≡
Em Dezembro de 2010, teve lugar uma ocupação maciça e em princípio
inesperada do Parque Indoamericano, na Zona Sul de Buenos Aires. O
Indoamericano é um dos rostos menos visitados da cidade. Talvez porque nele não
se reflecte nenhuma das mensagens retóricas que ambicionam captar o espírito de
uma cidade que oficialmente se apresenta como aberta ao turismo, santuário da
cultura, meca do cosmopolitismo, cadinho de raças, além de sede de amabilidade
cívica e laboratório de criatividade política. Encontramos neste fragmento cru
da vida urbana chaves para a compreensão do que existe, e do que poderia
existir. O presente e os seus possíveis. Os episódios violentos que marcaram a
desocupação do Parque Indoamericano conjugam num só movimento a procura de
terra e habitação ao mesmo tempo que a dinâmica da valorização imobiliária; a
acção directa das massas ao mesmo tempo que operações “punteriles” [1]; o racismo que atravessa
transversalmente o social, as instituições governamentais e os estereótipos
mediáticos, ao mesmo tempo que um reflorescimento da sacrossanta nacionalidade
argentina vinculada à defesa da propriedade privada; a violência criminal,
civil e policial, ao mesmo tempo que momentos agónicos da vida colectiva e
comunitária; o estatuto do espaço público e a ressignificação da figura do vizinho ("vecino").
1.
Adjectivo formado a partir de puntero.
"Os punteros são militantes do
Partido Justicialista colocados como intermediários entre os recursos federais,
provinciais e municipais dentro do bairro (cestas básicas, consultas medicas,
vagas em escolas), além de serem os responsáveis pela elaboração das listas de
beneficiários dos planos de assistência. Sua capacidade de mobilização da
comunidade (para actividades politicas peronistas, como comícios) é o que faz
com que tenham maior ou menor acesso aos recursos governamentais" - cf.
Fernanda Soares Cardozo, “Protestar não é
delito”. A criminalização dos
movimentos sociais na Argentina contemporânea - o caso do
movimento piquetero (1997-2007), Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Porto Alegre, 2008, O
punterismo designa assim um sistema
de clientelas e caciquismo que procura manter a base popular sob o controle de
uma hierarquia político-partidária (N.T.).
Bem-vindos à selva urbana!
À cidade dos planos infinitos. Pseudo-ambiente vivo, saturado de
informação. Cidade-drama dos processos do comum e da guerra civil dos modos de
vida. Bem-vindos, pois, à agitação urbana do constante jogo de encerramento e
abertura, de ligação e desligação. Cidade espelho - às vezes fiel / quase
sempre distorcido - das fórmulas de produção de valor. Cidade biopolítica,
enquanto objecto de mecanismos de apropriação do valor social, enquanto espaço
de resistências aos mecanismos de controle, enquanto território dinâmico de
novas percepções e modos de conhecer. Cidade produtiva, fábrica das formas de
vida que nela se misturam, se distinguem e se entretecem. Cidade-arca de
memórias, de sentidos e de conflitos. Bem-vindos à própria fábrica da cidade, à
fábrica social.
O Indoamericano como
problema
Quando falamos do fragmento não nos referimos à parte qualquer
parte de um todo anterior explodido: falamos de uma situação concreta e problemática
cuja força de realidade nos violenta. Que nos arrasta no processo da sua
evolução. Que nos afasta de qualquer abstracção. O fragmento é sempre índice
expressivo desta vida urbana.
O fragmento não seria, assim, um estilhaço arbitrário. O fragmento
é um problema essencial captado na sua evolução. Interrogá-lo, penetrá-lo,
supõe um confronto com o concreto em mutação. O fragmento é uma dobra. Que
explica, se desdobrado. Que dissimula as suas implicações, se o deixarmos
envolto no seu véu. Contém uma marca cifrada da época e uma potência
discordante. Desvelar o fragmento afecta a perspectiva, descobre latências e
possíveis.
O fragmento é um todo concreto cujos filamentos tocam outras
situações. Do racismo às economias informais; das dinâmicas de ocupação da
terra às dinâmicas da migração; das técnicas biopolíticas dos Estados à
propaganda política; da codificação mediática à urbana; das formas submersas de
trabalho e de sobreexploração à precarização do direito à habitação.
