De que valeria a obstinação de
saber se ela assegurasse apenas a aquisição de conhecimentos e não, de um certo
modo, e tanto quanto for possível, o descaminho daquele que conhece? Momentos
há na vida em que a questão de saber se é possível pensar de modo diferente
daquele que se pensa e perceber de modo diferente daquele que se vê é
indispensável para continuar a observar ou a reflectir.
Michel Foucault
A tradução para
português da entrevista “Space, Knowledge and Power” (publicada na revista Skyline do Institute for Architecture and Urban Studies, de Nova Iorque) mais
de trinta anos depois, pode parecer um facto extemporâneo ou anacrónico, sobretudo
no que diz respeito à circunstância actual da prática arquitectónica. E, de
facto, é bem provável que o seja: e, por isso, não há aqui nenhum desejo evocativo
de pertinência iluminadora deste texto para o actual debate da disciplina. Por
outro lado, não se trata nem de apresentar esta entrevista como um documento
arqueológico, uma espécie de souvenir
a preencher o cabinet de curiosités
de um qualquer nostálgico coleccionador do passado da disciplina, nem como um
documento histórico, entregue às mãos cirúrgicas da figura do especialista como
corpo mortificado sans vie e sans rêve.
“Espaço, saber e poder” / arquitectura
Talvez em
nenhum outro sítio, nem mesmo no minucioso e exaustivo Vigiar e Punir, Michel Foucault tenha interpelado tão directamente
a arquitectura à luz daquilo que foi o seu pensamento e as suas investigações,
como nesta entrevista de 1982. E podemos dizer arquitectura, não apenas
enquanto suporte material não-discursivo (edifícios, espaços, instituições) ou
discursivo (tratados ou textos), mas na sua função enquanto disciplina (prática
e saber). O último parágrafo da entrevista condensa essa mesma interpelação
quando Foucault propõe que a arquitectura seja compreendida dentro de uma “história
geral da techné”, isto é, como uma
técnica, “uma racionalidade prática governada por um objectivo consciente”,
susceptível de usar elementos das “ciências exactas” e das “não-exactas”
(ciências sociais e humanas), estando sempre inscrita dentro de uma determinada
relação ou função de governo [1]. E essa é a linha de fuga de uma entrevista, onde Michel Foucault (ao
contrário do que possa parecer aos leitores mais apressados) não desvaloriza a
função da arquitectura enquanto dispositivo de organização e implementação do espaço
(social e político), mas coloca-a, sim, numa relação não-impositiva e
heterogénea com as forças de poder, as práticas quotidianas e espaciais, que
dela resultam, que nela decorrem e que com ela se confrontam.
“O espaço –
como refere Foucault – é fundamental em qualquer forma de vida comunitária; (…)
em todo o exercício de poder”. E a arquitectura é, aqui, uma prática e um
saber, um corpus teórico e uma techné,
que dizem respeito à produção desse espaço, “um elemento de suporte que
assegura uma certa distribuição de pessoas no espaço”, que “codifica as
relações que estas estabelecem entre si” introduzindo, simultaneamente, “um
certo número de efeitos específicos”. Mas isso não significa que a arquitectura
por si mesma possa ser qualquer coisa como uma “máquina libertadora”. Não há
nada que seja por si mesmo “funcionalmente libertador”, nem pelo contrário,
absolutamente opressivo – talvez nem mesmo a figura extrema do campo de
concentração. Para Foucault, ficam sempre “possibilidades de resistência, de
desobediência e de constituição de grupos de oposição”. E isso porque a
liberdade não é determinada pela “ordem dos objectos”, mas é “fundamentalmente
uma prática, é aquilo que se deve exercer”. Mas isso não significa, como refere
o próprio Foucault, que não haja projectos de arquitectura aptos a “modificar
alguns constrangimentos, flexibilizá-los, ou mesmo quebrá-los”. Quando Paul Rabinow
pergunta se Le Corbusier é um exemplo de sucesso, Foucault responde: “não, não pode ter sucesso (…), se pudéssemos
encontrar um lugar…onde a liberdade é efectivamente exercida, descobrir-se-ia
que tal não se deve à ordem dos objectos,
mas uma vez mais, deve-se a uma prática
da liberdade” [itálicos meus]. Nenhum projecto poderá
assegurar automaticamente a liberdade, “a garantia da liberdade é a liberdade”.
Mas, de novo, isso não significa uma desvalorização ou, mesmo, uma apolitização da arquitectura (no sentido
de esta ser um instrumento neutro), mas sim, o facto de que “nada é fundamental
(…) na análise da sociedade”. Como acabará por dizer Foucault: a arquitectura
pode resolver problemas sociais e pode “produzir efeitos positivos quando as
intenções libertadoras do arquitecto coincidem com as práticas reais das
pessoas no exercício da sua liberdade”.
