Espaço, saber e poder • Michel Foucault






[ Paul Rabinow ]
Numa entrevista aos geógrafos do Jornal Hérodote, afirmou que a arquitectura, no final do século dezoito, torna-se política. Claro que em períodos anteriores, como por exemplo, durante o Império Romano ela já tinha sido política. O que torna tão particular o século dezoito? [1]

1. Paul Rabinow refere-se a uma entrevista que Michel Foucault deu aos geógrafos do Jornal Hérodote (1976) e publicado no livro Power / Knowledge sob o título “Questions on Geography” [Questions à Michel Foucault sur la géographie”]. Mas na verdade, é bem provável que Rabinow se esteja a referir à entrevista “L’oeil du pouvoir” [“The Eye of Power”] integrada na mesma edição. Aí, respondendo a Michelle Perrot que pergunta “Então, a chave era a arquitectura? De facto, e a arquitectura enquanto modo de organização politica?”, Foucault afirma: “A questão parece-me, é que a arquitectura começa no final do século XVIII a envolver-se em problemas de população, saúde e em questões urbanas. Antes, a arte de construir correspondia à necessidade de manifestar o poder, a divindade e a força. (…) Depois, no final do século XVIII, novos problemas emergem: torna-se uma questão de usar a disposição do espaço para fins económico-políticos.”

[ Michel Foucault ] 
A minha formulação não terá sido a mais correcta. Não quis dizer que a arquitectura não era política antes do século dezoito e que tal aconteceu apenas nessa época. O que quis dizer foi que no século dezoito assiste-se ao desenvolvimento de uma reflexão sobre a arquitectura em função de objectivos e técnicas de governo das sociedades. Começa a surgir uma forma de literatura política que se interroga sobre como deve ser a ordem de uma sociedade, o que deve ser uma cidade, tendo em conta as exigências de manutenção da ordem; e tendo em conta, também, que se devem evitar epidemias, evitar revoltas, permitir uma vida familiar decente e moral. Em função desses objectivos, como conceber simultaneamente a organização de uma cidade e a construção de uma infra-estrutura colectiva? Como devem ser construídas as casas? Não estou a dizer que este tipo de reflexão não aparece senão no século dezoito, digo apenas que no século dezoito tem lugar uma reflexão profunda e geral sobre estas questões. Se consultarmos um relatório policial da época – os tratados estão consagrados às técnicas de governo – descobre-se que a arquitectura e o urbanismo ocupam um lugar extremamente importante. Foi isso que quis dizer.

Entre os antigos, em Roma ou na Grécia, qual era a diferença?

No que diz respeito a Roma, vê-se que o problema gira em torno de Vitrúvio. A partir do século dezasseis, Vitrúvio torna-se objecto de uma reinterpretação, mas podem encontrar-se no século dezasseis – e sem dúvida também na Idade Média – considerações muito semelhantes às de Vitrúvio; pelo que estas eram consideradas pelo menos como “reflexões sobre”. Os tratados consagrados à política, à arte de governar, ao que é um bom governo, nem sempre incluíam capítulos ou análises dedicadas à organização das cidades ou à arquitectura. A República de Jean Bodin [2] não possui comentários detalhados sobre o papel da arquitectura, em contrapartida, os tratados de polícia do século dezoito estão cheios.
2. Jean Bodin, Les Six Livres de la République, Paris, J. Du Puys, 1576.

Quer dizer que existiam as técnicas e as práticas, mas não os discursos?

Não disse que os discursos sobre arquitectura não existiam antes do século dezoito. Nem disse que os debates de arquitectura antes do século dezoito não tinham qualquer dimensão ou significado político. O que quis foi sublinhar que, a partir do século dezoito, todos os tratados que consideram a política como arte de governar os homens, incluem, necessariamente, um ou vários capítulos sobre urbanismo, equipamentos colectivos, higiene e arquitectura privada. Estes capítulos não se encontram nas obras dedicadas à arte de governar do século dezasseis. Esta mudança provavelmente não se encontra nas reflexões dos arquitectos sobre a arquitectura, mas aparece claramente nas reflexões dos homens políticos.

Então não se tratou necessariamente de uma mudança na teoria da arquitectura?

Sim, exacto. Não foi necessariamente uma mudança no espírito dos arquitectos ou nas suas técnicas – embora isso permaneça por provar – mas no espírito dos homens políticos, na escolha dos objectos que lhes começam a interessar e no tipo de atenção que lhes dedicam. Ao longo do século dezassete e dezoito, a arquitectura passa a ser um desses objectos.




[1] Plantas, cortes e alçados do Panóptico de Jeremy Bentham, desenho de Willey  Reyeley (1791).
[2] Planta das Minas de Sal de Arc-et-Senans, Claude-Nicolas Ledoux (1775).

Pode dizer porquê?

