No
rescaldo dos atentados de Paris ao Charlie Hebdo, o filósofo esloveno Slavoj
Žižek escreveu um artigo (publicado no Punkto) insistindo na
necessidade de analisar o fenómeno à luz da tese de Horkheimer na qual o
fascismo seria uma resposta – ainda que falsa e mistificadora – a uma fractura
real no paradigma liberal. Neste novo artigo, enviado pelo autor ao Blog da Boitempo (Brasil) e publicado agora no
Punkto, Zizek esclarece e fundamenta a sua posição denunciado e procurando
ultrapassar quer os impasses relativos aos discursos “consensuais” e circulares
das defesas das liberdades de expressão, quer os impasses suscitados pelas
leituras “culpabilizantes” e “justificadoras” mais à esquerda, no seu medo de
alimentar a islamofobia. Começando por denunciar a obscenidade da fórmula “Je
suis…”, Zizek localiza o Charlie Hebdo no lugar próprio do seu registo, isto é,
de acordo, com seu próprio slogan: um jornal
estúpido e mau. Para Zizek, trata-se antes de tudo de compreender que o
problema do Charlie Hebdo não era ter ido “longe de mais”, mas o facto de ser
um "excesso inócuo” que funciona perfeitamente na ideologia liberal cínica
actual – legitimando o exercício do poder, tanto de um lado como de outro. Tal
como não se pode justificar os ataques Israelitas aos Palestinianos à luz
daquilo que foi o Holocausto, também não podemos justificar o Islamismo radical
simplesmente classificando-o como formas “deslocadas” de resistência ao
capitalismo, relativizando o mal que trazem em si (uma coisa é perdoar o mal,
outra é compreendê-lo). A questão está precisamente aí. Como escreve Zizek: “O
deslocamento aqui não é uma operação secundária, mas sim o gesto fundamental da
mistificação ideológica. O que tal alegação implica é sim a ideia de que, a
longo prazo, a única forma de derrotar o anti-semitismo não será a pregar a
tolerância liberal, mas articulando o motivo anticapitalista subjacente de uma
forma directa e não deslocada”. Por agora, contudo, uma coisa parece ser certa:
o terror não traz consigo nenhuma experiência emancipatória nem abre os olhos,
bem pelo contrário, parece fechá-los ainda mais.
O obsceno da
identificação
A patética fórmula de identificação “Eu sou …” (ou “Somos
todos …”) só funciona no interior de certos limites, para além dos quais
converte-se em pura obscenidade. Podemos até proclamar “Je suis Charlie”, mas
as coisas já começam a ruir com exemplos como “Somos todos de Sarajevo!” ou
“Estamos todos em Gaza!”. O facto brutal de que não estamos de forma
alguma em Sarajevo nem em Gaza é forte demais para ser compensado por uma
patética identificação desse tipo. E a identificação torna-se
plenamente obscena no caso dos Muselmänner
(o termo alemão para “muçulmanos”, usado para descrever os prisioneiros
mais miseráveis e brutalizados de Auschwitz). É completamente
inconcebível dizer: “Somos todos Muselmäner!”
Em Auschwitz, a desumanização das vítimas foi tão longe que identificar-se com
elas de uma forma significativa é impossível. (E, no sentido oposto, seria
também ridículo declarar solidariedade com as vítimas dos atentados de 11 de Setembro
de 2001 alegando que “Somos todos Nova Iorquinos!” Milhões diriam: “Sim,
adoraríamos ser Nova Iorquinos, dêem-nos um visto americano então!”)
O mesmo vale para os assassinatos do mês passado: era
relativamente fácil identificar-se com os jornalistas do Charlie Hebdo, mas teria sido muito mais
difícil anunciar: “Somos todos Baga!” Para quem não ficou a saber: Baga é
uma pequena cidade no nordeste da Nigéria onde Boko Haram executou duas mil
pessoas. O nome “Boko Haram” pode ser traduzido um pouco literalmente como
“Educação ocidental é proibida” (particularmente a educação das mulheres).
