Pensar o atentado ao Charlie Hebdo \ Slavoj Žižek





Agora, que estamos todos em estado de choque depois da carnificina na sede do Charlie Hebdo, é o momento certo para encontrar coragem para pensar. Agora, e não depois, quando as coisas acalmarem, como tentam convencer-nos os proponentes da sabedoria barata: o difícil é justamente combinar o calor do momento com o acto de pensar. Pensar quando o rescaldo dos eventos arrefece não produz uma verdade ponderada, mas normaliza a situação de forma a permitir-nos evitar as verdades mais afiadas.

Pensar significa ir para além do pathos da solidariedade universal que explodiu nos dias que sucederam o evento e culminaram no espectáculo de domingo, 11 de Janeiro de 2015, com grandes nomes políticos do globo de mãos dadas, de Cameron a Lavrov, de Netanyahu a Abbas – talvez a imagem mais bem acabada da falsidade hipócrita. O verdadeiro gesto Charlie Hebdo seria ter publicado na capa do semanário uma grande caricatura gozando brutalmente com esse evento, com cartoons de Netanyahu e Abbas, Lavrov e Cameron, e outros casais abraçando-se e beijando-se intensamente enquanto afiam facas atrás das costas.

Devemos, é claro, condenar sem ambiguidade os homicídios como um ataque contra a essência das nossas liberdades, e condená-los sem nenhuma ressalva escondida  (como quem dizia “o Charlie Hebdo estava apesar de tudo a provocar e a humilhar excessivamente os muçulmanos”). Devemos também rejeitar toda a abordagem baseada no efeito mitigante do apelo ao “contexto mais amplo”: algo como “os irmãos terroristas eram profundamente afectados pelos horrores da ocupação americana do Iraque” (ok, mas então por que não atacaram simplesmente alguma instalação militar norte-americana em vez de um semanário satírico francês?), ou como “os muçulmanos são de facto uma minoria explorada e escassamente tolerada” (ok, mas os negros afrodescendentes são tudo isso e muito mais e, no entanto, não praticam atentados a bomba ou chacinas), etc., etc. O problema com essas evocações da complexidade do pano de fundo é que ela pode muito bem ser usado a propósito de Hitler: também ele coordenou uma mobilização diante da injustiça do tratado de Versalhes, mas no entanto era completamente justificável combater o regime nazi com todos os meios à nossa disposição. A questão não é se os antecedentes, agravos e ressentimentos que condicionam os actos terroristas são verdadeiros ou não, o importante é o projecto político-ideológico que emerge como reacção contra injustiças.

Nada disso é suficiente  – temos que pensar adiante. E o pensar de que falo não tem absolutamente nada a ver com uma relativização fácil do crime (o mantra do “quem somos nós ocidentais, que cometemos massacres terríveis no terceiro mundo, para condenar actos como estes?”). E tem menos ainda a ver com o medo patológico de tantos esquerdistas liberais ocidentais de sentirem-se culpados de islamofobia. Para estes falsos esquerdistas, qualquer crítica ao Islão é recusada como expressão da islamofobia ocidental: Salman Rushdie foi acusado de ter provocado desnecessariamente os muçulmanos, e é portanto responsável (ao menos em parte) pelo fatwa que o condenou à morte, etc.

O resultado de tal postura só pode ser esse: quanto mais os esquerdistas liberais ocidentais mergulham no seu sentimento de culpa, mais são acusados por fundamentalistas muçulmanos de serem hipócritas tentando ocultar o seu ódio ao Islão. Esta constelação reproduz perfeitamente o paradoxo do superego: quanto mais obedeço ao que o outro exige de mim, mais culpa sentirei. É como se quanto mais eu tolerar o Islão, mais forte será a pressão sobre mim…

É por isso que também me parecem insuficientes os pedidos de moderação que surgiram na linha da alegação de Simon Jenkins (The Guardian, 7 de Janeiro) na qual a nossa tarefa seria a de “não exagerar na reacção, não publicitar excessivamente o impacto do acontecimento. Tratar cada evento como um acidente passageiro do horror” – o atentado ao Charlie Hebdo não foi um mero “acidente passageiro do horror”. Ele seguiu uma agenda religiosa e política precisa e, como tal, foi claramente parte de um padrão muito mais amplo. É claro que não nos devemos exaltar – entendendo com isso não sucumbir à islamofobia cega – mas devemos implacavelmente analisar este padrão.