Bom, penso que terá a ver com um conjunto de fenómenos – por exemplo: o problema da cidade e a ideia, claramente formulada no início do século dezassete, de que o governo de um grande Estado, como a França, deve pensar o seu território segundo o modelo da cidade. A cidade deixa de ser compreendida como um lugar privilegiado, uma excepção num território de campos, florestas e estradas. As cidades deixam de ser ilhas que escapavam à lei comum. Pelo contrário, com os problemas que levantavam e as formas particulares que desenvolveram, as cidades passam a servir de modelo para uma racionalidade governamental que se aplicará ao território no seu conjunto.
Há toda uma série de utopias ou projectos de governo do território que tomam forma a partir da ideia de que o Estado é como uma grande cidade; a capital é a sua praça central, as estradas são as suas ruas. Um Estado estará bem organizado quando um sistema de policiamento tão apertado e eficaz como o das cidades for estendido a todo o território. No início, a noção de polícia aplicava-se apenas a um conjunto de regulações que deveriam assegurar a tranquilidade da cidade, mas, nesse momento, a polícia torna-se o tipo próprio de racionalidade para o governo de todo o território. O modelo da cidade tornou-se a matriz a partir de onde se produzem as regras que se aplicam ao Estado no seu conjunto.
A noção de polícia, mesmo na França de hoje, é frequentemente mal compreendida. Quando se fala a um francês de polícia, este pensará imediatamente em pessoas de uniforme ou nos serviços secretos. No século dezassete e dezoito, «polícia» significava um programa de racionalidade governamental. Podemos defini-la como o projecto de criar um sistema de regulamentação da conduta geral dos indivíduos onde tudo seria controlado, até ao ponto em que as coisas se sustentariam por elas próprias, sem que qualquer intervenção fosse necessária. Esta é a maneira tipicamente francesa de conceber o exercício da «polícia». Os ingleses, naquilo que lhes diz respeito, não desenvolveram um sistema comparável, e isto por um certo número de razões: por um lado, devido à tradição parlamentar, e por outro, devido à tradição da autonomia local e comunitária – isto sem mencionar o sistema religioso.
Podemos situar Napoleão quase exactamente no ponto de ruptura entre a velha organização do Estado de polícia do século dezoito (entendido, claro, no sentido em que estivemos a discuti-lo e não no sentido de Estado policial tal como é conhecido hoje) e as formas do Estado moderno, das quais foi inventor. De qualquer modo, parece que durante o século dezoito e dezanove se abre caminho – com bastante rapidez no caso do comércio e mais lentamente noutros domínios – à ideia de uma polícia que conseguiria penetrar, estimular, regulamentar, e tornar quase automáticos todos os mecanismos da sociedade.
Esta ideia foi desde então abandonada. Tendo-se invertido a questão. Já não se pergunta: Qual é a forma de racionalidade governamental que poderá penetrar o corpo político até aos seus elementos mais fundamentais? Mas antes: Como é possível o governo? Isto é, qual o princípio de limitação que se deve aplicar às acções governamentais para que as coisas adoptem o melhor rumo, para que estas se adaptem à racionalidade do governo e não necessitem de intervenção?
É aqui que a questão do liberalismo aparece. Penso que num determinado momento torna-se evidente que governar excessivamente seria não governar nada: os resultados provocados seriam o oposto dos pretendidos. Aquilo que foi descoberto nessa época – e trata-se de uma das grandes descobertas do pensamento político de finais do século dezoito – foi a ideia de sociedade. Isto é, a noção de que o governo não tem apenas de lidar com um território, com um domínio e com os seus sujeitos, mas igualmente com uma realidade complexa e independente com leis próprias e mecanismos de reacção, regulamentações específicas, e desordem possível. Esta realidade nova é a sociedade. A partir do momento em que se deve manipular a sociedade, não é possível considerá-la totalmente penetrável pela polícia. É preciso levar em conta o que ela é. Torna-se necessário reflectir sobre ela, sobre as suas características específicas, as suas constantes e as suas variáveis.

Dá-se então uma alteração na importância do espaço. No século dezoito havia um território e o problema de governar os habitantes desse território: a título de exemplo pode citar-se La Métropolitée (1682) de Alexandre Le Maître [3] – um tratado utópico sobre o modo de construir uma capital – ou pode entender-se a cidade como uma metáfora ou símbolo do território e da forma de o governar. Tudo isto é da ordem do espaço, ao passo que depois de Napoleão, a sociedade não está necessariamente tão espacializada…