O fragmento histórico contém as chaves da compreensão de mutações
colectivas maiores. O fragmento é ao mesmo tempo universal (fala de alguma coisa que se manifesta em muitas outras
situações) e caso concreto (sucede
como episódio fechado, contextualizado, e mantém sob uma aparência extremamente
empírica uma incógnita urgente).
Do mesmo modo que a investigação do caso promove a investigação
política sub-representativa [2] o
pensamento do fragmento conduz-nos, na companhia de Walter Benjamin, a um
tratamento diferente do universal. O universal concreto é uma porção de
realidade da qual se pode dizer: “está tudo aí”. E remete sempre para uma
práxis, que não precisa de ser remetida para uma totalidade abstracta. Para o
fetiche de uma totalidade complexa com as suas mediações infinitas. Pelo contrário,
Benjamin expõe as suas razões a favor da unidade imediata (monádica) da
situação sem necessidade de recorrer a qualquer ciência abstracta.
O fragmento é mundanidade.
Convite a desenvolver práticas de mundo. O fragmento pode abrir, portanto, uma
sequência de politização: gosto pelo episódio (caso); militância de
investigação; problematização expressiva (o problema da escrita, ou do discurso
das imagens). Fazer cidade. É o que procuramos e o que se nos impõe. Porque a
cidade supõe e aspira desde sempre a uma teoria política, a um jogo que afirma
os usos comuns e as suas mutações por meio de uma gestualidade inevitavelmente
política. E o gesto político, o convite à escrita tem sempre por ponto de
partida a afirmação da igualdade de potência dos socialmente desiguais.
Como necessidade persistente de cartografias para nos apropriarmos da cidade como riqueza
comum. De uma temporalidade comum. Um ano do Indoamericano sobrepõe-se aos dez
anos de 2001 [3]. As perguntas acumulam-se e dilaceram-se
retrospectivamente. São estas feridas que nos aproximam de uma enunciação
comum. Contra a língua neoliberal que separa minuciosamente e por etiquetas
cada um dos estereótipos e as perguntas que não devem misturar-se. O que nós
procuramos é tornar um texto um convite esclarecido sobre o sistema de
fronteiras, que atravesse guetos urbanos, zonas políticas e temas privados. Não
é nada fácil. Mas persistimos.
2."Sub-representativo"
possui aqui duas acepções convergentes: a presença de factos e dados como
potência para dissolver o espaço da representação estatal e mediática (na
medida em que a verdade e a justiça avançam juntas, a investigação supõe uma
ética contra a criminalidade do poder) e, ao mesmo tempo, recurso ao
"poder do falso", uma vez que a ficção nos ajuda a compreender as
camadas mais profundas do que podemos assumir como verdade.
3.
Ao completar-se uma década da crise que mudou o país para sempre, a nossa
perspectiva não é a da recordação. 2001 não é um ano, mas um princípio activo,
uma chave para pensar esta década. 2001, para nós, é quase um método, uma
maneira de olhar as coisas vendo-as em movimento. Neste sentido, a crise
torna-se premissa, na multiplicidade das suas significações: instabilidade e
criação, preocupação e incerteza, abertura e alteração do calendário… Tanto
quando é visível, como quando, como nos tempos de agora, corre como uma
corrente subterrânea numa sociedade "normal" ou num país "a
sério".
(RE)TOMANDO O INDOAMERICANO
Tomamos o Indoamericano como fragmento, caso e situação. Uma
célula mínima de realidade observada que equilibra com o seu próprio peso o
resto da cidade. O Indoamericano não é um facto excepcional, excepto na medida
em que permite apreciar uma complexidade de níveis e dinâmicas que hoje
convergem nisso a que chamamos (fazer) cidade. A cidade tem mil planos.
Impossível vê-los todos ao mesmo tempo. A opacidade do Indoamericano surge do
encontro entre muitos e muitos destes planos. Não tentamos explicar o
Indoamericano a partir de uma análise abstracta e totalizadora da cidade, mas,
pelo contrário, propomo-nos pensar melhor a cidade referindo-a imediatamente a
essas singularidades, e às tendências e lutas sociais que a constituem. Que
singularidades são essas?
Primeiras hipóteses / O Indoamericano
como condensação de problemas / Nova gestão governamental / Racismo
micropolítico / Nova lógica de ocupação: expectativas económicas e organização
não-tradicional.
