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O sul também (não) existe
A arquitectura
ficcional da América Latina
Eduardo Pellejero
Que classe de ser histórico é o que chamamos de América? Não é uma região
geográfica, nem um passado, nem, quiçá, um presente. É uma ideia, uma invenção
do espírito europeu.
Octavio Paz, O labirinto da solidão
mas aqui embaixo,
abaixo,
a fome disponível
recorre ao fruto amargo
do que outros decidem
enquanto o tempo passa
e passam as paradas
e fazem-se outras coisas
que o Norte não proíbe.
Com a sua esperança dura
o Sul também existe.
Mario Benedetti, O sul também existe
Entre outras tantas aventuras intelectuais, o século XIX reservava à Europa
o cansaço da cultura e a tristeza da carne, contaminando os sonhos dos seus
poetas com fantasias de evasão [1]. A ilusão de uma vida simples, sem as
contradições que dilaceravam as cidades modernas, levaria alguns a fazerem-se
ao mar (muitas vezes para desaparecer), mas sobretudo levantaria no vazio da
literatura da época a utopia de um mundo virgem, de um mundo onde tudo ainda
estava por ver, por nomear e por fazer. [2]
Essa utopia finissecular não era nova. A América nascera de uma fantasia
similar [3].
A imaginação europeia projectara durante séculos a imagem de um paraíso terreno
sobre os despojos da conquista, sobrepondo uma topografia intelectual e
fantástica ao território real, perpetuando a ficção de um mundo novo, puro, sem
falhas. Os mares do sul não eram neste contexto um simples tropo literário,
eram assunto de Estado.
Signo do valor atribuído a esta ficção pelo poder são as numerosas
disposições coloniais através das quais Espanha pretendeu proibir, a partir do
século XVI, a publicação e importação de qualquer material romanesco na
colónia. Visando fundamentalmente o controlo ideológico do novo mundo, a metrópole
tentava deste modo impor limites à imaginação americana [4]. Os inquisidores
compreendiam muito bem que a proliferação não regrada das imagens e dos
discursos à qual dá lugar a ficção literária constituía uma ameaça (real) para
a fundação (ficcional) do novo mundo [5].
Espanha procurava assegurar o monopólio da força assegurando o monopólio da
ficção. Com o argumento (platónico) de que os romances eram disparatados e
absurdos (isto é, mentirosos), com o argumento de que podiam ser prejudiciais
para a saúde espiritual dos cidadãos, durante trezentos anos os americanos
foram privados do direito à sua leitura, ou, melhor, foram forçados a lê-los de
contrabando, de tal modo que o primeiro romance que se publicou sob essa figura
na América hispânica só apareceu depois da independência [6].
§
Trezentos anos é muito tempo. Há costumes que se enraízam. Quero dizer que
depois de viverem tantos anos envolvidas numa ficção, as nações nascentes
necessitariam da ficção para viver. O sul, que até então fora uma projecção
fantasmática do norte, um espaço onde as topografias reais e imaginárias se
encontravam indissoluvelmente ligadas, arriscava a desagregar-se enquanto lugar
simbólico a golpes de realidade (guerras civis, conflitos fronteiriços, fluxos
migratórios, etc.). Libertada finalmente do controlo espanhol, era hora da
imaginação americana dar consistência a um território que aparecia dividido e
depredado. E numa época em que a experiência religiosa (e as suas fábulas
associadas) definhava enquanto fundamento do vínculo social, a literatura
haveria de responder a essa necessidade espiritual e política, assumindo a
tarefa de produzir o sucedâneo de uma experiência partilhada, de uma memória
comum.
Poetas e políticos confluiriam nesta empresa. Assim, por exemplo, em 1847,
o futuro presidente da Argentina, Bartolomé Mitre, introduzia no prólogo do seu
romance Soledad, uma espécie de
manifesto com o qual pretendia suscitar a produção de romances que fizessem as
vezes de cimento para a nova nação. No espírito de Schiller, considerando que a
revolução política só era possível a partir de uma reforma cultural [7], Mitre
estava convencido de que os romances de qualidade promoveriam o desenvolvimento
do país; os romances ensinariam a população sobre a sua história incipiente,
sobre os seus costumes apenas formulados, sobre ideias e sentimentos políticos
e sociais, oferecendo uma representação sensível da sua transformação em curso,
do seu devir histórico imediato [8].