3. Le Maître, A., La Métropolitée, ou De l’établissement des villes capitales, Amsterdam, 1682.

Exacto. Por um lado, já não está tão espacializada, mas por outro lado, surgem um certo número de problemas que são próprios da ordem do espaço. O espaço urbano tem os seus perigos específicos: doenças como as epidemias de cólera que atingiram a Europa entre 1830 e 1880; mas também a revolução, como as revoltas urbanas que agitaram toda a Europa nesse período. Estes problemas de espaço, que provavelmente não eram novos, tomaram uma importância considerável.
Em segundo lugar, um novo aspecto das relações entre espaço e poder eram os caminhos-de-ferro. Estes estavam a estabelecer uma rede de comunicações que já não correspondia necessariamente à rede tradicional das estradas, mas que, apesar de tudo, tinha que levar em conta a natureza da sociedade e a sua história. Para além disso, havia todo o conjunto de fenómenos a que os caminhos-de-ferro dão origem, quer fossem as resistências que provocavam, as transformações da população, ou as mudanças no comportamento das pessoas. A Europa tornou-se imediatamente sensível às mudanças de comportamento provocadas pelos caminhos-de-ferro. O que aconteceria, por exemplo, se fosse possível casar entre Bordéus e Nantes? Algo impensável até então. O que aconteceria se as pessoas na Alemanha e em França se pudessem encontrar e aprender a conhecer-se? Seria a guerra ainda possível assim que houvesse caminhos-de-ferro? Em França, disseminou-se a teoria que os caminhos-de-ferro iriam aumentar a familiaridade entre pessoas, as novas formas de universalidade humana assim produzidas tornariam a guerra impossível. Mas aquilo que as pessoas não anteciparam – muito embora o comando militar Alemão, bem mais atento que o seu homólogo francês, estivesse plenamente consciente disso – era que, pelo contrário, o caminho-de-ferro tornava a guerra bem mais fácil. O terceiro desenvolvimento, que veio mais tarde, foi a electricidade.
Havia então problemas nas relações entre o exercício do poder político e o espaço do território, ou o espaço das cidades – relações completamente novas.




[3] Henri Gautier, Traité des ponts (1716). Um dos primeiros inspectores do Corps des Ponts et Chaussées que antecedeu a criação da École.
[4] Ataque à Barrière de Passy, durante a Revolução Francesa. Uma das 47 barrières que Claude-Nicolas Ledoux desenhou (1784-1790).

Era então menos uma questão de arquitectura do que antes. Aquilo que descreve são uma espécie de técnicas do espaço…

De facto, a partir do século dezanove os grandes problemas do espaço, são de natureza diferente. O que não quer dizer que se tenham esquecido os problemas de natureza arquitectónica. Relativamente aos primeiros problemas que referi – a doença e os problemas políticos – a arquitectura tem um papel muito importante. As reflexões sobre urbanismo e sobre o desenho da habitação operária, todas essas questões eram parte da reflexão sobre arquitectura.

Mas a própria arquitectura, a École des Beaux-Arts, coloca as questões do espaço de um modo completamente diferente.

É verdade. Com o nascimento dessas novas tecnologias e desses novos processos económicos, assiste-se ao nascimento de um pensamento sobre o espaço que já não é modelado sobre a urbanização do território, tal como era considerada pelo Estado de polícia, mas que vai muito além dos limites do urbanismo e da arquitectura.

Consequentemente, a École des Ponts et Chaussées…[4]

4. A École Nationale des Ponts et Chaussées ("Escola Nacional de Pontes e Estradas"), a primeira escola de engenharia civil criada em França e no mundo, foi fundada em 1747.

Sim, a École des Ponts et Chaussées e o papel capital que tiveram na racionalidade política em França é parte disso. Aqueles que pensaram o espaço não foram os arquitectos, mas os engenheiros, os construtores de pontes, de estradas, viadutos, de caminhos-de-ferro, assim como os politécnicos que controlavam praticamente os caminhos-de-ferro franceses.

Esta situação continuou até hoje, ou estamos a assistir a uma transformação nas relações entre os técnicos do espaço?

Podemos constatar algumas mudanças, mas penso que hoje em dia os principais técnicos do espaço são ainda esses que estão a cargo do desenvolvimento do território, as pessoas da Ponts et Chaussées

Então os arquitectos não são necessariamente os mestres do espaço que foram antes, ou que acreditavam ser?

É verdade. Eles não são os técnicos ou engenheiros dessas três grandes variáveis – território, comunicação e velocidade. Estas escaparam do domínio dos arquitectos.

Há algum projecto de arquitectura, passado ou presente, que lhe pareça representar forças de libertação ou de resistência?

Não me parece possível dizer que uma coisa é da ordem da «libertação» e outra é da ordem da «opressão». Há um certo número de coisas que podem dizer-se, com alguma certeza, sobre um campo de concentração no sentido de não ser um instrumento de libertação, mas deve ter-se em conta o facto – geralmente ignorado – que, exceptuando a tortura e a execução que tornam toda a resistência impossível, por muito terrível que seja um dado sistema, ficam sempre possibilidades de resistência, desobediência e de constituição de grupos de oposição.
Por outro lado, não penso que exista algo que seja funcionalmente – pela sua própria natureza – absolutamente libertador. A liberdade é uma prática. Assim, haverá, de facto, um certo número de projectos que procuram modificar alguns constrangimentos, flexibilizá-los ou mesmo quebrá-los, mas nenhum desses projectos pode, simplesmente, pela sua natureza, assegurar que as pessoas sejam automaticamente livres, que isso possa ser estabelecido pelo projecto em si mesmo. A liberdade do homem nunca é assegurada pelas instituições e leis destinadas a garanti-las. E esta é a razão pela qual quase todas estas leis e instituições estão sempre aptas a serem viradas ao contrário. Não porque são ambíguas, mas simplesmente porque a «liberdade» é aquilo que se deve exercer.

Existem exemplos urbanos disso? Ou exemplos que mostrem o sucesso dos arquitectos?

