Alfredo Matos Ferreira, artista de ‘sexto sentido’ ▬ Manuel Mendes



1.
Num texto de abertura para um livro que organizou “com a curiosidade de revisitar o que tinha produzido e a necessidade de preencher o vazio que a saída da Faculdade e a falta de novos projectos provocavam”, Alfredo Matos Ferreira, arquitecto, afirmava: “Sempre considerei o Projecto um meio normal e natural de, dentro das competências próprias do Arquitecto, poder propor e por vezes construir espaços que respondessem com qualidade às necessidades dos vários programas, e isto tão naturalmente como qualquer outra profissão responde às solicitações próprias da sua área de conhecimento”. E para esse Projecto, “na atenção que prestava a toda a envolvente física e cultural onde ia intervir” (AMF, 2013), colhia referências que influenciavam o seu processo, cultivando um sentimento de pertença ou uma promessa de futuro de um nós; referências pelas quais activou uma condição, um compromisso, uma persistência para (re)trabalhar o comum que é preciso fazer existir.
Alfredo Matos Ferreira faleceu sábado, dia 27 de Junho, no Porto, na sua residência na rua Arquitecto Marques da Silva. Foi aí, para a parcela do ângulo norte com a rua Barbosa du Bocage que, por encomenda incentivadora e desafiante do tio do Funchal, em 1958, projectou, ainda enquanto estudante, no contexto afectuoso e companheiro da “sala 35” e, depois, dirigiu e administrou a construção de um edifício marcante na paisagem arquitectónica portuense – o edifício da Friagem. “Friagem”, referência ao topónimo antigo daquela rua que sempre convocava para nomear o edifício ou o escritório, a casa ou o ponto de encontro, talvez para valorizar a condição de lugar de que o edifício é expressão e realização, silenciando-o na sua materialidade para estender-alargar a espessura da continuidade na orientação-construção de uma nova circunstância.
Nesse projecto de livro em que reuniu o conjunto de projectos que foi elaborando ao longo de mais de cinquenta anos, em grande parte construídos, Alfredo Matos Ferreira, autor de obras de referência no processo da arquitectura portuguesa do século XX, sublinhava que sempre pensou “o Projecto como uma tarefa em que intervêm várias disciplinas, por isso, difícil de ser considerado como obra de um único autor”. De facto
_“durante toda a minha carreira de arquitecto tive em conta, na execução dos projectos, entradas muito variadas, que iam desde a compatibilização de uma ideia inicial apenas esquiçada, com todas as imposições estruturais ou de sistemas que os projectistas das várias especialidades propunham…
_considerei sempre essa interacção benéfica para o processo do projecto e em consequência como factor de melhoria da sua qualidade”…
_nas aulas de Projecto, na crítica aos trabalhos dos alunos, colhi, também, muitas vezes, sugestões que influenciaram a execução dos projectos que tinha em curso.” (AMF)
2.
Alfredo Matos Ferreira nasceu em Lisboa, em 1928, filho de pai médico e mãe pintora. As suas raízes, por motivos familiares, estão profundamente mergulhadas em Trás-os-Montes, circunstância que decididamente o orienta como pessoa, e lhe marca emoções e afectos, convicções e valores de vida. Moncorvo e Barca d’Alva, particularmente Urros, terra e povo, paisagem e casa, pessoas e trabalho, ofícios e artistas, os quais evocava amiúde e dos quais, marcado pela história de vida, falava com as palavras e os gestos, os sons e as pausas do habitante enraizado e situado.
Em 1948, matriculou-se na Escola de Belas Artes do Porto, concluindo o Curso Superior de Arquitectura em 1959. No centro do Porto, na praça da Liberdade, em 1949, seis caloiros, Alberto Neves, Alfre­do Matos Ferreira, Álvaro Siza, António Menéres, Joaquim Sampaio e Vasco Macieira Mendes, mais tarde Luís Botelho Dias, acabados de entrar nas lides da Arquitectura e na iniciação ao Projecto, assentavam na sala 35, num andar do edifício Imperial: “um espaço comum. Um ambiente de troca de informação, de crítica aos trabalhos escolares, de entreajuda, primeiro marco, primeiro con­tacto com um mundo novo… Este ambiente inicial de crítica e entreajuda prolongou-se por vários anos, mesmo depois de terminado o curso, nos projectos que íamos elaborando… Paralelamente realizávamos pequenas viagens de estudo” (AMF, 2012). Mas “a sala 35 e uma outra alugada no mesmo andar tinham-se tornado pequenas”, pelo que em 1968 e por mais alguns anos, a “sala” deu lugar a seis numa casa oitocentista na rua Duque de Terceira.