A ocupação do Parque Indoamericano reúne uma quantidade de
problemas nos quais se joga boa parte do posterior triunfo eleitoral do
candidato da direita a “intendente” (presidente do município), Mauricio Macri,
na cidade. Esses dias violentos puseram em evidência a brutalidade das acções
do mercado, as reacções racistas e a violência social contida. Não se trata de
dizer que o Indoamericano seja tão diferente de outras coisas que costumam
passar-se na cidade, e noutras cidades, mas é uma situação privilegiada, devido
às camadas de questões que condensa em vista de pensarmos e agirmos na
conjuntura da cidade.
Há nesta relação, entre o que aconteceu no Indoamericano e o
triunfo de Macri, uma subtil trama micropolítica que poderíamos reconstruir
tomando como ponto de partida o pôr em série dos acontecimentos desses dias com
as imagens difundidas depois pelo macrismo - que vão da transparência obscena dos factos de Dezembro de 2010 à estratégia
de comunicação e de gestão governamental, estratégia mascarada de um estilo anti-político ingénuo, que explicita um
conteúdo racista indisfarçado.
A eficácia da operação consiste num deslocamento da significação
do público (não por acaso, o Indoamericano é um parque público maioritariamente
usado por migrantes); na visibilização e na gestão de formas (tão odiosas como
efectivas) de produção de cidade; num deslizar dos modos de construção política capaz de dar conta
da face micropolítica reaccionária sobre a macropolítica do governo nacional,
cujos enunciados inclusivos e pós-liberais
são objecto de uma suspensão pelos lemas e divisas do governo da cidade
("é bom estar aqui", "seja bem-vindo") que transmitem ao
nível do imaginário colectivo uma cumplicidade com a exclusão da ameaça. A
ocupação do Indoamericano, ao contrário do que se disse na altura, revela menos
a ausência do Estado como o facto de, na gestão
territorial, o próprio Estado (no seu funcionamento mafioso) ser parte do
problema. Mas também o mercado intervém na ocupação, uma vez que se trata de um
fenómeno que não pode considerar-se à margem do contexto das práticas de especulação imobiliária.
Pensar a dinâmica própria da ocupação requer uma investigação que
deve desprender-se de múltiplos imaginários, por exemplo, o da tradição de
ocupações comunitariamente organizadas. Com efeito, as ocupações pertencem a
uma forma de luta popular promovida e desenvolvida por formas políticas e organizativas
que, partindo das necessidades, desenvolveram experiências sociais
comunitárias. Todavia, tanto na ocupação do Indoamericano, como em todas as
outras ocupações que houve na mesma altura, não podemos situar as coordenadas
dessa tradição: a ausência de enunciados e uma narrativa sobre o que acontecia,
a dificuldade de encontrar interlocutores, e o transbordar da violência tão
difícil de interpretar, sugerem-nos que se trata de outro tipo de situação
emoldurada num contexto em alta do ciclo económico, em que a renda financeira
se orienta em geral para a terra e para a construção de habitação.
A título de hipótese, portanto, deparamos com dois eixos: uma racionalidade económica em posta em
causa e uma fraqueza por parte dos actores sociais para introduzirem outras
dinâmicas alternativas ou comunitárias. Os cálculos do Indoamericano,
verdadeiro concentrado dos cálculos
urbanos, obrigam-nos a desprendermo-nos das representações mais simples e
habituais através das quais se procuram explicar as dinâmicas da cidade.
A cidade espontânea? / Ocupações promíscuas / Cálculos / Especulação
imobiliária e reivindicação democrática.
No fazer cidade, há
sempre qualquer coisa de espontâneo. As cidades são tramas complexas que não
podem explicar-se somente através do planeamento (de urbanistas, de governos,
de organizações sociais) nem do livre
arbítrio das suas pulsões vitais. Nas ocupações manifesta-se um estranho
paradoxo: a constatação de uma organização e, ao mesmo tempo, a sua ausência.