Bom, até certo ponto existe Le Corbusier, que é descrito hoje – com uma certa crueldade que me parece totalmente desnecessária – como uma espécie de cripto-Estalinista. Ele foi, estou certo, alguém cheio de boas intenções, e aquilo que fez estava de facto dedicado a produzir efeitos libertadores. É possível que os meios que propôs tenham sido, no final de contas, menos libertadores do que aquilo que pensou, mas, de novo, penso que nunca pode corresponder à estrutura das coisas garantir o exercício da liberdade. A garantia da liberdade é a liberdade.

Então não pensa em Le Corbusier como um exemplo de sucesso. Está simplesmente a dizer que a sua intenção era libertadora. Pode-nos dar um exemplo de sucesso?

Não, não pode ter sucesso. Se pudéssemos encontrar um lugar, e talvez haja alguns, onde a liberdade é efectivamente exercida, descobrir-se-ia que tal não se deve à ordem dos objectos, mas, uma vez mais, deve-se a uma prática da liberdade. O que não quer dizer, apesar de tudo, que se pode deixar as pessoas em bairros de lata, pensando que elas podem simplesmente exercer aí os seus direitos.

Isto significa que a arquitectura não pode, por si própria, resolver problemas sociais?

Eu penso que pode e produz efeitos positivos quando as intenções libertadoras do arquitecto coincidem com as práticas reais das pessoas no exercício da sua liberdade.




[5] Familistère de Guise, Jean-Baptiste Godin, 1858-1883
[6], Unité d'habitation de Marselha, Corbusier. Fotografia de René Burri (1958)

Mas a mesma arquitectura pode servir outros fins?

Absolutamente. Deixe-me dar um outro exemplo: o Familistère de Jean-Baptiste Godin em Guise (1859). A arquitectura de Godin estava claramente orientada para a libertação das pessoas. Aqui estava algo que manifestava o poder dos trabalhadores ordinários em participar no exercício da sua profissão. Foi um sinal importante e um instrumento de autonomia para um grupo de trabalhadores. Contudo, ninguém podia entrar ou sair sem ser visto por todos – um aspecto da arquitectura que podia ser totalmente opressivo. Mas só pode ser opressivo se as pessoas estivessem dispostas a usar a sua presença para vigiar os outros. Imagine-se que se estabelecia aí uma comunidade que se entregava a práticas sexuais ilimitadas: seria de novo um lugar de liberdade. Eu penso que é um pouco arbitrário tentar dissociar a prática efectiva da liberdade, a prática de relações sociais e as distribuições espaciais. A partir do momento em que se separam as coisas, torna-se incompreensíveis. Só se pode compreender cada uma delas através das outras.

E contudo sempre se tentaram encontrar esquemas utópicos para libertar ou para oprimir os homens?

Os homens sonharam com máquinas libertadoras, mas não há, por definição, máquinas libertadoras. Isto não quer dizer que o exercício da liberdade seja completamente indiferente à distribuição espacial, mas só poderá funcionar quando existe uma certa convergência; no caso da divergência ou da distorção, torna-se imediatamente o oposto da intenção. As qualidades panópticas de Guise poderiam perfeitamente ter permitido que pudesse ter sido usado como prisão. Nada seria mais simples. É claro que, de facto, o Familistère pode bem ter servido como instrumento de disciplina e como uma forma de pressão do grupo bastante intolerável.

Então, de novo, a intenção do arquitecto não é o factor fundamentalmente determinante?

Nada é fundamental. Isto é o interessante na análise da sociedade. É por isso que nada me irrita tanto como as questões – que são, por definição, metafísicas – sobre os fundamentos do poder numa sociedade ou sobre a auto-instituição da sociedade. Não existem fenómenos fundamentais. Não há mais que relações recíprocas e desfasamentos constantes.

Indicou os médicos, os guardas prisionais, os padres, os juízes e os psiquiatras como figuras chave das configurações políticas que envolvem a dominação. Incluiria os arquitectos nesta lista?

Sabe, eu não estava verdadeiramente a tentar descrever figuras de dominação quando me referi a médicos e outras personagens do mesmo tipo, mas antes, a descrever pessoas através das quais o poder passava ou que são importantes no campo das relações de poder. O paciente de uma instituição psiquiátrica é colocado dentro de um campo de relações de poder bastante complicadas, que Erving Goffman analisou muito bem [5]. O padre de uma igreja Cristã ou Católica (nas igrejas protestantes as coisas são um pouco diferentes) é uma ligação importante num conjunto de relações de poder. O arquitecto não é um individuo desse tipo.
Afinal de contas, o arquitecto não tem poder sobre mim. Se eu quiser demolir ou alterar uma casa que este tenha construído para mim, criar novas compartimentações, adicionar uma chaminé, o arquitecto não tem qualquer controlo. É preciso colocar o arquitecto numa outra categoria – o que não significa que este não tenha nada a ver com a organização, a implementação do poder e com todas as técnicas através das quais se exerce o poder numa sociedade. Eu diria que devemos tomar em consideração tanto o que ele é – a sua mentalidade, a sua atitude – como os seus projectos, de forma a entender um certo número de técnicas de poder que estão investidas na arquitectura, mas ele não é comparável a um médico, a um padre, a um psiquiatra, ou a um guarda prisional.
5. Goffman, E., Asylums, New York, Doubleday, 1961.

