≡
Caderno \ Devir
Menor
Vivemos com uma noção de território herdada
da modernidade incompleta e do seu legado de conceitos puros, muitas vezes
praticamente intangíveis, atravessando os séculos. É o uso do território, e não
o território em si mesmo, que constitui o objecto da análise social. Trata-se
de uma forma impura, de um híbrido, de uma noção que, por conseguinte, requer
uma revisão histórica constante. O que tem de permanente é o facto de ser o
nosso quadro de vida. O seu entendimento é, pois, fundamental para afastarmos o
risco da alienação, o risco da perda de sentido da existência individual ou
colectiva, o risco da renúncia ao futuro.
Milton Santos, O Retorno do Território
Desde tempos passados que a produção de cartografias foi
um dos principais instrumentos que o poder dominante utilizou para a
apropriação utilitária dos territórios — o que inclui não só uma forma de
ordenamento territorial, mas também a demarcação de fronteiras para assinalar
as novas ocupações e planificar as estratégias de invasão, de saque e de
apropriação do comum. Desta maneira, os mapeamentos que habitualmente circulam
são o resultado do olhar que o poder dominante recria sobre o território,
produzindo representações hegemónicas funcionais nos termos do desenvolvimento
do modelo capitalista, descodificando o território de maneira racional para
enumerar e caracterizar os recursos naturais, as suas características
populacionais e o tipo de produção mais eficaz para transformar em capital a
força de trabalho e os recursos. Este olhar científico sobre o território, os
bens comuns, e aqueles que o habitamos é completado através de outras técnicas
que perscrutam o corpo social, como a videovigilância, as técnicas biométricas
de identificação e as fórmulas estatísticas que interpretam situações e
oferecem a informação que permite a execução de mecanismos biopolíticos
orientados para organizar, dominar e disciplinar os que habitam um território.
Chamamos “mapeamento colectivo” à apropriação da técnica
de mapeamento a desenvolver em oficinas com a participação de estudantes,
organizações de moradores, movimentos sociais, artistas, comunicadores, e de
qualquer um de nós que se senta interpelado a pensar colectivamente o seu
território. Em muitos lugares da nossa América Latina, a esta técnica chama-se
“mapeamento participativo”, denominação que não nos satisfaz completamente,
porque consideramos que o “participativo” implica a reunião a qualquer coisa de
pré-existente, ao passo que os mapeamentos colectivos se engendram durante o
espaço de criação cooperativa e são representações originais e particulares.
Outros conceitos associados a esta modalidade de trabalho são: cartografia
social / crítica / contra-cartografia / descartografia, etc. — denominações,
todas elas, que têm a sua justificação própria e que apresentam diferenças
válidas e interessantes.
Desde o ano de 2008, organizamos oficinas de mapeamento
colectivo (talleres de mapeo colectivo,
TMC) juntamente com organizações políticas, movimentos sociais e colectivos
culturais, impulsionando um trabalho cooperativo em mapas e planos
cartográficos a partir da concepção e da libertação de uma série de ferramentas
que através da socialização de saberes não especializados e de experiências
quotidianas dos participantes permitem compartilhar conhecimentos em vista da
viabilização crítica das problemáticas mais prementes do território,
identificando responsáveis, conexões e consequências. Este olhar amplia-se no
processo de rememoração e sinalização de experiências e espaços de organização
e de transformação, visando tecer redes de solidariedades e de afinidades. A
partir do trabalho colectivo é construído um panorama complexo sobre o
território, que permite distinguir prioridades e recursos quando chega o
momento de se projectarem práticas transformadoras que em seguida adoptam
diversos cursos de acção.
Os TMC potenciam a elaboração de narrativas colectivas
críticas nas quais a reflexão a partir de um mapa permite articular processos
de territorialização. Os mapas funcionam como ferramentas que geram instâncias
de trabalho colectivo e devem permitir a elaboração articulada de programas e
narrativas que contestam e impugnam os estabelecidos a partir de diversas
instâncias hegemónicas (não só políticas, sociais e institucionais, mas também
as correspondentes à opinião pública e aos meios de comunicação de massa, bem
como as associadas ao nível das crenças, decretos e formas do senso comum).
Assim, o mapeamento colectivo é um modo de elaboração e
de criação que subverte o lugar de enunciação desafiando as narrativas
dominantes sobre os territórios para transformar a invisibilidade de saberes,
situações e comunidades em narrativas colectivas críticas. Quando falamos de
território, estamos a aludir não só ao espaço que nos serve de suporte, mas
também ao corpo social e às subjectividades rebeldes. Um dos desafios de
trabalhar com mapas é a possibilidade de abrir um espaço de discussão e de
criação que não se feche sobre si mesmo, mas que se posicione como um ponto de
partida disponível para ser retomado por outros, um dispositivo apropriado que
construa conhecimento, potenciando a organização e a elaboração de alternativas
emancipatórias.
