Não há guerras
religiosas mas guerras económicas e conflitos sociais e políticos. O véu da
religião é apenas o manto que dissimula os fins e exalta e organiza os meios.
É, à vez, a mobilização do poder e o exílio dos contrapoderes.
Não entenderemos nada do
que se passou se continuarmos a isolar este acontecimento como manobra de
"dementes", "criminosos" ou "terroristas" ou se o
classificarmos no âmbito das (o)posições religiosas. Não entenderemos nada do
que se passou se não conseguirmos incluir todos estes actos que circulam e
permeiam as comunidades islâmicas, da Nigéria ao Iémen, passando por Paris,
dentro de uma trama histórica bem mais geral e ampla. Uma trama que inclui
sistemas de produção e exploração de riquezas e recursos, mas também de
misérias imensas e sem fim. Afinidades entre colonização ocidental e países
árabes e africanos – dispositivos ideológicos e religiosos que captam as
frustrações e os medos. Ninguém nasce terrorista, mas muitos tornam-se
terroristas. São movimentos violentos de disrupção de forças que são produto de
um sistema específico de produção, de um ambiente social marcado por
desigualdades extremas, processos de industrialização violentos, processos de
segregação dissimulados pelos aparatos mediáticos e processos de assimilação e
ocidentalização burocráticos e impositivos. Na Nigéria dos oleodutos e do
petróleo, Boko Haram. Na Palestina dividida e retalhada, o Hamas. Aí, onde o
poder é exercido de forma implacável, provocando as piores misérias, surgem as
respostas violentas, muitas vezes à procura de álibis fáceis e falsos.
Não nos cabe
desculpabilizar. Nem se trata de auto-culpabilização. Mas o exercício da
democracia implica que se discutam e se reconheçam causas e efeitos, que se
procure a verdade para além das dicotomias imediatas. E que se estabeleçam as
necessárias relações entre o sistema económico e político onde estamos
inseridos e as suas contradições, ambiguidades, limites. Um sistema de produção
que produz mais desigualdades que igualdades, muitas delas traumáticas, criando
a grande reserva de um exército de reclusos e descontentes que se refugiam em
cruzadas ideológicas muitas vezes externas. Os extremistas islâmicos têm
capitalizado esses descontentes – e isso deve ser matéria de reflexão.
Não basta ser Charlie
Hebdo por um dia. A liberdade de expressão está em jogo não por causa deste
ataque, mas porque a informação é objecto de uma imensa batalha pelo seu
controlo, pelo seu domínio. E porque a aceitamos acriticamente e refugiamo-nos
em categorias generalistas que simplificam as narrativas complexas de um mundo
dissipado e globalizado: sejam os alemães-merkelianos ou os árabes-terroristas.
A Europa e o Ocidente vivem o drama e as contradições do seu sistema económico
e da sua construção política. O medo surge aí onde as explicações se turvam e
se tornam opacas. Voltarão os mitos e os profetas da extrema-direita. Erguem-se
muros e fronteiras: à volta do mediterrâneo, das mesquitas ou dos condomínios
fechados. A democracia defende-se hoje menos no direito abstracto da liberdade
de expressão e nas marchas de solidariedade pela tolerância e mais no dever de
reclamarmos para nós o espaço de uma participação e acção política (tanto local
como global), capaz de dar resposta aos problemas colocados pela imigração,
pela desigualdade económica, pela erosão do Estado Social, em vez de sermos
meros espectadores de uma tragédia que seguimos como uma superprodução
televisiva até ao dia da revelação final.
Este «Je suis Charlie»,
que passou agora a falar em nome de todos como imperativo moral categórico, é a
epítome não de um cinismo generalizado ou de uma hipocrisia, mas sim da velha
máxima que sempre nos recorda a potência teológica e exorcizante dos mitos
perante os traumas. Mas é também a retórica ideológica eficaz que bloqueia o
pensamento e os discursos, que cobre e veste com as melhores roupas da
tolerância, da unidade e da liberdade (de expressão), o corpo já moribundo da democracia
liberal, pintando-o e sentando-o resplandecentemente, ali, bem no centro no
trono mediático soberano, como simulacro último da sociedade do espectáculo. Atrás
dele, estão já todos os seus sucessores e inimigos à espera da primeira ocasião
para desferir o golpe final.
Imagem
Manifestação 11 de Janeiro em Paris. © EPA
Pedro
Levi Bismarck
Editor Punkto