Tem surgido recentemente um grande interesse, no âmbito da arquitectura, pelo pós-modernismo. Também se tornou uma questão importante na Filosofia – penso, sobretudo em Jean-François Lyotard e Jürgen Habermas. Claro que a referência histórica e a linguagem cumprem um papel importante na episteme moderna. Como vê o pós-modernismo, tanto do ponto de vista da arquitectura como no que diz respeito às questões filosóficas e históricas que este coloca?

Penso que existe uma tendência generalizada e fácil, que devemos combater, de designar como inimigo número um algo que acaba de ser produzido, como se esta fosse sempre a principal forma de opressão da qual nos devemos libertar. Esta atitude simplista acarreta várias consequências perigosas: para começar, uma tendência para procurar certas formas de arcaísmo ou algumas formas passadas imaginárias de felicidade que as pessoas, na verdade, não tinham. Por exemplo, nas áreas que me interessam, é muito divertido ver como a sexualidade contemporânea é descrita como algo absolutamente espantoso. Pensar que agora só é possível fazer amor depois de desligar a televisão! E em camas produzidas em série! “Não como nesses belos tempos em que…”. Bom, e então esses belos tempos em que se trabalhava dezoito horas por dia e havia seis pessoas para partilhar uma cama, se houvesse a sorte de ter uma cama. Há neste ódio do presente ou do passado imediato uma tendência perigosa de invocar um passado mítico. Depois, há o problema levantado por Habermas: se abandonamos o trabalho de Kant e de Weber, por exemplo, corremos o risco de cair na irracionalidade.
Estou completamente de acordo com isso, mas ao mesmo tempo, o problema que estamos a enfrentar hoje em dia é bastante diferente. Penso que desde o século dezoito, o grande problema da Filosofia e do pensamento crítico sempre foi – ainda é, e continuará a ser, espero eu – responder a esta pergunta: O que é esta Razão que usamos? Quais são os seus efeitos históricos? Quais são os seus limites e quais são os seus perigos? Como podemos existir como seres racionais, afortunadamente comprometidos a praticar uma racionalidade que está infelizmente atravessada por perigos intrínsecos? Devemos permanecer o mais perto possível desta pergunta, não esquecendo que é simultaneamente central e extremamente difícil de resolver. Para além disso, se é extremamente perigoso dizer que a razão é o inimigo que deve ser eliminado, também é perigoso dizer que qualquer questionamento crítico desta racionalidade corre o risco de nos fazer cair na irracionalidade. Devemos não esquecer – e digo isto não para criticar a racionalidade, mas para mostrar até que ponto as coisas são ambíguas – que foi na base da racionalidade flamboyant do Darwinismo social que o racismo foi formulado, tornando-se um dos mais poderosos e duradouros ingredientes do Nazismo. Esta foi, claro, uma irracionalidade, mas uma irracionalidade que, ao mesmo tempo, constituía uma certa forma de racionalidade…
Esta é a situação em que estamos e que devemos combater. Se os intelectuais em geral têm uma função, se o pensamento crítico tem uma função – e, precisamente, se a filosofia tem uma função no interior do pensamento crítico – é precisamente a de aceitar esta espécie de espiral, esta espécie de porta giratória da racionalidade que nos devolve à sua necessidade, ao que ela tem de indispensável, e, ao mesmo tempo, aos seus perigos intrínsecos.

Dito isto, seria justo dizer que teme menos o historicismo e o jogo das referências históricas do que alguém como Habermas; e também, que no domínio da arquitectura, os defensores do modernismo colocaram este problema quase em termos de crise de civilização, afirmando que se abandonássemos a arquitectura moderna para um retorno frívolo à decoração e aos motivos historicistas, estaríamos a abandonar a civilização. Por outro lado, alguns pós-modernistas defenderam que as referências históricas estavam dotadas de significação protegendo-nos assim dos perigos de um mundo sobre-racionalizado.

Apesar de não parecer responder à sua questão, eu diria isto: devemos suspeitar absolutamente e totalmente de tudo que se apresente como um retorno. Uma das razões é lógica: não há, de facto, tal coisa como um retorno. A história e o meticuloso interesse que se dedica à história é certamente uma das melhores defesas contra o tema do retorno. Pela minha parte, tratei a história da loucura ou o estudo da prisão dessa maneira porque sabia muito bem – e isto foi de facto o que desagradou a muita gente – que estava a seguir uma análise histórica que tornava possível uma crítica do presente; mas que não permitia que se dissesse: “Vamos voltar aos bons velhos tempos do século dezoito quando os loucos …”, ou “vamos voltar ao tempo em que a prisão não era um dos principais instrumentos…”. Não. Penso que a história nos preserva dessa espécie de ideologia do retorno.

Então, a simples oposição entre razão e história é perfeitamente ridícula…tomar partido entre os dois…

Sim. De facto, o problema para Habermas é, afinal de contas, um modo transcendental de pensamento que se oponha a toda a forma de historicismo. Eu sou, na realidade, bastante mais historicista e nietzschiano. Não penso que haja um uso próprio da história ou um uso próprio da análise infrahistórica – que, já agora, é bastante lúcida – que possa funcionar contra esta ideologia do retorno. Um bom estudo da arquitectura rural na Europa, por exemplo, mostraria até que ponto é absurdo querer voltar à pequena casa individual com cobertura de palha. A história protege-nos do historicismo – de um historicismo que invoca o passado para resolver os problemas do presente.