A espontaneidade não significa a ausência de inteligência e
organização, mas, de uma maneira ou de outra a convergência - em tensão e harmonia - de racionalidades e
planos diferentes de acção. Deste modo, podemos pensar a simultaneidade da
organização punteril (dos líderes de
bairro) [4], nessa negociação política que inclui
habitualmente cálculos especulativos de mercado, com processos menos evidentes,
ligados a solidariedades entre os ocupantes, à vontade de alojamento e de terra
que, talvez, se afirmasse antes de outro modo, através de outro tipo de
organizações, confluindo hoje numa dinâmica, que adquire um tom promíscuo característico das misturas:
autoritarismo e oportunismo a par de momentos de solidariedade e vontade de uma
vida melhor. As ocupações são tanto momentos de manipulação ao serviço de
negócios e de criação artificial de climas políticos, como dinâmicas de
reapropriação de espaços urbanos anteriormente capturados como espaços privados
ou públicos para usos precisos. Quando são ocupados, esses espaços readquirem
um carácter comum. Mas, nesse território, que torna a ser comum, desenvolvem-se
esses traços de promiscuidade que
assinalámos, onde funcionam conjuntamente lógicas mafiosas mais visíveis e
outras ligadas ao querer-viver, menos evidentes.
O paradoxo destes modos de fazer
cidade consiste em canalizar os impulsos populares e as reivindicações
democráticas de terra e alojamento, através de esquemas políticos tão
autoritários como rebeldes, dando lugar a excessos muito difíceis de organizar
(para os militantes) e de representar (para os políticos).
"Na província de Buenos Aires sempre houve ocupações. Não se
trata de um fenómeno extraordinário ou de outro planeta. Na realidade, a
ocupação de terras é um modo de fazer cidade, e foi assim que se constituiu
grande parte da conurbação. Mas os meios de comunicação tratam a capital
federal como um território privilegiado, onde essas coisas não acontecem. A mensagem em torno das ocupações do
Indoamericano foi clara: na capital, protege-se a propriedade, e os
usurpadores, na sua maioria estrangeiros, são os que a põem em perigo…
O problema real é, sobretudo, o do apinhamento. E também a subida
do preço dos arrendamentos, que deriva do primeiro problema. Os ‘punteros’
avisam quando começa a entrever-se a possibilidade de uma ocupação, e os
interessados preparam-se para agir. Entre estes incluem-se desde os ‘pibes’ (meninos) apostados na revenda de lotes
aos que necessitam de terreno onde possam fazer um lugar para viverem; desde os
que aproveitam a ocasião para comprar lotes assim que se inicia a ocupação, aos
que vêem nela uma oportunidade de adquirirem mais casas para revender ou
arrendar.
Os novos bairros compõem-se em geral de paraguaios, bolivianos e
peruanos, que são os que têm mais filhos e estão sempre dispostos a entrar em
acção. Já em Lugano [5] se tinham dado ocupações de
terras… Algumas. E a reacção racista foi sempre muito forte. Foi o caso da
Villa 20, mas eram ocupações pequenas, comparadas com a do Indoamericano.
Nalgumas delas, houve até certo apoio do consulado boliviano, através do
fornecimento de colchões às famílias bolivianas ocupantes. Mas a ocupação do
Indoamericano foi diferente. Pela escala, sobretudo, e também por ter escapado
ao controle. Houve um acordo entre o governo da cidade e o do país para recensear
os ocupantes e dar-lhes dinheiro (calculo que três mil pesos pelo menos, e há
quem fale em oito mil, e quem fale em cinco mil…) para os fazer abandonar a
ocupação. Os ‘punteros’ sabem onde é possível fazer ocupações, onde há terras
que se podem ocupar. Sabem também quando há alguma oportunidade de ocupação
temporária, que não poderá ser mantida, mas pode render alguma massa (como
neste caso). O ‘puntero’ averigua, tem os seus ajudantes e aparece nos bairros
encorajando as pessoas à ocupação. Aconselha sobre a melhor maneira de agir,
sobre a maneira de proceder à ocupação com rapidez. Sabe de quem são os
terrenos, está sempre bem informado, e disposto a negociar e a tentar obter
algum benefício… e se for possível ficar com os terrenos, tanto melhor. Mas no Indoamericano
as coisas não puderam ser controladas. De um modo geral, as ocupações tendem a
transbordar a organização, mas no Indoamericano, tratou-se de uma ocupação a
uma escala formidável".
4. Ver nota 1 (N.T.)
5. Ou Villa Lugano, uma das grandes circunscrições
urbanas de Buenos Aires (N.T.)
Racismo / Classificação: Vizinhos versus Okupas / Inquérito e
recenseamento em tempo real.