Como dar conta da estranha existência de um movimento sociopolítico maciço cuja
principal ordem programática é a regulação hierárquica da relação entre os
sexos? O enigma é o seguinte: por que é que esses muçulmanos, que estão sem
dúvida expostos à exploração, dominação e outros aspectos destrutivos e
humilhantes do colonialismo, dirigem a sua reacção para a melhor parte (para
nós, pelos menos) do legado ocidental: o nosso igualitarismo e as nossas
liberdades pessoais, incluindo a liberdade de ridicularizar todas as
autoridades? A resposta óbvia é que o seu alvo é, na verdade, muito bem
escolhido: o ocidente liberal é tão insuportável porque ele não só pratica a
exploração e a violenta dominação, como ainda por cima apresenta essa
realidade brutal em nome do seu oposto: liberdade, igualdade e democracia.
Espectáculo de
hipocrisia
Mas voltemos ao espectáculo dos grandes nomes políticos
do mundo todos de mãos dadas em solidariedade com as vítimas das chacinas de
Paris, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas: se alguma vez houve imagem de
falsidade hipócrita, foi essa. Quando a procissão passava sob a janela de um
cidadão anónimo, ele pôs a tocar num altifalante a “Ode à alegria” de
Beethoven, o hino não-oficial da União Europeia, acrescentando um tom de kitsch político ao repugnante espectáculo
encenado pelos maiores responsáveis pela confusão em que nos encontramos hoje.
E o que dizer do ministro dos negócios estrangeiros russo Sergei Lavrov juntando-se
à fila dos dignitários manifestando-se contra a morte de jornalistas? Se ele se
atrevesse a participar numa tal marcha em Moscovo (onde dezenas de jornalistas
foram assassinados) ele seria imediatamente demitido! E a obscenidade de
Netanyahu espremendo-se para aparecer à frente da manifestação, enquanto em
Israel a mera menção pública à al-Nakbah (a “catástrofe” de 1948 para os palestinianos)
é proibida? Onde está a tolerância para com a dor e o sofrimento do outro?
E o espectáculo foi literalmente encenado: as fotos
expostas nos media davam a impressão
de que a linha de líderes políticos estava à frente de uma grande multidão que
marchava – dando assim a impressão de uma suposta solidariedade e união com o
povo… Só que uma outra foto, tirada com maior distância, captou totalidade da
cena e mostrou claramente que atrás dos políticos estavam pouco mais que
cento e poucas pessoas e muito espaço vazio, patrulhado de todos os lados pela
polícia. O verdadeiro gesto digno do Charlie
Hebdo seria ter publicado na sua capa uma caricatura grande e de
brutal mal gosto ridicularizando todo este episódio.
Embora eu seja um ateu resoluto, acredito que essa
obscenidade foi demais até para Deus, que se viu obrigado a intervir com uma
obscenidade divina digna do espírito do Charlie
Hebdo: enquanto o presidente François Hollande abraçava Patrick Pelloux, o
médico e colunista do Charlie Hebdo,
à frente do escritório do semanário, um passarinho defecou no ombro do
presidente francês! Os funcionários do jornal, ao fundo, esforçavam-se
para conter o riso… É de relembrar, neste contexto, a imagem cristã da uma
pomba pousando para entregar uma mensagem divina… além disso, em alguns países,
quando um pombo defeca na sua cabeça, é sinal de boa sorte!
Somos todos polícias
Há ainda um elemento dos recentes acontecimentos na
França que parece ter passado desapercebido: além dos cartazes e das faixas
dizendo “Je suis Charlie” haviam outras que diziam “Je suis Flic” [Eu sou
polícia]. A grande unidade nacional celebrada e encenada em grandes
mobilizações populares não era apenas a unidade das pessoas, atravessando
grupos étnicos, classes sociais e religiões, mas também a unificação das
pessoas com as forças da ordem.
Até então, a França era o único país no ocidente em que
(até onde sei) os polícias eram um constante foco de piadas brutais, sendo retratados
como burros e corruptos (como era comum nos países ex-comunistas). Agora, no
rescaldo da chacina do Charlie Hebdo,
a polícia é aplaudida e elogiada – não só a polícia mas também o CRS (um dos
slogans de Maio de 1968 era inclusive “CRS-SS”), o serviço secreto e todo o
aparato securitário estatal. Não há lugar para Snowden ou Manning nesse novo
universo. “O ressentimento contra a polícia não é mais o que era, excepto entre
a juventude pobre de origens árabes ou africanas”, escreveu Jacques-Alain
Miller no mês passado. “Algo sem dúvida jamais visto na história da França”.[1]
Em resumo, os ataques terroristas conseguiram o
impossível: reconciliar a geração de 1968 com seu arqui-inimigo numa espécie de
versão popular francesa do Patriot Act,
com pessoas a voluntariarem-se para serem vigiadas.
