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O resultado das eleições
na Grécia exprime a escolha de uma nação onde uma grande maioria da população
se colocou numa posição defensiva face à miséria social, tão humilhante como
esmagadora, provocada por uma política de austeridade, imposta ao país a partir
do exterior. A votação propriamente dita não permite nenhum subterfúgio: a
população rejeitou a continuação de uma política cujo falhanço sofreu
brutalmente, na sua própria carne. Com a força desta legitimação democrática, o
governo grego tentou provocar uma mudança de política na zona euro. Ao fazê-lo,
entrou em choque com os representantes de dezoito outros governos que
justificam recusas referindo-se, friamente, ao seu próprio mandato democrático.
Lembramo-nos dos
primeiros encontros em que noviços arrogantes, levados pela exaltação do
triunfo, se entregavam a um torneio ridículo com pessoas bem instaladas, que
reagiam umas vezes com gestos paternalistas de um bom tio e outras com uma espécie
de desdém rotineiro: cada uma das partes gabava-se de desfrutar do poder
conferido pelo seu respectivo «povo» e repetia o refrão como papagaios. Foi ao
descobrir até que ponto a reflexão que então faziam, e que se baseava no quadro
do Estado-nação, era involuntariamente cómica, que toda a opinião pública
europeia percebeu o que realmente fazia falta: uma perspectiva que permitisse a
constituição de uma vontade política comum dos cidadãos, capaz de colocar no
centro da Europa marcos políticos com consequências reais. Mas o véu que
escondia esse deficit institucional
ainda não foi realmente rasgado.
A eleição grega
introduziu grãos de areia na engrenagem de Bruxelas: foram os próprios cidadãos
que decidiram a necessidade urgente de propor uma política europeia
alternativa. Mas é verdade que, noutras paragens, os representantes dos
governos tomam decisões entre eles, segundo métodos tecnocráticos, e evitam
infligir às suas opiniões públicas nacionais temas que possam inquietá-las.
Se as negociações para um
compromisso falharem em Bruxelas, será certamente sobretudo porque os dois
lados não atribuem a esterilidade dos debates ao vício na construção dos
procedimentos e das instituições, mas sim ao mau comportamento do parceiro. Não
há dúvida de que a questão de fundo é a obstinação com que se agarra uma
política de austeridade, que é cada vez mais criticada nos meios científicos
internacionais e que teve consequências bárbaras na Grécia, onde se concretizou
num fracasso óbvio.
No conflito de base, o
facto de uma das partes querer provocar uma mudança desta política, enquanto a
outra se recusa obstinadamente a envolver-se em qualquer espécie de negociação
política, revela, no entanto, uma assimetria mais profunda. Há que compreender
o que esta recusa tem de chocante, e mesmo de escandaloso. O compromisso não
falha por causa de alguns milhares de milhões a mais ou a menos, nem mesmo por
uma ou outra cláusula de um caderno de encargos, mas unicamente por uma
reivindicação: os gregos pedem que seja permitido à sua economia e a uma
população explorada por elites corruptas que tenham um novo começo, apagando
uma parte do passivo – ou tomando uma medida equivalente como, por exemplo, uma
moratória da dívida cuja duração dependesse do crescimento. Em vez disso, os credores
continuam a exigir o reconhecimento de uma montanha de dívidas, que a economia
grega nunca poderá pagar.
Note-se que ninguém
contesta que uma supressão parcial da dívida é inevitável, a curto ou a longo
prazo. Os credores continuam, portanto, com pleno conhecimento dos factos, a
exigir o reconhecimento formal de um passivo cujo peso é, na prática,
impossível de carregar. Até há pouco tempo, persistiam mesmo em defender a
exigência, literalmente fantasmagórica, de um excedente primário de mais de 4%.
É verdade que este passou para o nível de 1%, mas continua irrealista. Até
agora, foi impossível chegar a um acordo – do qual depende o destino da União
Europeia – porque os credores exigem que se mantenha uma ficção.
Claro que os «países
credores» têm motivos políticos para se agarrarem a esta ficção que permite, no
curto prazo, que se adie uma decisão desagradável. Por exemplo, temem um efeito
dominó em outros «países devedores» e Angela Merkel não está segura da sua
própria maioria no Bundestag. Mas
quando se conduz uma má política, é-se obrigado a revê-la, de uma forma ou de
outra, se se percebe que ela é contra-produtiva.
Por outro lado, não se
pode atirar com toda a culpa a um falhanço para cima de uma das duas partes.
Não posso dizer se o processo táctico do governo grego se baseia numa
estratégia reflectida, nem ajuizar sobre aquilo que, nesta atitude, tem origem
em constrangimentos políticos, inexperiência ou incompetência do pessoal
encarregado dos assuntos. Não tenho informação suficiente sobre as práticas
habituais ou sobre as estruturas sociais que se opõem às reformas possíveis.
O que é óbvio, seja como
for, é que os Wittelsbach não construíram um Estado que funcione. Mas estas
circunstâncias difíceis não podem no entanto explicar por que motivo o governo
grego complica tanto a tarefa dos que tentam, mesmo sendo seus apoiantes,
discernir uma linha no seu comportamento errático. Não se vê nenhuma tentativa
racional de formar alianças; é caso para perguntar se os nacionalistas de
esquerda não se apegam a uma representação um tanto etnocêntrica da
solidariedade, se só permanecem na zona euro por razões que relevam do simples
bom senso – ou se a sua perspectiva excede, apesar de tudo, o âmbito do
Estado-nação.