Se até ao momento imagens como as do Indoamericano têm sido
difundidas e lidas como as de uma "guerra de pobres contra pobres",
devemos admitir que a intervenção astuciosa do governo municipal de Macri
facilitou uma nova operação hegemónica sobre a cidade. A guerra deixaria de ser
entre pobres, passando a ser entre usurpadores
e vizinhos. Aos vizinhos cabe
defender o Parque Indoamericano e a Plaza Francia. A equivalência é evidente: o
corte não é de classe nem étnico-nacional. O problema não é a imigração, mas
sim o descontrolo.
Qual é o objecto desta guerra entre caos e controlo? A
riqueza da cidade e o espaço público (hospitais, escolas, parques ameaçados
pelos imigrantes). As coisas
orientam-se assim de tal maneira que a reacção dos vizinhos de Soldati/Lugano,
avalizada por boa parte da cidade e das suas instituições, parece consagrar um direito ao racismo [6], até
ao momento só reconhecido pelo Estado a certas partes e classes da cidade.
"Em bairros como Lugano I e II, há desde sempre resistências
contrárias à construção de habitação para a gente das villas [7]. A experiência da se ir às
compras ao supermercado Coto é suficiente. Vêem-se como são recebidas as
‘tarjetas sociales’ (senhas de compras), e como se observa o consumo dos
paraguaios e bolivianos. Sobretudo da Villa 20. Que enchem as salitas, as
escolas públicas, o supermercado Jumbo, os parques durante os fins de semana.
Os espaços públicos são lugares de mistura, de encontros, de preconceitos. A
escalada da animalização vai de
formas mais atenuadas, como ‘negros’, a ‘villeros’ e, termo depreciativo entre
todos, a ‘bolivianos’”.
Esta mutação de imaginários é estranha. Até certo ponto, os
bolivianos são valorizados segundo uma imagem do trabalhador dócil. Alegoria da
migração boa, que se faz a partir de baixo, regenerando valores como o
trabalho, o estudo e a família. Mas, em contacto com a “villa”, espaço de uma
selvajaria insondável, o boliviano vai-se confundindo com o villero, o negro, o narco.
“O governo municipal de Macri dirigia-se em tempo real aos
vizinhos em suas casas, perguntando-lhes o que queriam eles que o município
fizesse. O bairro aprovou que Macri declarasse que, se havia problemas de
alojamento, os argentinos deviam ser prioritariamente atendidos. Agora, a
guarda está no bairro, A sua simples presença mudou o estado de coisas. Os
guardas garantem a segurança durante a noite. Sobretudo nos quarteirões mais
violentos onde se começa a vender paco [8].
Circulam permanentemente, de carro ou a pé. A guarda ocupa o lugar de uma
autoridade pública armada para travar essa violência desenfreada".
6.Tal como costumamos interrogar-nos sobre a lei que
dita que acatemos a lei, a obrigação de obedecer, interrogamo-nos também sobre
o direito que garante a posse de direitos, o direito a ter direitos. De onde
vem esse direito natural, condição primeira da igualdade? Quem reconhece e quem
garante o direito a ser-se sujeito de direitos, a ser-se cidadão, a ser-se
humano? Pensamos o racismo como a máscara que dissimula e, ao mesmo tempo,
explica as desigualdades subjacentes à plena igualdade promulgada pelos regimes
liberais. Mas o racismo não se limita a
encobrir e a revelar paradoxalmente, mas produz também muitas outras
desigualdades. Desigualdades - se há lugar para estabelecer esta distinção -
não de facto, mas de direito. O direito ao racismo opera através de uma
dialéctica negativa que consiste na auto-atribuição que um grupo se faz do
direito a negar direitos. O direito ao racismo deita por terra a pretensa
universalidade liberal. Os meus direitos, segundo dita o manual, acabam onde
começam os direitos do outro. Os seus direitos, diz o bom vecino porteño [o bom morador, ou vizinho, de Buenos Aires (N.T.)]
aos ocupantes do Parque Indoamericano, acabam aqui.
7. O termo villas,
ou villas miseria designa, na
Argentina, os bairros de lata ou zonas ocupadas pela construção de alojamentos
precários. (N.T.)
8. Pasta de cocaína. (N.T.)
Redefinição reaccionária da figura do
migrante / Discurso de Evo / Imigração descontrolada / Macri e os
representantes comunitários.