O que é muito mais necessário que a demonização dos terroristas como fanáticos suicidas heróicos é o desmascaramento desse mito demoníaco. Há muito tempo atrás, Friedrich Nietzsche percebeu como a civilização ocidental se movia na direcção do “último homem”, uma criatura apática sem qualquer grande paixão ou comprometimento. Incapaz de sonhar, cansado da vida, ele não assume nenhum risco, procura apenas o conforto e a segurança, uma expressão de tolerância com os outros: “Um pouco de veneno uma vez por outra, é algo que proporciona agradáveis sonhos. E muitos venenos no fim para uma morte agradável (…) Não falta um pouco de prazer para o dia e um pouco de prazer para a noite; mas respeita-se a saúde. ‘Descobrimos a felicidade’ – dizem os últimos homens – e reviram os olhos”.

Pode efectivamente parecer que a cisão entre o Primeiro Mundo permissivo e a reacção fundamentalista a esse passa mais ou menos nas linhas de oposição entre levar uma longa e gratificante vida cheia de riquezas materiais e culturais, e dedicar sua vida a alguma causa transcendente. Não é esse o antagonismo entre o que Nietzsche denominava niilismo “passivo” e “activo”? Nós, no Ocidente, somos os “últimos homens” nietzschianos, imersos em prazeres quotidianos banais, enquanto os radicais muçulmanos estão prontos a arriscar tudo, comprometidos com a luta até sua própria autodestruição. O poema “The Second Comming” [O segundo advento], de William Butler Yeats parece perfeitamente resumir o nosso predicamento actual: “Os melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores estão cheios de intensidade apaixonada”. Esta é uma excelente descrição da actual cisão entre liberais anémicos e fundamentalistas apaixonados. “Os melhores” já não são capazes de se empenhar totalmente, enquanto “os piores” se empenham num fanatismo racista, religioso e machista.

No entanto, será que os terroristas fundamentalistas realmente se encaixam nessa descrição? O que obviamente lhes falta é um elemento que é fácil identificar em todos os autênticos fundamentalistas, dos budistas tibetanos aos amistas nos EUA: a ausência de ressentimento e inveja, a profunda indiferença perante o modo de vida dos não-crentes. Se os ditos fundamentalistas de hoje realmente acreditam que encontraram o seu caminho em direcção à verdade, por que deveriam sentir-se ameaçados por não-crentes, por que deveriam invejá-los? Quando um budista encontra um hedonista ocidental, ele dificilmente o condena. Ele só benevolentemente nota que a busca do hedonista pela felicidade é auto-destruidora. Em contraste com os verdadeiros fundamentalistas, os pseudo-fundamentalistas terroristas permanecem profundamente incomodados, intrigados, fascinados pela vida pecaminosa dos não-crentes. Tem-se a sensação que, ao lutar contra o outro pecador, eles estão a lutar contra sua própria tentação.

É aqui que o diagnóstico de Yeats escapa ao actual predicamento: a intensidade apaixonada dos terroristas evidencia uma falta de verdadeira convicção. Quão frágil é a crença de um muçulmano para que este se sinta ameaçado por uma estúpida caricatura num semanário satírico? O terror islâmico fundamentalista não é fundado na convicção dos terroristas da sua superioridade e no seu desejo de salvaguardar a sua identidade cultural-religiosa perante a investida da civilização global consumista.