A contradição
imanente do politicamente correcto
Esses momentos arrebatadores das manifestações de Paris
foram um triunfo da ideologia: eles mobilizaram as pessoas contra um inimigo
cuja fascinante presença consegue momentaneamente obliterar todos os
antagonismos. Ao público restou uma escolha deprimente: ou você está com os Flics [a polícia], ou então está com os terroristas.
Mas como é que o humor irreverente do Charlie
Hebdo se encaixa aqui nesta escolha? Para responder a esta questão
temos que ter em mente a interligação entre o Decálogo e os direitos humanos como seu inverso moderno: o que
a experiência da nossa sociedade liberal-permissiva demonstra é que os direitos
humanos são, afinal de contas, o direito de violar os dez mandamentos. [2]
O direito à privacidade é o direito de cometer adultério.
O direito à propriedade privada é o direito de roubar (de explorar os outros).
O direito da liberdade de expressão é o direito de dar falso testemunho. O
direito de porte de arma é o direito de matar. O direito à liberdade de culto
religioso é o direito de adorar falsos deuses. É claro que os direitos humanos
não toleram directamente a violação dos Mandamentos, mas mantém aberta uma zona
cinzenta marginal que deve estar fora do alcance do poder (religioso ou
secular). Nessa zona cinzenta, eu posso violar os mandamentos, e se o poder se
debruçar sobre ela e apanhar-me em flagrante, posso gritar: “Um assalto aos
meus direitos humanos básicos!”. A questão é que para o poder é estruturalmente
impossível traçar uma linha clara de separação para prevenir apenas o “uso
indevido” dos direitos humanos sem infringir o seu uso adequado, isto é, o uso
que não viola os mandamentos.
É a essa zona cinzenta que pertence o humor brutal
do Charlie Hebdo. Lembremos
como o semanário começou em 1970 como um sucessor do Hara-Kiri, um periódico banido por ter gozando com a morte do
General de Gaulle. Depois de receberem uma carta de um leitor acusando o Hara-Kiri de ser “estúpido e mau”
(“bête et méchant”), a frase foi adoptada
como slogan oficial do jornal e
passou a permear a linguagem quotidiana: “Hara-Kiri:
journal bête et méchant”. Essa é a zona cinzenta do Charlie Hebdo: não sátira benevolente mas sim, muito literalmente,
estúpida e má, de forma que seria mais apropriado que os milhares marchando em
Paris proclamassem “Je suis bête et
méchant” ao invés do simples e piegas “Je suis Charlie”. E, de facto, as manifestações mediáticas de solidariedade
em Paris foram efectivamente “bête et
méchant”.
Por mais refrescante que pudesse ser em algumas
situações, a atitude “bête et méchant”
do Charlie Hebdo é
condicionada pelo facto do riso não ser por si só libertador, mas profundamente
ambíguo. Lembremo-nos daquele famigerado contraste que a imagem difundida da
Grécia Antiga nos traz: entre os Espartanos solenes e aristocráticos e os
Atenienses jocosos e democráticos. O que escapa a essa imagem é que os
espartanos, que se orgulhavam de sua severidade, punham o riso no centro de sua
ideologia e prática: eles reconheciam o riso comum como um poder que ajudava a
aumentar a glória do Estado. (Os atenienses, em contraste, legalmente
restringiam tal riso brutal e excessivo como uma ameaça ao espírito do
respeitável diálogo onde nenhuma humilhação do oponente deve ser permitida). O
riso espartano – a troça brutal de um inimigo ou escravo humilhado, ridicularizando
o seu medo e dor a partir de uma posição de poder – encontrou um eco nos
discursos de Stalin, quando ele troçava do pânico e da confusão dos
“traidores”, e que persiste ainda hoje, no humor dos ditos “politicamente
incorretos”. (Aliás, esse riso deve ser distinguido ainda de outro tipo de riso
daqueles que estão no poder: o escárnio cínico que mostra que eles próprios não
levam a sua ideologia a sério).