1.Michel
Foucault “Espaço, saber e poder”. Revista Punkto.
Todas as citações sem referência dizem
respeito a esta entrevista.
Ordem dos objectos e prática da
liberdade
Ordem dos objectos e prática da liberdade são assim dois pólos de um movimento de
agitação e de oscilação essencial não apenas desta entrevista, mas da própria
obra foucaultiana.
(i) Por um
lado, a noção que o poder não é algo que se exerce de forma centralizada, uma
fonte única e omnipotente, mas uma rede heterogénea de poderes, uma microfísica do poder. Não há o “Poder”,
mas relacionamentos de forças e relações de saber imanentes a todo o
corpo social, que operam não apenas negativamente (interdição, proibição) mas
de forma positiva; o poder é produtor, operatório: reparte, compõe, normaliza espaços, indivíduos, objectos e,
sobretudo, incita, suscita, produz [2]. É aquilo que Foucault chamará um biopoder – um paradigma de poder que se
manifesta já não através do direito do Soberano de decidir “fazer morrer”, mas
que toma a própria vida (individual e colectiva – aquilo a que se chamará a população) e o espaço (o território) como
objecto de poder: racionalizando-o, gerindo-o, disciplinando-o. A esse nível é
fundamental compreender, como refere Foucault em “O Olho do Poder”, como a
arquitectura “começa no final do século XVIII a envolver-se em problemas de
população, saúde e em questões urbanas. Antes, a arte de construir correspondia
à necessidade de manifestar o poder, a divindade e a força. (…) Depois, no
final do século XVIII, novos problemas emergem: torna-se uma questão de usar a
disposição do espaço para fins económico-políticos.” [3]
(ii) Por outro
lado e sob o pano de fundo do projecto da “Historia da Sexualidade” e do curso
sobre a “Hermenêutica do sujeito”, Foucault começa a dirigir a sua investigação
para os processos através dos quais os relacionamentos de poder afectam e
produzem sujeitos (formas de subjectividade). Porque a palavra “sujeito” orbita
em torno de uma ambiguidade central: tanto significa o modo através do qual um
indivíduo se subjectiva, assume uma individualidade própria, se torna uma
singularidade, como ao mesmo tempo, torna evidente que nesse processo ele está
já perante um determinado processo de sujeição a um poder externo. Mas o que
vai interessar Foucault, sobretudo a partir do início dos anos oitenta, já não
é somente compreender como é que o sujeito se torna objecto de saber e de
dominação, mas as formas de entendimento que os indivíduos criam acerca de si
próprios, as “técnicas de si”, as “artes
de existência”, que lhes permitem
realizar pelos seus próprios meios, um certo número de operações nos seus
corpos, na sua conduta, de forma a transformarem-se, modificarem-se e,
sobretudo, dessujeitarem-se de um
determinado relacionamento de poder [4]. Como escreve Deleuze: “A vida
torna-se resistência ao poder quando o poder toma por objecto a vida”. [5]
2. “(…) as grandes teses de Foucault sobre o poder…
desenvolvem-se em três rúbricas: o poder não é essencialmente repressivo (pois
que «incita, suscita, produz»); exerce-se antes de se possuir; passa pelos
dominados, não menos que pelos dominantes (…). Não se pergunta «o que é o
poder?» e «de onde é que ele vem?», mas: como é que se exerce?” Gilles Deleuze, Foucault, Vega, p.100.
3. Michel Foucault, “The Eye of Power” [L’Oeil du Pouvoir, 1979], in Power/knowledge, p.148-149.
4.
Cf. “E por ‘artes de existência’ é necessário entender práticas reflectivas e
voluntárias através das quais os homens não apenas se fixam regras de conduta,
mas também procuram transformar-se eles próprios, modificar-se no seu ser
singular e fazer da sua vida uma obra que integra certos valores estéticos e
responde a certos critérios de estilo”. Michel Foucault, História da Sexualidade II. O uso dos prazeres, Relógio d’Água,
1994, p.17.
5.
Gilles Deleuze, Foucault, Vega, 1998,
p.125.
Espaço / poder: arquitectura
É nesse
sentido que podemos compreender esse movimento pendular entre ordem dos objectos e prática da liberdade que atravessa esta
entrevista. Esse movimento entre sujeição (poder) e subjectivação (liberdade),
o jogo da verdade entre o reconhecimento dos efeitos de sujeição produzidos
pelos dispositivos de poder (sejam eles, leis, instituições, enunciados,
jornais, arquitecturas) e as “técnicas de si” que o sujeito constitui para se
reconhecer e libertar-se desses efeitos de poder. E será também nesse movimento
que podemos compreender a interpelação foucaultiana à arquitectura.