O problema dos fundamentalistas não está no facto de os consideramos inferiores a nós, mas sim que eles próprios secretamente se consideram inferiores. É por isso que as nossas reafirmações politicamente corretas e condescendentes de que não sentimos qualquer superioridade relativamente a eles só os enfurecem, alimentando o seu ressentimento. O problema não é a diferença cultural (o seu empenho em preservar sua identidade), mas o facto inverso de que os fundamentalistas já são como nós, eles secretamente já interiorizaram as nossas normas e medem-se a partir delas. Paradoxalmente, o que falta aos fundamentalistas é precisamente uma dose daquela convicção verdadeiramente “racista” de sua própria superioridade.

As recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam o velho insight benjaminiano de que “cada ressurgimento do fascismo dá testemunho de uma revolução fracassada”: a ascensão do fascismo é a falência da esquerda, mas simultaneamente uma prova de que havia um potencial revolucionário, um descontentamento, que a esquerda não foi capaz de mobilizar.

E o mesmo não vale para o dito “islamo-fascismo” de hoje? A ascensão do islamismo radical não é exactamente correlativa ao desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos? Quando, na primavera de 2009, os Talibans tomaram o vale do Swat no Paquistão, o New York Times publicou que eles arquitectaram uma “revolta de classe que explora as profundas fissuras entre um pequeno grupo de proprietários abastados e os seus inquilinos sem terra”. Se, no entanto, ao “tirar vantagem” da condição dos camponeses, os Talibans “chamaram a atenção para os riscos do Paquistão, que permanece em grande parte feudal”, o que garante que os democratas liberais no Paquistão, bem como os EUA,  também não “tirem vantagem” dessa condição e procurem ajudar os camponeses sem terra? A triste implicação deste facto é que as forças feudais no Paquistão são os “aliados naturais” da democracia liberal…

Mas então e os valores fundamentais do liberalismo  (liberdade, igualdade, etc.)? O paradoxo é que o próprio liberalismo não é suficientemente forte para salvá-los contra a investida fundamentalista. O fundamentalismo é uma reacção – uma reacção falsa, mistificadora, é claro – contra uma falha real do liberalismo, e é por isso que ele é repetidamente gerado pelo liberalismo. Deixado à sua sorte, o liberalismo lentamente se minará a si próprio – a única coisa que pode salvar os seus valores originais é uma esquerda renovada. Para que esse legado fundamental sobreviva, o liberalismo precisa da ajuda fraterna da esquerda radical. Essa é a única forma de derrotar o fundamentalismo, varrer o chão sobre os seus pés.

Pensar os assassinatos de Paris significa abrir mão da auto-satisfação presunçosa de um liberal permissivo e aceitar que o conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é essencialmente um falso conflito – um círculo vicioso de dois polos gerando e pressupondo-se um ao outro. O que Max Horkheimer disse sobre o fascismo e o capitalismo algures em 1930 – que aqueles que não estiverem dispostos a falar criticamente sobre o capitalismo se devem calar sobre o fascismo – deve ser aplicada também ao fundamentalismo de hoje: quem não estiver disposto a falar criticamente sobre a democracia liberal também se deve calar sobre o fundamentalismo religioso.



Nota da edição

Texto publicado originalmente no Blog da Boitempo, site da editora brasileira, tendo sido publicado com conhecimento da Boitempo no Punkto. A tradução de Artur Renzo foi revista e corrigida por Pedro Bismarck. Uma versão reduzida deste artigo foi publicada em inglês no New Statesman a 10 de Janeiro de 2015.


Imagem

Líderes mundiais na Marcha que decorreu em Paris no Domingo, 11 de Janeiro, separados e isolados por um cordão de segurança policial. © Philippe Wojazer / AFP / Getty images


Slavoj Žižek

Nasceu na cidade de Liubliana, Eslovénia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efectua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos directores do centro de humanidades da University of London.