De facto, durante a ocupação do Parque Indoamericano o discurso da
imigração usurpadora foi ampliado até ao insuportável. Por um lado, o discurso
dos vizinhos que entraram em acção
contra os ocupantes. Por outro lado, as próprias organizações imigrantes e o
próprio governo de Evo Morales assumiram que as comunidades estrangeiras não
deviam comprometer a sua imagem em semelhante tipo de acções. Por parte do
Estado nacional, a mobilização da guarda limita-se a confirmar o novo mapa das
fronteiras nacionais, que se desmultiplicam no interior de bairros e villas da
Zona Sul. A proliferação de um discurso abertamente racista, com a plena
cumplicidade dos meios de comunicação de massa levou o discurso presidencial a
referir-se a uma migração boa e trabalhadora. Raiando o extremo, o discurso de
Macri, dirigente máximo da cidade, referia-se à imigração descontrolada, identificando as ocupações com o
narcotráfico e a delinquência em geral.
"A TV titula: ‘vecinos’ versus ‘okupas’, mostra imagens de
confrontos na ausência das forças policiais. Porquê esta ausência? As imagens
eram de uma tolerância inédita perante a violência crua. Havia imagens da
Polícia Federal espancando as pessoas com violência. Da [força policial]
Metropolitana, não era surpreendente (os seus efectivos ocupavam-se da
repressão dos ‘cartoneros’ [9]), mas supunha-se que a
Federal estava proibida de usar a violência e de reprimir. Os confrontos
prolongaram-se horas a fio. Tanta impunidade corrobora uma capacidade de
violência, de cuja possibilidade já suspeitávamos, por parte dos vizinhos. No
Facebook, nas redes argentinas - de vizinhos do bairro - e nas redes de bolivianos
dizia-se a mesma coisa: eram poucos os indignados com a violência, e havia uma
maioria que se opunha à ocupação como maneira fácil e irresponsável de
apropriação de terrenos para construção de alojamentos, bens que aos locais
custam muito trabalho. Incluem-se aqui membros da comunidade boliviana,
envergonhados de serem associados aos ocupantes. Na realidade, o Parque
Indoamericano não era um lugar utilizado pelas famílias do bairro. Era quase
inteiramente ocupado por migrantes".
"No Indoamericano, houve de tudo, mas insistiu-se sobretudo
na presença dos bolivianos. São os bolivianos que ficam até ao fim. Os
bolivianos tornam-se mais visíveis porque se mantêm na parcela que ocupam; não
se movem, para que não lhes roubem o lugar. Os bolivianos são fáceis de
expulsar, os ‘pibes’ tiram-lhes os terrenos e, a seguir, vendem-nas (lhas). Os
paraguaios, em contrapartida, organizam-se com rapidez; estão preparados para
se defenderem e ocupam o território colectivamente. Os bolivianos agiam cada um
por sua conta, isolados ou em família, mas não se agrupavam num colectivo.
Muitas vezes são ‘pibes’ recém-chegados para trabalhar numa oficina. As
organizações bolivianas preocupam-se muito com a sua imagem e condenam tudo o
que possa entrar em conflito com os valores considerados dominantes na cidade.
E durante esses dias, condenavam a ocupação, para salvaguardar a imagem dos
bolivianos…
Mas, além disso, há, entre os bolivianos, uma ruptura profunda do
comunitário; competição, isolamento… enfim, um individualismo bastante
exacerbado. Nestas situações de ocupação observa-se uma mistura muito estranha.
Uma mistura de assembleia, de espontaneidade e de organização. E não é raro
que, em resultado dessa dinâmica, se dêem actos de racismo, às vezes com origem
nos próprios filhos dos bolivianos. Nestas ocupações, falta que os bolivianos
actuem com mais força, com mais organização colectiva. Falta uma afirmação mais
decidida, como acontece noutros casos ou nalgumas movimentações em que se
manifestam modos de afirmação mais claros…
No bairro Samoré organizaram-se ‘bandereadas’ (ruas Escalada e
Dellepiane) convocadas pela palavra de ordem: ‘Traz a tua bandeira argentina
para defender o bairro’. E em vários autocarros que passavam pelo bairro Samoré
(o 36, o 50, o 114, etc.), todos os passageiros bolivianos eram obrigados a
sair. Quando os vizinhos cortaram a
circulação em Dellepiane, o 36 teve de desviar-se uns 10 quarteirões para
evitar que fossem espancados os bolivianos que iam no autocarro. No 50, foram
os próprios passageiros que não deixaram entrar no autocarro uma
boliviana".