Também nos recorda que há sempre uma história; que os modernistas que queriam suprimir toda a referência ao passado estavam a cometer um erro.

Claro.

Os seus últimos livros falam da sexualidade entre os Gregos e os primeiros Cristãos. Podemos encontrar uma dimensão arquitectónica particular nesses problemas que aborda? [6]

6. O entrevistador refere-se ao primeiro volume da tríade História da Sexualidade: A Vontade de Saber, publicado em França em 1976. Apesar de só em 1984 terem sido publicados os outros dois volumes (O uso dos prazeres e O cuidado de si), no início da década de 80 Foucault abordou a questão da sexualidade em vários artigos e conferências.

Não encontrei nada, absolutamente nada. Mas o que é interessante é que, na Roma Imperial existiam, de facto, bordéis, bairros de prazer, zonas de crime, e por aí fora, e havia uma espécie de lugar de prazer quase público – os banhos, as termas. As termas eram um lugar importante de prazer e de encontro que desapareceram progressivamente da Europa. Na Idade Média, as termas eram um lugar de encontro entre homens e mulheres, assim como, entre homens e entre mulheres, embora raramente se fale disso. Aquilo que era referido e condenado, bem como experimentado, eram os encontros entre homens e mulheres, que desapareceram ao longo dos séculos dezasseis e dezassete.

Mas existem ainda no mundo árabe.

Sim. Mas na França é uma prática que em grande parte cessou. Ainda existia no século dezanove. Pode-se ver em Les Enfants du Paradis [7], com referências histórias exactas. Uma das personagens, Lacenaire, era – ninguém o menciona – um libertino e um chulo que usava rapazes para atrais homens mais velhos para os chantagear; há uma cena que faz referência a isso. Era preciso toda a inocência e anti-homosexualidade dos surrealistas para negligenciar este facto. Assim, os banhos continuaram a ser uma espécie de catedral do prazer no coração da cidade, onde se podiam ir tantas vezes quanto se quisesse, onde se passeava, onde cada um fazia as suas escolhas, se encontravam, tinham os seus prazeres, comiam, bebiam, discutiam…
7. Les Enfants du Paradis, filme de Marcel Carné, 1945.

O sexo não estava, então, separado dos outros prazeres. Estava inscrito no centro das cidades. Era público; servia um fim…

Exactamente. A sexualidade era, obviamente, considerado um prazer social para os Gregos e Romanos. O que é interessante sobre a homossexualidade masculina actual – e isto parece ter sido o caso da homossexualidade feminina durante algum tempo – é que as relações sexuais são imediatamente traduzidas em relações sociais e as relações sociais são compreendidas como relações sexuais. Para os Gregos e para os Romanos, de modo diferente, as relações sexuais inscreviam-se no interior das relações sociais, no sentido lato do termo. As termas eram um lugar de sociabilidade que incluía relações sexuais.
Pode-se comparar directamente o banho e o bordel. O bordel é de facto, um lugar, e uma arquitectura, do prazer. Desenvolve-se aí uma forma de sociabilidade muito interessante que foi estudada por Alain Corbin, em Les Filles de noce [8]. Os homens da cidade encontravam-se no bordel; eles estavam ligados uns aos outros pelo facto das mesmas mulheres passarem pelas suas mãos, pelo facto das mesmas doenças e infecções lhes serem transmitidas. Havia uma sociabilidade do bordel, mas a sociabilidade dos banhos como existia entre os antigos – e da qual poderá existir uma nova versão um dia – era completamente diferente da sociabilidade do bordel.
8. Alain Corbin, Les filles de noces (Paris, 1978)

Sabemos actualmente bastantes coisas sobre uma arquitectura para disciplinar. O que podemos dizer sobre uma arquitectura concebida para a confissão – uma arquitectura que estaria associada a uma tecnologia da confissão?

Refere-se à arquitectura religiosa? Eu penso que isso já foi estudado. Há todo o problema do carácter xenófobo do mosteiro. Um lugar onde se encontram regulamentos muito precisos que dizem respeito à vida em comum, ao sono, a alimentação, a oração, ao lugar de cada indivíduo na instituição e nas celas. Tudo isto foi programado desde muito cedo.



[7] Imagem do Frontispício de Orthopaedia de Nicolas Andry (1741).
[8] Capela da Prisão de Pentonville. Desenho de Henry Mayhew The Criminal Prisons of London (1862).

Numa tecnologia de poder da confissão, oposta a uma tecnologia disciplinadora, o espaço parece cumprir também um papel central.