A exigência para uma
corte parcial das dívidas, que constitui a base contínua das suas negociações,
não é suficiente para que a outra parte tenha pelo menos confiança para
acreditar que o novo governo não é como os anteriores e que agirá com mais
energia e de forma mais responsável do que os governos clientelistas que
substituiu.
Mistura tóxica
Alexis Tsipras e o
Syriza poderiam ter desenvolvido o programa de reformas de um governo de
esquerda e «ridicularizar» os seus parceiros de negociações em Bruxelas e em
Berlim. Amartya Sen comparou as políticas de austeridade impostas pelo governo
alemão a um medicamento que contivesse uma mistura tóxica de antibióticos e de
veneno para matar ratos. O governo de esquerda teria tido perfeitamente a
possibilidade, na linha do que entendia o Prémio Nobel de Economia, de proceder
a uma decomposição keynesiana da
mistura de Merkel e de rejeitar sistematicamente todas as exigências
neoliberais; mas, ao mesmo tempo, devia ter tornado credível a intenção de
lançar a modernização de um Estado e de uma economia (de que tanto precisam),
de procurar uma melhor distribuição dos custos, de combater a corrupção e a
fraude fiscal, etc.
Em vez disso, ele
limitou-se a um papel de moralizador – um blame
game. Dadas as circunstâncias, isto permitiu que o governo alemão afastasse,
de uma penada, com a robustez da Nova Alemanha, a queixa justificada da Grécia
sobre o comportamento mais inteligente, mas indigno, que o governo de Kohl teve
no início dos anos 90.
O fraco exercício do
governo grego não altera o escândalo: os homens políticos de Bruxelas e de
Berlim recusam assumir o papel de homens políticos quando se reúnem com os seus
colegas atenienses. Têm certamente boa aparência, mas, quando falam, fazem-no
unicamente na sua função económica, como credores. Faz sentido que se transformem
assim em zombies: é preciso dar ao processo tardio de insolvência de um Estado
a aparência de um processo apolítico, susceptível de se tornar objecto de um
procedimento de direito privado nos tribunais. Uma vez conseguido este
objectivo, é muito mais fácil negar uma co-responsabilidade política. A nossa
imprensa diverte-se porque se rebaptizou a «troika» – trata-se, efectivamente,
de uma espécie de truque de mágico. Mas o que ele exprime é o desejo legítimo
de ver surgir a cara de políticos atrás das máscaras de financeiros. Porque
este papel é o único no qual eles podem ter de prestar contas por um falhanço
que se traduziu numa grande quantidade de existências estragadas, miséria
social e desespero.
Intransigência
Para levar por diante as
suas duvidosas operações de socorro, Angela Merkel, meteu o Fundo Monetário
Internacional no barco. Este organismo tem competência para tratar do mau
funcionamento do sistema financeiro internacional. Como terapeuta, garante a
estabilidade e age portanto em função do interesse geral dos investidores, em
especial dos investidores institucionais. Como membros da «troika», as
instituições europeias alinharam com esse actor, a tal ponto que os políticos,
na medida em que actuam nessa função, podem refugiar-se no papel de agentes que
operam no estrito respeito das regras e a quem não é possível pedir contas.
Esta dissolução da
política na conformidade com os mercados pode talvez explicar a insolência com
a qual os representantes do governo alemão, que são pessoas de elevada
moralidade, negam a co-responsabilidade política nas consequências sociais
devastadoras que no entanto aceitaram como líderes de opinião no Conselho
Europeu, quando impuseram o programa neoliberal para as economias.
O escândalo dos
escândalos é a intransigência com a qual o governo alemão assume o seu papel de
líder. A Alemanha deve o impulso que lhe permitiu ter a ascensão económica de
que se alimenta ainda hoje à generosidade das nações de credores que, aquando
do acordo de Londres, em 1954, eliminaram com um simples traço cerca de metade
das suas dívidas.
Mas o essencial não é o
embaraço moral, mas sim o testemunho político: as elites políticas da Europa já
não têm o direito de se esconder atrás dos seus eleitores e de fugirem a
alternativas perante as quais nos coloca uma comunidade monetária politicamente
inacabada. São os cidadãos, não os banqueiros, que devem ter a última palavra
sobre questões que dizem respeito ao destino europeu.
A sonolência
pós-democrática da opinião pública deve-se também ao facto de a imprensa se ter
inclinado para um jornalismo de «enquadramento», que avança de mão dada com a
classe política e se preocupa com o bem-estar dos seus clientes.
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Nota da edição
Este texto de Jürgen Habermas foi divulgado no jornal Le Monde, no passado dia 25 de Junho. Tradução
por Joana Lopes e publicado originalmente no blog: Observatório Grego.
Imagem via jornal le Monde.
Jürgen Habermas
Filósofo e sociólogo
alemão (1929).
Ficha Técnica
Data
de publicação: 01.07.2015
Etiqueta: Pensamento \ Crítica