9. Os
cartoneros dedicam-se à recolecção e recuperação de lixos e resíduos. (N.T.)
Organização do excesso,
condução das reivindicações / Oportunismo e disponibilidade / A construção do caso social como forma de negociação.
O tipo de organização que protagoniza as ocupações já não é a que
identificamos com outros ciclos de lutas, que se desenvolviam a partir de
características comunitárias (promovidas por grupos militantes e por uma
cultura política autónoma). Até ao momento, este tipo de lutas não gerou um
discurso político próprio. Esta confluência de “punterismo”, aspirações e
oportunismos não possui nem as formas herdadas de consistência, nem os valores
anteriores. Sabemos o que este tipo de lutas não é. Mas talvez o urgente seja
sabermos o que de facto pode, o que de facto é. Quando dizemos oportunismo, fazemo-lo despojando esta
noção das suas conotações morais. Em contrapartida, falamos da disponibilidade, por parte dos que
participam nestas movimentações, para se darem rapidamente conta de uma
possibilidade que se abre de obterem um pedaço de terra, uma casa, um projecto.
A decisão rápida de participar numa acção colectiva pode acabar mal, mas pode
também mudar a vida de alguém da manhã para a noite. Da confluência que
descrevemos entre organização “punteril” e cálculo de mercado resulta uma
organização rápida e flexível, na qual coabitam os poderes políticos e
dinâmicas compensatórias mais subtis, em que as expectativas das pessoas
desempenham um papel central.
Num contexto em que há riquezas para repartir, este tipo de acções consegue estabelecer negociações
rápidas com as esferas oficiais, preocupadas com a pacificação do conflito,
abrindo-se sem perda de tempo a negociação entre as partes. Neste esquema, as
pessoas referem menos a sua situação a um cenário de luta e organização
colectiva e mais a uma situação pessoal ou familiar. E na perspectiva das
instâncias oficiais, trata-se menos de lidar tomando como referência elementos
políticos orgânicos e representativos do que de estabelecer casos particulares. Daí o recurso o
recenseamento como primeira e principal operação organizadora da negociação.
A sequência estabelece-se, portanto, a partir da constituição
(ocasional) de uma forte capacidade de acção colectiva, que opera por meio do
excesso e da apropriação directa com
o propósito de abrir uma instância de negociação. Uma vez aberta a negociação,
a capacidade de acção transforma-se em reivindicação ou caso, susceptível de
enquadramento enquanto caso social.
Nesta segunda fase, é fundamental a participação de um funcionalismo -
sobretudo a nível dos municípios - com uma sensibilidade e uma experiência
resultantes da participação nas militâncias dos movimentos sociais.
"Finalmente, e como que num fio mais ténue de interesse,
surge a interrogação sobre o que se passou com os ocupantes e sobre o porquê de
terem sido recenseados? Como funciona o sistema das pulseiras de controle nos
acampamentos rodeados pela guarda? As pessoas obtiveram resposta ao seu problema
de alojamento? Denúncias recentes apontaram o facto de não se ter avançado na
descoberta dos responsáveis pelos três -? - homicídios que tiveram lugar nos
dias dos acontecimentos, enquanto há processos contra os protagonistas sociais
da ocupação. Depois tudo se foi silenciando. Não houve mais notícias. Para a
maioria, os factos caíram no esquecimento.
No segundo ou terceiro dia da ocupação, aparecem as famílias que
vêm comprar lotes aos ‘pibes’. ‘Pibes’ que muitas vezes ocupam lotes por conta
dos ‘punteros’. É todo um mercado que se monta no local. No Indoamericano,
havia de tudo. Pessoas que vendiam e pessoas que precisavam de alojamento.
O que é interessante nas ocupações, e o que realmente motiva a
mobilização de todos, é o momento em que chega o Estado ou as empresas com a
sua oferta de serviços, fazendo com que as pessoas se unam para recusar a
instalação dos contadores destinados a assegurar depois a cobrança desses
serviços, como a luz.