Não há requisitos nem condições exigidos para a
participação nas oficinas, porque todos temos a capacidade de nos elevarmos acima do nosso território,
operando um sobrevoo que, a partir da
memória, nos permita reflectir e sinalizar diversas temáticas. Deste modo, a
criação crítica activa-se a partir da conversa e da narrativa de experiências,
conhecimentos e pareceres, potenciando a escuta, aguçando os sentidos e focando
o trabalho sobre uma plataforma comum. Nas oficinas aprofundam-se as diferentes
formas de compreender e sinalizar o espaço, pondo à disposição dos
participantes vários tipos de linguagem — como símbolos, gráficos e ícones –
que estimulam a criação de colagens, frases, desenhos, instruções, ao mesmo
tempo que tudo isso favorece o desenvolvimento de modalidades de produção
várias, que não obstruem a diversidade de olhares culturais, sociais e
políticos dos participantes na oficina, mas que antes permitem a construção de
um horizonte colectivo a partir do qual pensar e agir visando o bem comum.
Para o mapeamento colectivo poderão ser retomadas
representações hegemónicas (como um mapa cadastral com fronteiras
pré-desenhadas), uma vez que será depois subvertidas no processo de
socialização dos saberes, potenciando a visibilização dos diversos olhares que
operam sobre o espaço. Se se dispuser de tempo para tanto, os mapas poderão
também ser desenhados à mão jogando com as fronteiras e as formas; mas é
importante esclarecer que o retomar de um mapa oficial é uma questão chave, por
exemplo, em situações de reterritorialização empreendidas com comunidades de
origem, nas quais a necessidade de sinalizar com exactidão a partir das
fronteiras oficiais se torna premente no momento de usar essa informação como
parte de uma exigência de reconhecimento territorial apresentada ao Estado
nacional (o caso arquetípico é o processo que arrancou no começo dos anos 90 no
Brasil).
As oficinas integram uma instância de ‘pôr em comum’ que
se torna fundamental no momento de expor narrativas de grupo, de relevar
diferenças e de constituir horizontes de abordagem e de compreensão. Todos
tomam a palavra num processo de socialização e de identificação do comum em
vista de um agir articulado. Assim, os TMC configuram-se como espaços de
formação de comunidades temporais que permitem a elaboração de estratégias e de
práticas orientadas para o conhecimento colectivo e a transformação social. As
oficinas, tanto no seu processo de construção como no que se refere aos
resultados, funcionam em primeira instância como dinamizadores lúdicos que
depois se autonomizam a partir da autogestão de desejos e de necessidades dos
grupos, a fim de recriarem um protagonismo de desafio que se visibiliza na
heterogeneidade das vozes colectivas participantes.
O mapeamento colectivo é uma ferramenta lúdico-política e
não está isento de ambiguidades. É preciso ter em conta que o conhecimento
crítico que surge das oficinas, se cair em mãos erradas, pode ser utilizado
para vulnerabilizar os direitos dos participantes. Por isso, se se decidir
construir uma ferramenta comunicacional a partir do mapeamento e dar-lhe
difusão pública, a informação incluída deverá ser objecto de um consenso
prévio. Os mapas são criados a partir da multiplicidade dos participantes e
devem adquirir a forma e os objectivos dos seus criadores, circulando a partir
das necessidades, das narrativas e das inquietações das comunidades,
organizações e movimentos participantes.
Outro aspecto a considerar é que os mapas mostram um
instantâneo do momento em que se realizaram e não repõem na sua completude uma
realidade sempre problemática e complexa, mas transmitem antes uma determinada
concepção colectiva sobre um território sempre dinâmico e em permanente
mudança, onde as fronteiras (reais e simbólicas) adquirem um carácter
relacional e fluido e são continuamente alteradas pela activação de corpos e
subjectividades. Por isso, a elaboração de mapas deve fazer parte de um
processo maior, constituir uma estratégia mais num processo de organização
colectiva, ser um ‘meio para’ a reflexão, a socialização de saberes e de
práticas, o impulso à participação colectiva, o trabalho com subjectividades
diversas, a disputa em espaços hegemónicos, entre outras possibilidades.