O problema com o humor do Charlie Hebdo não é que ele tenha ido longe demais na sua
irreverência, mas que era um excesso inócuo que se encaixava perfeitamente
no funcionamento cínico hegemónico da ideologia das nossas sociedades. Ele não
representava ameaça alguma àqueles no poder; ele simplesmente tornava o seu
exercício de poder mais tolerável.
É nesse sentido que devemos abordar o delicado tema dos
diferentes modos de vida. Nas sociedades liberais-seculares ocidentais, o poder
do Estado protege as liberdades públicas mas intervém no espaço privado –
quando há uma suspeita de abuso infantil, por exemplo. Mas como esclarece Talal
Asad [3], tais “intrusões no espaço doméstico, em domínios ‘privados’, não são
permitidas pela Lei Islâmica, embora a conformidade no comportamento
“público” possa até ser mais rigorosa. […] Para a comunidade, o que importa é a
prática social do sujeito muçulmano – incluindo manifestações verbais –
não seus pensamentos internos, quaisquer que possam ser.” O Corão diz:
“A verdade emana do vosso Senhor; assim, pois, que creia quem desejar, e
descreia quem quiser.” Mas, nas palavras de Asad, esse “direito de pensar aquilo
que se quiser não […] inclui o direito de expressar as suas crenças religiosas
ou morais publicamente com a intenção de converter pessoas a um ‘falso
comprometimento’”. É por isso que, para os muçulmanos, “é impossível permanecer
em silêncio quando confrontados com a blasfémia […] e a sua reacção é tão
acalorada pois para eles, a blasfémia não é nem ‘liberdade de expressão’ nem o
desafio representado por uma nova verdade mas algo que busca perturbar uma
relação de vida”. Do ponto de vista liberal ocidental, há um problema com ambos
os termos desse nem/nem: e se a liberdade de expressão passasse a incluir
também actos que podem perturbar uma relação viva? E se uma “nova verdade”
tiver o mesmo efeito disruptivo? Uma descodificação científica do universo não
tende a perturbar uma “relação de vida” tradicional? E se uma nova consciência
ética fizer com que uma relação de vida existente apareça injusta?
Se, para os muçulmanos, não é apenas “impossível
permanecer em silêncio diante da blasfémia” como é também impossível permanecer
inactivo – e o impulso de fazer algo pode incluir aí actos violentos
e assassinatos – então a primeira coisa que devemos fazer é localizar essa
atitude no seu contexto contemporâneo. O mesmo vale para o movimento cristão antiaborto,
que também acha “impossível permanecer em silêncio” diante das mortes de
centenas de milhares de fetos todo dia, uma chacina que eles comparam ao
Holocausto. É aqui que começa a tolerância: a tolerância ao que sentimos como
impossível-de-suportar (“l’impossible-a-supporter”,
na formulação de Lacan), e nesse ponto o “politicamente correcto” da
esquerda liberal aproxima-se do fundamentalismo religioso com a sua própria
lista de “blasfémias” diante das quais é “impossível permanecer em silêncio”:
machismo, racismo e outras formas de intolerância. O que aconteceria se um
jornal abertamente ridicularizasse o Holocausto?
É fácil troçar de todas as regras muçulmanas para
cada detalhe da vida quotidiana (uma característica que, aliás, partilham
com o judaísmo), mas e dessa lista “politicamente correcta” de todos aqueles
jogos de “sedução” (sic) que podem ser considerados assédio verbal, das piadas
que são consideradas racistas ou machistas – ou ainda “especiestas” (que gozam
com outras espécies de animais que não a humana)? O que interessa ressalvar
aqui é que há uma contradição imanente na posição liberal de esquerda: a
posição libertária de ironia universal e sátira, ridicularizando todas as
autoridades, espirituais e políticas (a atitude personificada no Charlie Hebdo), tende a deslizar no seu
oposto, uma sensibilidade aguçada à dor e à humilhação do outro.
Respostas à
esquerda
É por conta dessa contradição que boa parte das reacções
de esquerda às chacinas de Paris seguiram um deplorável padrão previsível: elas
suspeitaram correctamente que algo estava profundamente errado com o espectáculo
do consenso e da solidariedade liberal para com as vítimas, mas tomaram a direcção
errada quando se permitiram a condenar as chacinas só depois de longas e
enfadonhas qualificações do tipo “também somos todos culpados”. Esse medo de
que ao condenar abertamente a chacina estaríamos de alguma forma a alimentar a
islamofobia é politicamente e eticamente errado. Não há nada de islamofóbico em
condenar as chacinas de Paris, da mesma forma em que não há nada de anti-semita
em condenar o tratamento de Israel aos palestinianos.