É justo ocupar. Porque o direito à habitação está ameaçado. Não há
uma relação necessária entre ocupar uma casa e comprar… Mas, de um modo geral,
este discurso não intervém na ocupação; não se faz ouvir, por exemplo, um
discurso contra a propriedade privada, ou de crítica à circunstância de ter de
se comprar para se ter acesso ao alojamento".
Cidade multiforme: excesso,
mercado e planeamento
À margem de planos. Não se vive sem criar espaço. Não se vive sem
destruir espaço. Os modos de vida que a cidade produz, a cidade que resulta dos
modos de vida, entrelaçam-se, tecem alianças ou combatem-se mutuamente. O
mercado joga o seu jogo, limita e potencia essas formas de viver segundo as
descubra como mais ou menos funcionais nos termos da sua lógica. A cidade
excede o cálculo com o qual mantém uma relação de estranheza familiar. Dar para
receber. Gerir. Se a cidade é um entretecido, fazer cidade é a maneira como se
concentram e se disseminam os percursos dos corpos, as apropriações, as
fixações e as mobilidades dos que nela estamos, dos que chegam e dos que
partem. Há cidades que urbanizam a injustiça: que segmentam territórios, que se
espacializem em vista da exploração e da distribuição dos corpos, das suas
vidas e das suas mortes. Nelas ensaiam-se também outros modos de vida, há lutas
(as mais diversas) visando produzir situações de justiça urbana. Situações que
alteram, reinventam o espaço-tempo, que reorganizam o sentido de uma vida
metropolitana, com os seus anonimatos e as suas dores.
≡
Nota dos autores
O texto que se segue é a versão ligeiramente
modificada de algumas páginas que compõem Vecinocracia.
(Re)tomando la ciudad, investigação levada a cabo pela oficina
Hacer-Ciudad, que funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires (casa
autogerida por grupos e colectivos múltiplos e diversos). Vecinocracia. (Re)tomando la ciudad foi editado por Retazos / Tinta
Limón, Buenos Aires, Dezembro de 2011.
Nota de edição
Este artigo é
parte do Dossier «Devir menor» coordenado por Susana Caló e
publicado na íntegra no Punkto. Foi publicado originalmente na Revista
Lugar Comum, 41, Brasil, Universidade
Nômade. Tendo em conta que o autor do texto é brasileiro, optou-se por deixar o
texto na sua versão original de Português do Brasil.
Imagens
1. Parque Indoamericano, Buenos Aires. Estatueta de um
Santo popular pagão “Gauchito Gil”, protegendo a construção desta habitação
precária. Imagem via Subcoop.
2 – 5. Imagens
da ocupação do Parque Indoamericano. Milhares de famílias com dificuldades de
acesso à habitação ocupam um parque público abandonado durante seis dias.
Imagem via Subcoop.
6. Parque
Indoamericano, Buenos Aires. Expulsão dos ocupantes. Imagem via Subcoop.
7. Gráfico elaborado
por Hacer Ciudad e Colectivo Situaciones.
Colectivo Situaciones
Tem vários anos
de experiência compartilhada. Uma forma produtiva de trabalho tem sido a
co-investigação ou investigação militante: um modo de fazer alianças para
pensar, discutir e problematizar o que entendem por uma vida política. Nessa
linha, foram decisivos uma série de encontros e trabalhos, como parte do
movimento de piquete, de direitos humanos, de camponeses, e de gestão
comunitária da educação. A partir da estrutura de uma editora própria, a Tinta
Limón Ediciones, propõem-se a editar e propagar estas discussões assim como
outras relacionadas com a filosofia e a dimensão latino-americana própria do
pensamento, exigido pela questão da emancipação. Actualmente encontram-se
envolvidos em diversas iniciativas ligadas à investigação, à edição e ao debate
colectivo que procuram, de acordo com as necessidades da época, construir um
espaço enquanto comum.
Atelier Hacer-Ciudad
A sua oficina
funciona na Cazona de Flores, em Buenos Aires (casa autogerida por grupos e
colectivos múltiplos e diversos). Fazem parte da oficina pessoas que participam
ou participaram numa ou em várias experiências de investigação e acção colectivas
(Colectivo Situaciones, Simbiosis Cultural, Observatório Metropolitano, Raíces
al viento, No damos cátedra, Juguetes Perdidos, cadeiras universitárias
alternativas, etc.).