Sim. O espaço é fundamental em qualquer forma de vida comunitária; o espaço é fundamental em todo o exercício de poder. Para fazer um comentário entre parênteses, lembro-me de ter sido convidado, em 1966, por um grupo de arquitectos para fazer um estudo do espaço [9]; tratava-se daquilo que eu tinha chamado, nessa altura, as «heterotopias», esses espaços singulares que se encontram em alguns espaços sociais cujas funções são diferentes ou mesmo opostas. Os arquitectos trabalharam sobre esse projecto e, no fim do estudo, alguém tomou a palavra - um psicólogo Sartriano – bombardeando-me, dizendo que o espaço é reaccionário e capitalista, mas que a história e o devir eram revolucionários. Este discurso absurdo não era totalmente estranho à época. Hoje, qualquer pessoa se riria à gargalhada com essa formulação, mas não nessa altura.

9. Foucault parece referir-se à conferência “Des espaces autres”, proferida no Cercle d’étude architecturales, 14 de Março de 1967. Publicada na Revista Architecture, Mouvement, Continuité, nº 5, Outubro de 1984, pp. 46-49. Michel Foucault só irá autorizar a publicação deste texto, escrito na Tunísia em 1968, na Primavera de 1984.

Os arquitectos, em particular, quando escolhem analisar um edifício institucional, como um hospital ou uma escola, do ponto de vista da sua função disciplinadora, tendem a interessar-se em primeiro lugar pelas paredes. Afinal de contas, são as paredes que eles concebem. A sua abordagem, contudo, está mais preocupada com o espaço, do que com a arquitectura, no sentido em que as paredes são apenas mais um aspecto da instituição. Como caracterizaria a diferença entre estas duas abordagens, entre o edifício em si e o espaço?

Penso que existe uma diferença de método e de abordagem. É verdade que, para mim, a arquitectura, nas vagas análises que fui fazendo, constitui apenas um elemento de suporte, que assegura uma certa distribuição de pessoas no espaço, uma canalização da sua circulação, assim como a codificação das relações que estas estabelecem entre si. Assim, não constitui apenas um elemento do espaço: é pensada precisamente como estando inscrita num campo de relações sociais, no seio da qual introduz um certo número de efeitos específicos.
Por exemplo, eu sei que há um historiador que está a fazer um estudo interessante de arqueologia medieval, onde coloca o problema da arquitectura, da construção das casas na Idade Média, a partir do problema da chaminé. Eu penso que ele irá mostrar que a partir de um certo momento foi possível construir uma chaminé no interior da casa – uma chaminé com uma lareira, não apenas uma peça a céu aberto ou uma chaminé exterior. A partir desse momento muitas coisas mudaram e certas relações entre indivíduos tornaram-se possíveis. Tudo isto me parece muito interessante, mas a conclusão que ele apresentou num artigo foi que a história das ideias e do pensamento é inútil.
O que é, de facto, interessante é que os dois aspectos são rigorosamente inseparáveis. Porque é que as pessoas se mobilizaram para encontrar uma maneira de construir uma chaminé dentro de casa? Ou porque é que puseram as suas técnicas ao serviço deste fim? A história das técnicas mostra como demoram anos ou mesmo séculos até que estas sejam implementadas. É certo, e de importância capital, que esta técnica tenha influenciado a formação de novas relações humanas, mas é impossível pensar que seria desenvolvida e adaptada nessa direcção senão tivesse existido, no jogo e na estratégia das relações humanas, algo que fosse nessa direcção. O que é importante é sempre a interligação, não a supremacia disto sobre aquilo, que nunca tem qualquer sentido.

No seu livro As Palavras e as Coisas utilizou certas metáforas espaciais para descrever as estruturas do pensamento. Porque pensa que as imagens espaciais são tão aptas para evocar estas referências? Qual é a relação entre estas metáforas espaciais que descrevem as disciplinas e certas descrições mais específicas de espaços institucionais?

É bem possível que, interessando-me pelo problema do espaço, tenha utilizado um certo número de metáforas espaciais em As Palavras e as Coisas, mas, em geral, o meu objectivo era estudá-las enquanto objectos. O que é impressionante nas mutações e transformações epistemológicas que se operaram no século dezassete, é ver como a espacialização do saber se constituiu como um dos factores da elaboração deste saber em ciência. Se a história natural e as classificações, se Linnaeus [10] foi possível, é por certo um número de razões: por um lado, houve literalmente uma espacialização do próprio objecto das suas análises, cuja regra foi estudar e classificar as plantas unicamente sobre a base do que era visível. Não se usava sequer o microscópio. Todos os elementos tradicionais do saber, como as funções médicas das plantas, foram abandonadas. O objecto foi espacializado. Posteriormente, o objecto foi espacializado na medida em que os princípios de classificação deveriam ser encontrados na própria estrutura das plantas: o número de elementos, a sua disposição, o seu tamanho e outros tantos elementos, como a altura da planta. Depois, havia a espacialização feita através das ilustrações contidas nos livros, que só foi possível com certas técnicas de impressão. Mais tarde ainda, a espacialização da reprodução das próprias plantas, que se tinha começado a representar nos livros. Tudo isto são técnicas de espaço, não metáforas.

10. Carolus Linnaeus, (1707 - 1778) foi um botânico, zoólogo e médico sueco, sendo considerado o "pai da taxonomia moderna".

A planta de um edifício – o desenho preciso a partir do qual se farão as paredes e as janelas – constitui por si uma forma de discurso idêntica, por exemplo, a uma pirâmide hierarquizada que descreve, de maneira bastante precisa, as relações entre pessoas, não apenas no espaço, mas também na vida social?