Quanto à noção de que devemos contextualizar e
“compreender” as chacinas de Paris, ela também poder ser uma completa
armadilha. Talvez um dos melhores exemplos de burrice mascarada de profunda
sabedoria seja o ditado: “Um inimigo é alguém cuja história você ainda não
conhece” [4]. Não há exemplo melhor dessa tese que Frankenstein, de Mary Shelley. Shelley faz algo que um conservador
jamais teria feito. Numa parte central do seu livro, ela permite que o monstro
fale por conta própria e nos conte a história a partir de sua perspectiva.
Essa escolha de Shelley expressa, no seu nível mais radical, a atitude liberal
diante da liberdade de expressão: o ponto de vista de todos deve ser ouvido.
Em Frankenstein, o monstro não é
um terrível objecto que ninguém ousa
confrontar; ele está plenamente dotado de subjectividade.
Shelley mergulha na sua mente e pergunta como é ser rotulado, definido,
oprimido, excomungado, e ainda fisicamente distorcido pela sociedade. O supremo
opressor pode assim apresentar-se como supremo oprimido. O monstruoso
assassino revela-se como sendo um individuo profundamente magoado e em apuros,
ansiando por companhia e amor… Há, no entanto, um claro limite para esse
procedimento: será que estamos dispostos a afirmar que Hitler só era um
inimigo porque a sua história não foi realmente ouvida? Para mim, muito pelo
contrário, quanto mais conheço e “compreendo” Hitler, tanto mais
imperdoável ele me aparece. Compreender o mal
não é perdoá-lo, é ver como o mal funciona – com isso, o mal não é de forma
alguma relativizado muito menos amenizado.
O que isso também significa é que, ao abordarmos o
conflito Israelo-Palestiniano, devemo-nos apoiar em padrões frios e
implacáveis: devemos incondicionalmente resistir à tentação de “compreender” o
anti-semitismo arábico (quando realmente o encontramos) como uma reacção
“natural” à triste condição dos palestinianos, ou de “compreender” as medidas
de Israel como uma reacção “natural” à memória do Holocausto. Não deve haver
“compreensão” alguma para o facto de que em muitos países árabes Hitler seja
considerado um herói, e que sejam incutidas a crianças na pré-escola inúmeros
mitos anti-semitas, dos notoriamente forjados Protocolos dos sábios de Sião até às alegações ridículas de que os
judeus usam o sangue das criancinhas para fins sacrificiais.
Alegar que esse anti-semitismo articula, de forma
deslocada, uma resistência ao capitalismo de forma alguma o justifica (o mesmo vale
para o anti-semitismo nazi: ele também extraiu a sua energia da resistência anticapitalista).
O deslocamento aqui não é uma operação secundária, mas sim o gesto fundamental
de mistificação ideológica. O que tal alegação implica é sim a ideia de que, a longo prazo, a única forma de derrotar o
anti-semitismo não será a pregar a tolerância liberal, mas articulando o motivo
anticapitalista subjacente de uma forma directa e não deslocada.
A lição do terror
O ponto-chave é portanto precisamente não interpretar ou
julgar actos singulares “em conjunto”, não os localizar num “contexto mais
amplo”, mas extraí-los da sua textura histórica: as actuais acções das
Forças de Defesa de Israel na Cisjordânia não devem ser julgadas contra o pano
de fundo do Holocausto; a celebração que muitos árabes fazem à imagem
de Hitler ou à profanação de sinagogas na França e por toda parte na Europa não
devem ser julgados como reacções inapropriadas, porém, compreensíveis ao
que Israel está a fazer na Cisjordânia.
Quando qualquer protesto contra Israel é categoricamente
denunciado como uma expressão de anti-semitismo – isto é, quando a sombra do
Holocausto é permanentemente evocada a fim de neutralizar qualquer crítica às
operações militares e políticas de Israel – será que não basta insistir na diferença
entre anti-semitismo e criticar as políticas específicas do Estado de Israel
que, neste caso, esta a profanar a memória das vítimas do Holocausto, instrumentalizando-as
como uma forma de legitimar medidas políticas presentes?