Esta experiência de partilha formativa e exercício comum na descoberta da prática da arquitectura é bem notória no percurso profissional de Alfredo Matos Ferreira. Ao contrário de alguns dos seus companheiros de sala – Alberto Neves, Álvaro Siza, António Menéres, Joaquim Sampaio que colaboraram por períodos determinados no escritório de Fernando Távora –, Alfredo Matos Ferreira evoluiu autonomamente, inicialmente apoiado em pequenos investimentos de um tio para o qual projectou vários edifícios residenciais, e à sombra do qual deu alguns passos na constituição de uma equipa constituída por artistas dos vários ofícios da construção civil. Assim mesmo, no curso da sua existência, a “sala 35” foi espaço útil para variadíssimas parcerias de circunstância – Joaquim Sampaio, António Menéres, Luís Botelho Dias – na resposta a oportunidades de trabalho, como por exemplo o projecto para uma casa na Parede (1964), realizado com Álvaro Siza, não construído apesar de elaborados três estudos.
Alfredo Matos Ferreira nunca chegou a concluir o trabalho para o Concurso para Obtenção do Diploma de Arquitecto – “Reconversão urbana e agrícola para a aldeia de Urros” – que alinhara em 1961, optando por sujeitar, em 1973, o seu Curriculum Vitae a procedimento burocrático, para a obtenção administrativa do documento de curso, por questão de oportunidade e necessidade profissionais.
Entre 1958 e 2008, exerceu profissionalmente como colaborador de arquitectos consagrados, e/ou em escritório próprio, ora individualmente ora em associações ocasionais, nomeadamente nos programas da habitação individual, grupal ou multifamiliar, e no âmbito dos equipamentos agrícolas e de ensino. Ainda estudante, no início da frequência escolar trabalhou por curto período com o tio Mário Abreu, arquitecto com larga expressão profissional no Porto. Entre 1970 e 1972 esteve ligado ao escritório de Arménio Losa, desenvolvendo entre vários trabalhos o projecto para uma central de camionagem em Vila Nova de Famalicão.
Em 1972, estabeleceu sociedade profissional com Fernando Távora, por iniciativa deste. Num espaço de dez anos, “aí se consolidou um grande apreço e se foi gerando uma mútua amizade. Foram, sem dúvida, os anos mais interessantes da minha longa carreira, desde o início, ainda como colaborador, até à parceria em quase igualdade. Considero esta época um momento privilegiado, um momento de troca de experiências e de grande concordância no modo de abordar os problemas da arquitectura e do urbanismo”: entre outros, o “Convento de Santa Marinha da Costa” (1975) e o “Plano Geral de Urbanização de Guimarães” (1979-1982), os de maior complexidade. O trabalho da Costa permitiu-lhe “acompanhar as pesquisas para reconstruir a sua evolução através dos séculos até aos variadíssimos problemas construtivos que vão da consolidação das velhas paredes de granito e sua articulação com processos de construção actuais”. O trabalho do Plano “foi sem dúvida trabalho dos mais marcantes… pela novidade, pela sua dimensão… As viagens iniciais de reconhecimento do território, o percorrer de ruas e praças para conhecer a sua especificidade, o subir à Penha e daí melhor compreender a topografia e as unidades espaciais, a massa construída, a articulação dos espaços de circulação e de estar, enfim, equacionar desde o início as múltiplas possibilidades de organização do espaço com a realidade existente”. No rescaldo do 25 de Abril, a escassez de trabalhos e a natural ascensão no escritório do filho de Távora que concluía o curso de arquitectura, fizeram-lhe propor a saída em 1982. Mas “A grande amizade construída durante esses anos perdurou nos mútuos contactos que com frequência nos levavam em conjunto a locais onde estávamos individualmente a projectar” (AMF, 2012).