Bom, eu penso que existem exemplos simples e bastante excepcionais, nos quais as técnicas arquitectónicas reproduzem, com mais ou menos insistência, as hierarquias sociais. Há o modelo do campo militar, onde a hierarquia militar deve ser lida no próprio terreno, pelo lugar ocupado pelas tendas e os edifícios reservados a cada hierarquia. O campo militar reproduz precisamente, através da arquitectura, uma pirâmide de poder; mas é um exemplo excepcional, como tudo o que é militar – privilegiado na sociedade e de uma extrema simplicidade.

Mas a planta, em si mesma, não é sempre o resultado de relações de poder?

Não. Felizmente para a imaginação humana, as coisas são um pouco mais complicadas que isso.

A arquitectura não é, claro, uma constante: tem uma longa tradição de diferentes preocupações, sistemas diferentes, regras diferentes. O saber [savoir] da arquitectura é em parte a história da profissão, em parte a evolução das ciências da construção e, em parte, uma reescrita das teorias estéticas. O que é que, na sua opinião, é particular a esta forma de saber [savoir]? Assemelha-se mais a uma ciência natural ou isso que chama uma «ciência duvidosa»?

Não posso dizer que esta distinção entre ciências certas e ciências duvidosas não tem algum interesse – isto seria evitar a questão – mas devo dizer que o que me interessa é estudar aquilo que os Gregos chamavam a techné, isto é, uma racionalidade prática governada por um objectivo consciente. Não estou muito seguro que seja útil interrogarmo-nos sem fim de modo a saber se o governo [gouvernement] pode ser objecto de uma ciência exacta. Por outro lado, se a arquitectura, como a prática do governo [gouvernement] e a prática de outras formas de organização social, é considerada como uma techné, susceptível de usar elementos das ciências como a física, por exemplo, ou das estatísticas, isto é interessante. Mas se fizéssemos uma história da arquitectura, penso que seria preferível colocá-la no contexto de uma história geral da techné, mais do que na história das ciências exactas ou não-exactas. A desvantagem da palavra techné, dou-me conta, é a relação com a palavra «tecnologia», que tem um sentido muito específico. Dá-se um sentido muito restrito à palavra «tecnologia»: pensa-se imediatamente em tecnologias duras, às tecnologias da madeira, do fogo, da electricidade. Mas o governo [gouvernement] é também uma função das tecnologias: o governo dos indivíduos, o governo das almas, o governo de si mesmo, o governo das famílias, o governo das crianças, etc… Creio que se colocássemos a história da arquitectura no contexto desta história geral da techné, no sentido lato da palavra, teríamos um conceito director muito mais interessante do que a oposição entre ciências exactas e não-exactas.

Notas da edição
Espaço, saber e poder”, na versão original inglesa “Space, Knowledge, and Power”, é o título de uma entrevista de Michel Foucault a Paul Rabinow, publicada na Revista Skyline: The Architecture and Design Review, em Março 1982. A tradução desta entrevista que aqui se publica pela primeira vez em português foi feita a partir da versão original em inglês e da versão francesa “Espace, savoir et pouvoir” publicada no Dits et Écrits tome IV. A Skyline era uma revista do Institute for Architecture and Urban Studies (IAUS). Criado em 1967 pelo arquitecto americano Peter Eisenman, o Institute era uma organização sem fins lucrativos dedicada à investigação e ao ensino da arquitectura, tendo marcado de forma particularmente intensa o universo arquitectónico nova-iorquino. Mais relevante que a Skyline terá sido, sem dúvida, uma outra publicação do Institute, a Oppositions, que marcou decisivamente o debate arquitectónico dos anos setenta e oitenta. Apesar de confinada, numa primeira fase, a um registo de carácter noticioso de tom um pouco mais rosa da cena arquitectónica nova-iorquina (conferências, exposições, eventos, fait divers), a Skyline é relançada em Novembro de 1981, sob a direcção de Suzanne Stephens, com uma dimensão de crítica e ensaio mais acutilante e abrangente. E é no número de Março de 1982 que se publica a entrevista a Michel Foucault. Contudo, nesse mesmo ano, já Eisenman está de saída do Institute e a Oppositions está longe da repercussão alcançada anos antes. Em 1985 o IAUS acabará por fechar as suas portas, colocando um ponto final nas suas diferentes actividades. Quanto à entrevista, esta acabou por ser presença habitual nas várias antologias que procuraram sintetizar o essencial do pensamento arquitectónico dos anos sessenta e oitenta, começando logo pela antologia que K. Michael Hays, editou no final dos anos noventa, Architectural Theory since 1968. Esta entrevista que aqui publicamos é acompanhada de um pequeno texto em forma de comentário: «Ordem dos objectos e prática da liberdade»

Tradução
Pedro Levi Bismarck. Agradecimento a José Miguel Rodrigues e Ana Bigotte Vieira pelos comentários, notas e sugestões.

Imagem
Páginas da entrevista publicada na Revista Skyline, Março de 1982. Imagem via: Graham Foundation

Ficha Técnica
Data de publicação: 08.04.2015
Etiqueta: arquitectura \ espaços