Em 2011, integrámos nos TMC o traçado de uma série de
suportes gráficos que nos permitiram alargar o olhar a outros estratos que não
correspondem exclusivamente ao espacial-geográfico. Chamamos-lhes “dispositivos
múltiplos” (DM) porque consistem em mecanismos de reflexão e criação colectivas
cuja concepção e maquetagem variam, e que vamos adaptando, modificando e
aperfeiçoando de acordo com as diversas modalidades do território e as
preocupações de trabalho dos participantes na oficina. Alguns deles são:
— Linhas de tempo e rugosidades: permitem a identificação e o relevar de factos significativos, personagens chave, políticas públicas e sublevações; através da utilização de símbolos, alegorias e signos que ilustram e acompanham as precisões elucidativas. As rugosidades são trabalhadas na sequência de um processo de construção de mapas críticos e de linhas de tempo, através de uma transparência que permite relevar colectivamente vínculos entre umas e outros, visibilizando conjunções, transformações e embates entre planos temporais (históricos) e espaciais (geográficos).
— Linhas de tempo e rugosidades: permitem a identificação e o relevar de factos significativos, personagens chave, políticas públicas e sublevações; através da utilização de símbolos, alegorias e signos que ilustram e acompanham as precisões elucidativas. As rugosidades são trabalhadas na sequência de um processo de construção de mapas críticos e de linhas de tempo, através de uma transparência que permite relevar colectivamente vínculos entre umas e outros, visibilizando conjunções, transformações e embates entre planos temporais (históricos) e espaciais (geográficos).
— Representações discursivas: construção de planos
hegemónicos associados ao discurso dos meios de comunicação de massa, da
publicidade e de ‘o que se diz na rua’, quer dizer, o nível do senso comum que
impregna o social e se exprime nessas frases e comentários naturalizados.
— Constelações: colocação de transparentes sobre as
cartografias ou os dispositivos múltiplos para assinalar as resistências e os
processos de transformação e de mudança através da utilização de cartões
coloridos com diversas formas. O que potencia a criação de ‘imaginários’ onde
adquirem protagonismo as diversas subjectividades permitindo pensar os símbolos
e os protagonistas da nossa história assumidos pelas identidades rebeldes.
— Deriva urbana com instruções: realização de percursos
em pequenos grupos e intervenção durante o trajecto: Mapeamento em movimento
(marcando lugares, situações, experiências, momentos, etc., segundo um eixo
temático) e fotografias panorâmicas (capturando paisagens urbanas que
complexifiquem e articulem diversas problemáticas associadas).
— A cidade e os sentidos: intervenção individual sobre um
mapa, identificando as zonas ou os lugares de trânsito quotidiano pela cidade e
pondo em jogo a memória afectiva que afina os sentidos de modo a intervir
através de ícones no que se escuta, sente, cheira, vivencia ou percebe;
identificando lugares, instituições, momentos; o que de significativo dá prazer
ou causa mal-estar.
— Paisagens reveladoras: criação de uma colagem
fotográfica em vista da construção de panoramas urbanos que ponham em evidência
uma variedade de problemáticas complexas e associadas. Intervenção posterior
sobre a imagem através da inscrição de detalhes que situam, ampliam ou
referenciam a paisagem detectando responsáveis, causas, a situação actual, etc.
— Corpo / Disciplina, imposição e controle: sinalização
operada sobre figuras humanas visando identificar o modelo e o impacto dos
discursos, situação e instituições hegemónicas; considerando os dispositivos
urbanos de controle (câmaras, radares), as instituições disciplinares
(trabalho, hospital, escola), a violência (polícia, segurança privada), as
imposições sociais, as frases publicitárias, as enfermidades físicas, a
incorporação de novas tecnologias como próteses de identidade ou de
personalidade, etc.
A utilização de DM facilita e potencia o exercício de revelação colectiva focado sobre diversas temáticas e problemáticas referidas a um território particular. A configuração destes dispositivos surge muitas vezes do improviso que se promove no espaço da oficina e que activa a experimentação de recursos a partir das particularidades subjectivas dos participantes. Estes mecanismos geram um sistema de socialização da informação e das experiências sustentado por uma comunicação dialógica que estimula a participação e põe em cena um olhar crítico e alerta sobre o acontecer naturalizado.
O mapa não é o território
Alfred Korzybsky (aristocrata polaco e fundador da
semântica geral) cunhou a frase que figura como título deste texto a partir da
sua experiência como oficial na Primeira Grande Guerra, na ocasião em que
dirigiu uma ofensiva desastrosa durante a qual os soldados que comandava
acabaram por cair numa vala que não aparecia no mapa. Gregory Bateson
(antropólogo e linguista norte-americano) completou esta frase com a precisão
“e o nome não é a coisa nomeada”. O que os dois autores tentavam exprimir é a
impossibilidade de objectivar as dimensões significativas e afectivas dos
espaços e das representações linguísticas.