Voltando à
pergunta inicial. Mais do que qualquer pertinência é a condição extemporânea
deste texto que nos interessa, como documento capaz de nos ajudar a pensar a
arquitectura, a prática actual do fazer arquitectura e do ser-se arquitecto.
Sobretudo, reconhecendo que a arquitectura é uma prática e um saber que estão
inscritos no quadro de uma relação entre saber e poder, uma techné, uma “racionalidade prática que
tem um objectivo consciente”, que visa um certo modo de produzir espaço, que produz
um certo tipo de efeitos, provocando práticas espaciais e processos de
subjectivação, que apesar de não estarem determinados a essa “ordem dos
objectos”, nunca deixam de se constituir numa relação heterogénea e
não-impositiva com eles.
Trata-se,
então, de reconhecer, ao contrário do que é hoje genericamente aceite, que os objectos
arquitectónicos não são contentores neutros ou passivos, mónadas auto-referenciais
flutuando num espaço euclidiano, abstracto e homogéneo. São, sim, dispositivos arquitecturais, que estão sempre inscritos numa certa
axiomática da dominação, que não significa (como já vimos) um qualquer regime
de repressão ou proibição, mas um modo próprio de produção de espaço, de o repartir, distribuir, compor; uma certa
maneira de conceber as relações entre indivíduos, de os suscitar, incitar, produzir; mas também de entender as relações
sociais, de recortar o privado e o comum, de formular uma relação com a
natureza, de dar forma a um mundo.
Dispositivos
arquitecturais que espacializam relacionamentos de poderes tanto como organizam
e definem formas de associação (quer seja o hospital psiquiátrico, a prisão, a boulevard parisiense, os “condensadores
sociais” soviéticos ou o centro comercial), que agem sobre os indivíduos, sobre
os seus corpos, provocando um certo tipo de relações entre eles, processos de
subjectivação/sujeição e práticas espaciais.
A história da
arquitectura é a história de “territórios contestados” [6], usando um termo de Bruno Latour e Albena
Yaneva, e não apenas uma história de sucessão de estilos e formas criadas por
um qualquer “espírito da época” abstracto. Edifícios, lugares e comunidades
carregadas de conflitos políticos, legais e sociais, com as suas exigências, as
suas aspirações de dominação ou de emancipação, com os seus direitos ao espaço,
à cidade ou à habitação.
Apesar de toda
a racionalidade político-económica que se desenvolveu durante os séculos XIX e
XX em torno do espaço e do território, a sua emergência enquanto objecto de
estudo histórico-político e mesmo arquitectónico foi surpreendentemente
demorada. Diz Michel Foucault, em “O Olho do Poder”: “Toda uma história está
por escrever sobre espaços – que poderia ser simultaneamente uma história sobre
poderes (ambos os termos no plural) – das grandes estratégias da geopolítica às
pequenas tácticas do habitat, da arquitectura institucional da sala de aula ao
desenho de hospitais, passando por instalações económicas e políticas. É
surpreendente quanto tempo demorou o problema do espaço a emergir como problema
histórico-político”. [7]
Contudo, mesmo
com o assinalável contributo das investigações de Michel Foucault (mas também
de Henri Lefebvre) ao longo dos anos setenta e oitenta, a enunciação do
problema do espaço dentro do campo disciplinar da arquitectura tendeu a ficar reduzido
à sua dimensão funcionalista/económica (o espaço como matéria de organização e
logística de elementos e funções – que assume relevância com a emergência das
vanguardas modernas) ou à sua dimensão poético-fenomenológica (ou
existencialista, que emerge nos anos cinquenta com Heidegger, Bachelard e
Norberg-Schulz). Sendo raramente problematizado na sua condição
histórico-política, isto é, nessa relação entre espacialização de um poder (repartir,
distribuir, compor) e efeitos de
poder (práticas de subjectivação/sujeição: suscitar, incitar, produzir), entre ordem dos objectos e prática
da liberdade.
6. “Give
me a gun and I will make all buildings move”: An ANT’s view of architecture.
Bruno Latour, Albena Yaneva. http://www.bruno-latour.fr/node/206
7. Michel Foucault, “The Eye of Power” [L’Oeil du Pouvoir, 1979], in Power/knowledge, p.148-149.
Saber / poder:
arquitectura
E,
precisamente, isto leva-nos ainda a uma outra coordenada (final) da
investigação foucaultiana. Não basta eleger como objecto de reflexão os efeitos de poder que a arquitectura inscreve,
será preciso igualmente interrogar a própria disciplina acerca dos efeitos de poder que sobre ela actuam, que
definem e configuram, em cada momento, o seu espaço conceptual, a sua acção, o
seu papel e a posição do arquitecto no âmbito da divisão geral do trabalho e
das áreas do saber.