O que isso significa é que devemos categoricamente
rejeitar a noção de qualquer ligação lógica ou política entre o Holocausto e as
actuais tensões Israelo-Palestinianas. Eles são dois fenómenos rigorosamente
diferentes: um deles é parte da história europeia da resistência de direita às
dinâmicas da modernização; a outra é um dos últimos capítulos na história da
colonização. Em contrapartida, a difícil tarefa que está diante dos palestinianos
é aceitar que o seu verdadeiro inimigo não são os judeus, mas sim os próprios
regimes árabes que manipulam a sua condição oprimida precisamente para prevenir
essa transformação – isto é, a radicalização política no seu próprio seio.
A ascensão do anti-semitismo na Europa é inegável.
Quando, por exemplo, uma minoria muçulmana agressiva em Malmo molesta os judeus
ao ponto destes terem medo de andar nas ruas com as suas roupas
tradicionais, isto deve ser condenado claramente e sem ambiguidade. A luta
contra o anti-semitismo e a luta contra a islamofobia devem ser vistos como
dois aspectos de uma mesma luta. E longe de configurar uma posição
ingenuamente utópica, essa necessidade de uma luta comum funda-se na própria
natureza de grande alcance que as consequências da opressão extrema têm.
Numa memorável passagem de seu Still Alive, Ruth Klüger descreve uma conversa com “alguns
candidatos avançados de Doutoramento” na Alemanha:
Um deles relata como conheceu um velho judeu húngaro, sobrevivente
de Auschwitz, e como ele ridicularizava os árabes e nutria desprezo por eles.
“Como pode alguém que vem de Auschwitz falar assim?”, pergunta o alemão. Eu
entro na conversa e discuto, talvez de forma mais acalorada do que fosse
preciso. O que é que ele esperava? Auschwitz não era nenhuma instituição de
instrução […] Nada havia para aprender lá, muito menos humanidade e tolerância.
“Absolutamente nada de bom saiu dos campos de concentração”, acabo por dizer com
a voz já elevada, o que esperava: catarse, purgação, o tipo de coisas que se
espera quando se vai ao teatro? Foram os estabelecimentos mais inúteis e desprovidos
de sentido, alguma vez imaginados.
Ou seja, o extremo horror de Auschwitz não fez dele um
lugar de purificação das suas vítimas sobreviventes, tornando-as sujeitos
eticamente sensíveis desprovidos de interesses egoístas tacanhos; muito pelo
contrário, parte do horror de Auschwitz é que ele também desumanizou muitas das
suas vítimas, transformando-as em sobreviventes brutos e insensíveis e tornando
impossível para elas praticarem a arte do juízo ético equilibrado.
Temos que abandonar a ideia de que há algo emancipatório
em experiências extremas, que elas nos permitem abrir os olhos à radical
verdade da situação. Essa talvez seja a mais deprimente lição do terror.
Referências
1. Ver Jacques-Alain Miller, “L’amour de la police”, acedido em 1/13 2015 e publicado em inglês em lacan.com
como “France loves its cops”.
2. Baseio-me
aqui no artigo de Julia Reinhard Lupton (UC Irvine) and Kenneth Reinhard
(UCLA), The Subject of Religion: Lacan and
the Ten Commandments.
3. Talad Asad, Wendy
Brown, Judith Butler, Saba Mahmood, Is
Critique Secular? Blasphemy, Injury, and Free Speech, Berkeley: University
of California Press 2009
4. Epígrafe
de “Living Room Dialogues on the Middle East,” citado em Wendy Brown,
Regulating Aversion, Princeton: Princeton University Press 2006.
5. Ruth Kluger,
Still Alive: A Holocaust Girlhood Remembered, New York: The Feminist Press
2003, p. 189.
Nota da edição
Texto publicado originalmente no Blog da
Boitempo, site da editora brasileira, tendo sido publicado em
parceria com a Boitempo no Punkto. A tradução de Artur Renzo foi revista por
Pedro Bismarck.
Slavoj Žižek
Nasceu na cidade de Liubliana, Eslovénia, em 1949. É
filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita
por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl
Marx e Jacques Lacan, efectua uma inovadora crítica cultural e política da
pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de
Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for
Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos directores do centro de
humanidades da University of London.