O vínculo com o território consolida-se a partir de
processos de interpretação, de sensação e de experiências próprias. Os mapas
não são o território porque lhes escapa a subjectividade dos processos
territoriais, as representações simbólicas e os imaginários que se lhes
referem, e a mutabilidade permanente e a mudança a que estão expostos. Somos
nós, as pessoas, que realmente criamos e transformamos os territórios, e não há
uma mimese entre a materialidade espacial dos mapas e a percepção imaginária
sobre o território, porque este é uma construção colectiva, moldado a partir
das formas subjectivas do habitar, do transitar, do perceber, do criar e do
transformar.
Entendemos que as sociedades actuais são marcadas por uma
precarização da existência que penetra a vida em múltiplos aspectos:
atravessando a configuração urbana como um farol de vigilância, quebrando os
laços sociais através da retórica do medo, minando os direitos sociais mais
básicos nas instituições públicas, tornando no imaginário colectivo carne a
violência simbólica, degradando a experiência do comum e obturando as formas
perceptivas no abismo da ansiedade. É por isso que através das oficinas de
mapeamento colectivo e de dispositivos múltiplos procuramos recriar
colectivamente panoramas complexos que aprofundem os olhares críticos e potenciem
subjectividades alertadas e emancipatórias, imprescindíveis para a protecção
dos bens comuns contra o saque e a depredação, para a luta contra os processos
de colonização e privatização do público, e para a constituição de novos
mundos.
Sabemos que partimos de um limite ao trabalhar com mapas,
uma vez que estamos a tentar recortar um olhar sobre realidades que não são
estáticas, mas se encontram em permanente mudança. É por isso que adicionamos
aos planos cartográficos a concepção de dispositivos múltiplos que sinalizem
fluxos, processos, conexões, planos subjectivos, plataformas corporais, etc.,
incluindo modos de expressão e de representação populares, simbólicos, e de
forte presença imaginativa. Estas ferramentas não produzem transformações por
si mesmas, mas articulam-se num processo de organização e de prática colectiva
complexo e profundo que é potenciado a partir do trabalho cooperativo nestes
suportes gráficos.
Trabalhamos a partir do território para potenciar os
laços de solidariedade e de acção comum. Às experiências das oficinas somam-se
as derivas impensadas adquiridas pelos recursos, metodologias e dinâmicas
socializados, que são retomados pelos participantes promovendo formas de
autogestão em espaços próprios. As oficinas estimulam a criação de novas
territorialidades, recriam espaços vividos críticos, desvelando sentidos
impostos e paisagens hegemónicas, que estimulam a intervenção e o protagonismo
na mudança. Assim, os processos de territorialização intervêm no espaço e no
tempo, alteram as imagens naturalizadas, contestam a conformidade da
interiorização das narrativas hegemónicas, e trabalham a partir do passado como
forma de potenciar uma memória colectiva que recuse o discurso oficial.
≡
Nota da edição
Este artigo é
parte do Dossier «Devir menor» coordenado por Susana Caló e
publicado na íntegra no Punkto. Foi publicado originalmente na Revista
Lugar Comum, 41, Brasil, Universidade
Nômade. Tendo em conta que o autor do texto é Brasileiro, optou-se por deixar o
texto na sua versão original de Português do Brasil.
Tradução
Traduzido
do espanhol por Miguel Serras Pereira.
Imagens
Iconoclasistas
Iconoclasistas
É um duo formado em 2006 por Pablo Ares (artista,
animador de filme, cartoonista e designer gráfico) e Julia Risler (professora e
investigadora da Universidade de Buenos Aires/UBA). Seus trabalhos combinam o
trabalho de arte gráfica, oficinas criativas e pesquisa colaborativa. Todas as
produções são difundidas na web por meio de licenças creative commons, para promover a socialização e estimular a sua
apropriação e uso de derivado. Publicaram recursos gráficos e visuais que
abordam vários problemas sociais, que foram impressos e distribuídos em jornais
e revista de todo o mundo. Desde o ano de 2008, começaram a realizar oficinas
de mapeamento colectivo com o objectivo de potenciar a comunicação, o tecido de
solidariedade e de redes de afinidade, e impulsionar práticas colaborativas de
resistência e transformação. A sua prática estende-se através de uma rede
dinâmica de afinidade e solidariedade construída a partir da partilha e
realização de oficinas na América Latina e na Europa. Neste enredo político e
emocional foram surgindo exposições itinerantes, novos recursos lúdicos e a
participação em encontros com organizações culturais e movimentos sociais. Em
2013 publicaram o livro Manual de
mapeamento colectivo. Recursos cartográficos críticos para processos
territoriais de criação colaborativa, onde sistematizaram metodologias,
recursos e dinâmicas para a organização de workshops. www.iconoclasistas.net