No caso
específico da noção de espaço é fundamental compreender que a sua
conceptualização (dentro do campo da arquitectura) como problema puramente
económico-funcional ou como experiência fenomenológica, é resultado de
determinadas condições de pensamento históricas (por exemplo, o facto da sua
noção ter sido desenvolvida dentro dos debates novecentistas em torno da
percepção e da psicologia da forma na história da arte), mas também, resultado
dos efeitos de poder que actuam sobre a disciplina, e que tendem a anular ou a
deixar escapar a sua condição ética e política. Henri Lefebvre operou uma
crítica particularmente fecunda, nos anos 70, a esta compartimentação e
especialização do espaço, que permite uma abstracção e autonomização que iliba
as diversas disciplinas ligadas à sua produção de qualquer responsabilidade
politica e problematização ética. [8]
Neste sentido,
quando se fala da progressiva redução da arquitectura a exercício de estilo, a
uma mera operação de reprodução e organização logística e funcional de
programas e tipologias, a dissolução da teoria ou do pensamento crítico na
disciplina, a própria concepção da arquitectura como prática apolítica
vocacionada para um progresso teleológico material, devemos ver tudo isso
dentro de um processo total de reconfiguração da arquitectura dentro das
actuais estruturas neoliberais de (bio)poder.
Um processo
onde a arquitectura veio a ocupar um lugar bem preciso. Por um lado, opera como
regime de unificação dos processos divergentes de produção de espaço,
conferindo um conteúdo político e social através de instituições públicas
(equipamentos colectivos e culturais) e dissimulando, dessa forma, processos
violentos de expropriação ou de gentrificação,
assim como as desigualdades decorrentes da distribuição e circulação do
capital. Uma arquitectura-ícone
reduzida à sua condição de objecto de consumo e ao seu valor de exposição;
circula enquanto imagem prête-à-porter
veiculando certos modos de vida e alimentando o marketing e o turismo urbano
das cidades. Por outro lado, a arquitectura funciona como linha de montagem dos
ciclos produtivos, sendo pura estratégia de organização logística e funcional
de programas e tipologias, onde o espaço e a vida são reduzidos à sua dimensão
económica. O arquitecto aqui já não é um artífice das formas e dos seus
efeitos, mas um especialista que responde com a maior eficácia a um problema
colocado.
Em ambos os
casos a arquitectura alimenta-se de uma vaga noção de progresso e de
civilização (quer seja ao serviço da democracia liberal ou dos regimes
ditatoriais na China, no Médio Oriente ou em África), mas que servem apenas
para alimentar a circulação de capital e a exploração de recursos,
independentemente das necessidades de comunidades e populações, produzindo e acentuando
desigualdades sociais e pobreza.
8. Henri
Lefebvre, “The Production of Space”. Ver igualmente Lukasz Stanek, Henri Lefebvre on space.
Arquitectura /
política
Será nesse
movimento pendular de interpelação, entre os efeitos de poder que a arquitectura inscreve e os efeitos de poder que se inscrevem sobre
a arquitectura, que se poderá eventualmente recolocar e repensar uma tal
condição política da disciplina. Isto significa, hoje, tomar como objecto de
reflexão da disciplina não apenas os processos de produção de espaço (do
doméstico ao urbano, da casa à cidade) que a arquitectura implementa debaixo
das estruturas neoliberais de poder, mas igualmente, tomar como objecto de
reflexão os instrumentos conceptuais do projecto de arquitectura (técnicas,
discursos, práticas, noções), o seu espaço de acção e de pensamento dentro das
estruturas produtivas neoliberais actuais. E nesse gesto será preciso,
igualmente, desarmadilhar a concepção ideológica de espaço neutro e puramente
abstracto (puramente económico-funcional ou fenomenológico), para fazer emergir,
seguindo o repto de Foucault, o conteúdo histórico-político do espaço, mas
também, o conteúdo histórico-político da própria arquitectura.
•
Imagem
Aldo Van Eyck, Orfanato em
Amesterdão (1955-1960)
Nota da edição
Este artigo é um texto-comentário à
entrevista de Michel Foucault “Espaço, saber e poder” que foi publicada no
Punkto em português.
Pedro Levi Bismarck
Licenciado em Arquitectura (FAUP,
2008). Está actualmente a desenvolver Tese de Doutoramento em Arquitectura: Teoria, Projecto, História
na FAUP – sendo bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). É editor
do projecto editorial Punkto.
Ficha técnica
Data de
publicação: 28.04.2015
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