reinterpretada.
Ícone Móvel
Museu Nómada,
Shigeru Ban
Instalado
primeiro no porto de Nova York e posteriormente no de Santa Mónica, este museu
é transportado por barco e montado in
situ. Os seus elementos construtivos são umas massivas colunas de cartão
com 75cm de diâmetro (usadas na cofragem de pilares) e 148 contentores reutilizados.
Esta obra afirma
a sua iconicidade através da sua relação peculiar com o espaço e com o tempo. Ban
aproxima a arquitectura icónica do campo da arte, da instalação e da
performance. O ícone deixa de ter assim um referencial geográfico fixo e passa
a ter um tempo de permanência limitado. No abstracto o seu espaço é todo o
mundo e o seu tempo é o da memória. Além da itinerância e da temporalidade, o
carácter icónico da estrutura é reforçado por um programa cultural ligeiro, bem
como pela expressividade dos materiais e componentes reciclados usados. O espaço
interior revela serenidade e imponência, combinando astutamente a brutalidade
da estética industrial com a beleza calma da composição clássica.
Epílogo
A ascensão e
queda do ícone é a ascensão e queda dos nossos sonhos e utopias de liberdade. O
seu epílogo é o mesmo que o nosso. Desilusão e desolação. Sobreexposição
mediática, relação umbilical com a especulação imobiliária e financeira,
declínio das meta-narrativas e ascensão do materialismo monetário a uma
condição deífica de ubiquidade, omnipresença, omnisapiência e sancionador último
de validade. As razões da falência da arquitectura icónica são as mesmas da
falência da democracia. Reinventar o ícone é assim reinventar a utopia, é
reinventar a esperança, é reinventar um novo lugar para a arquitectura e o
arquitecto, é urgente.
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Nota da edição
Este artigo é
uma versão ampliada e revista de um artigo com o mesmo título publicado na ARQA
revista de Arquitectura e Arte nº118 Maio/Junho 2015.
Imagens
Imagem de capa: Tarot
XIII, Rui Gilman.
1. Madelon Vrisendorp, The City of the Captive Globe, 1977.
2. Madelon Vrisendorp, Capa, Archithese, Zufall, 6. 2010.
3. 1111 Lincoln
Road, Herzog & de Meuron, Estados Unidos.
4. Museu de
Arte de Teshima, de Ryue Nishizawa, Japão.
5. New York High Line, James Corner Field Operations com Diller
Scofidio + Renfro, Estados Unidos.
6. Museu
Nómada, Shigeru Ban.
Ficha Técnica
Data de
publicação: 01.10.2015
Etiqueta:
Arquitectura \ Espaços
Rui Gilman
Porto, 1982. Licenciado em Arquitectura pela Escola
Superior Artística do Porto, frequentou o Curso de Estudos Avançados em
Património na FAUP, criador e locutor do programa de arquitectura
"cidadesINdiziveis" na Radio Manobras.