Em 1976, por convite, Alfredo Matos Ferreira iniciou a leccionação de Projecto no Curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes, actividade que, acompanhando a integração do curso na Universidade do Porto, se consolidou na Faculdade de Arquitectura, até 1998. E foi no contexto de prestação de provas académicas que elaborou o trabalho “Aspectos da Organização do Espaço Português” (1986), um trabalho de referência no estudo da forma e estrutura urbana de cidades do território português. Operando “essencialmente sobre material gráfico na convicção da importância do desenho como síntese de forma”, ali procedeu à caracterização de um conjunto de implantações urbanas litorais (Viana do Castelo, Aveiro, Santarém, Setúbal, Lagos) e interiores (Bragança, Guarda, Portalegre, Évora, Faro), “numa perspectiva de articulação com o espaço natural, características morfológicas, evolução da forma, modos de construir”. Nesse trabalho o cidadão-arquitecto exprimia a sua desconfiança na capacidade dos métodos correntes de planeamento para controlar as transformações do território. O trabalho reunia e comentava dados sobre território português, representava e recolhia informação sobre as suas transformações. Matérias a que, por origem, formação, conhecimento, Matos Ferreira se mostrou persistentemente sensível e atento, tanto pelo seu envolvimento empreendedor e realizador na gestão de terras e património familiar, como na tentativa, sem continuidade, para uma reconversão urbana e agrícola de Urros quando à data já se verificava a insensibilidade política para lidar com inevitáveis alterações do habitat e formas de vida no interior do país. Consciência activa a que, nos anos oitenta, a elaboração do plano de urbanização para Guimarães trouxe outra dimensão e actualização: “Assiste-se nos meios rurais à substituição progressiva de uma cultura… Simultaneamente, vão desaparecendo as referências eruditas credíveis… Nos meios urbanos, a crescente complexidade dos problemas, a sectorização das decisões sempre apoiadas em perspectivas não globais… os diversos jogos de poder, a lógica da especulação fundiária, os mecanismos de domínio do espaço”. Mais do que propostas, ficava o sinal da vulnerabilidade: “No levantar das questões da realidade actual ressaltará a evolução de estruturas pré-existentes que mantêm um grau de capacidade de uso e de conforto, uma adaptação às permanentes transformações, que parecem de todo ausentes não só nas novas urbanizações como em quase todas as intervenções que vamos produzindo no território.” (AMF, 1986)
3.
Ofício e colaboração, conhecimento e partilha, aprendizagem e consciência de futuro, por aí se fez este arquitecto, este mestre com ‘sexto sentido’ – como a ele se referia afectuosamente Fernando Távora –, comprometendo-se no que apenas se viabiliza pelo presente de um ‘nós’. Ou, talvez melhor, por aí agiu e se questionou este artista pela revelação do mundo na familiaridade das coisas, condição mínima para qualquer artista da simplicidade e da humildade essencial: “Desde muito novo comecei a andar de barco no oceano. É uma experiência que nos obriga a saber pegar em referências, orientar-se… Quando não há referências, as referências são o sol ou as estrelas e mais nada…”; …“Para podermos estar seguros, tal como diz Norberg-Schulz, temos de estar orientados, temos de saber onde é que estamos para podermos saber para onde ir.” (AMF)
Nesta medida, talvez se possa tomar como princípio de lição de Arquitectura ou compromisso de Projecto livre, o que seguramente se (re)colhe, se recolherá, no e pelo estudo da sua obra – “Num mundo em instabilidade perpétua e generalizada, em que as transformações se processam à velocidade da luz, não é possível voltar ao apoio dos cânones ou ao recurso a tratados definidores que sempre se mostraram desajustados mesmo para aqueles que os organizaram, como Alberti. A via possível e talvez única é a de sistematizar um conjunto de conhecimentos que se situam, na área da arquitectura, dentro da tríade vitruviana, nas componentes funcional e estética – utilitas e firmitas – para, dentro da terceira componente estética – venustas – promover a pesquisa livre mas consciente e enraizada, no sentido de evitar o vazio e a sempre tentadora emergência de novos cânones.” (AMF, 1994)
Porto, 29 de Junho de 2015

Nota do autor
Este texto é edição de parte de um escrito em evolução, posfácio a Memória, livro de Alfredo Matos Ferreira, projecto editorial da FIMS em parceria com a FAUP, com lançamento previsto até ao fim de 2015.
Imagem
Edifício de Habitação, rua Arquitecto Marques da Silva, 1958. Arquivo Família AMF.
Manuel Mendes
Arquitecto, docente da FAUP, trabalho de investigação na área da arquitectura do século XX, nomeadamente a componente portuguesa e portuense.
Ficha Técnica
Data de publicação: 20.07.2015
Etiqueta: Arquitecturas \ Espaços; Manuel Mendes

Imprimir