Resultado de invasões violentas e de divisões forçadas, de pactos desiguais
e alianças improváveis, as novas nações careciam de qualquer tipo de coesão. As
identificações imaginárias que a literatura era capaz de suscitar apareciam
portanto como uma alternativa efectiva. Nesse sentido, intelectuais e governantes
alentaram a fabricação de ficções compensatórias para preencher um mundo cheio
de vazios [9].
Exemplo: Em Amalia [10]
(1844), de José Mármol, Eduardo Belgrano (portenho) é ferido quando tenta fugir
de Buenos Aires para somar-se à resistência ao governo de Rosas; Daniel Bello
salva-o e oferece-lhe refúgio na casa da sua prima tucumana, Amalia. A paixão
entre Eduardo e Amalia inflama a paixão política, e leva os primos a fingir-se
partidários do regime para secretamente lutar contra Rosas. Na véspera da inevitável
fuga de Buenos Aires, Eduardo e Amalia casam, mas morrem na tentativa às mãos
das tropas de Rosas, fechando um pacto que já não poderá ser desfeito. Na prosa
de Mármol, a história de amor funciona ao mesmo tempo como impulso para uma
nova ordem política; projecta, num contexto de divisão social e na ausência de
um poder legítimo (tal é a perspectiva de Mármol), o tipo de cópula entre a
capital e as províncias capaz de estabelecer uma família pública de direito.
O caso de Amalia é representativo
de um género que conheceu uma tradição prolífica, cujo objecto era conciliar as
diferenças entre etnias, classes e regiões, postulando os antigos inimigos como
futuros aliados. Romance erótico/político, onde a metáfora do matrimónio
(conquistado com grandes esforços) ou da união de fato (minada por todo o tipo
de condicionamentos materiais, sociais e culturais), se desdobra como metonímia
de consolidação nacional [11]. Os amantes desejam-se apaixonadamente ao mesmo
tempo que desejam o nascimento de uma nova ordem política, uma ordem capaz de
tornar possível a sua união; cada obstáculo que os amantes encontram
intensifica o amor – o das personagens e o dos leitores –, pelo surgimento de
uma nação onde a paixão possa ser consumada [12]. A ficção literária é
politicamente fundacional: não implica directamente uma organização nova do
social, mas dá lugar a um novo agenciamento colectivo de enunciação, que apela
aos leitores presos nos mesmos impasses que narra para o tornarem seu. Palavra
impessoal à espera de um corpo (político) que lhe dê voz, a ficção fundacional
pressupõe um sujeito paradoxal, que coloca em causa (e redefine) as distinções
entre o público e o privado, o individual e o colectivo, o particular e o
universal.
Balzac dizia que «o romance é a história privada das nações», mas o que
acontece na América é demasiado; os termos invertem-se: as biografias
familiares da literatura são as que dão lugar à história nacional. Não há
separação entre o nacionalismo épico e a sensibilidade íntima; os romances da
época fornecem alegorias nacionais
(Fredric Jameson), articulando, num nível simbólico, comunidades imaginadas (Benedict Anderson) [13]. Enquanto na Europa os
escritores exploram as falhas da sociedade burguesa e projectam a fantasia de
um novo começo nos mares do sul, na América os escritores tentam balizar a
imaginação desse território em ebulição à imagem e semelhança dos Estados do
norte. E, enquanto a literatura europeia reconhece na crítica a sua autêntica
forma de intervenção, a literatura americana da época parece definir-se
politicamente por uma função substitutiva: oferece um horizonte de sentido
(sobre um território fragmentado), preenche vazios (identitários), cobre
distâncias (étnicas, sociais, políticas). Sem nenhum fundamento moral,
filosófico ou religioso, os romances fundacionais são ficções que se fazem
passar por verdade, criando um espaço – ilusoriamente estável – para novas
formas de aliança política.
Identificar-se na leitura com a paixão dos amantes para
consumar o seu desejo, era já assumir um programa político. Por exemplo, o da
eliminação das diferenças sociais, étnicas ou culturais, numa sociedade dada,
isto é, o da produção de uma identidade cívica nacional capaz de se impor sobre
essas formas conflituosas de identidade tradicional [14]. (Evidentemente, estes
programas políticos nem sempre pressupunham a igualdade e, do mesmo modo que os
romances, implicavam a subordinação de uma parte à outra – da mulher ao homem,
do índio ao mestiço, do campo à cidade, etc.)
O certo é que a fundação da América Hispânica é em boa medida um exercício
de fabulação [15]. Um singular exercício de fabulação, que tem o homem americano
apenas por sujeito dos enunciados (nos enunciados assistimos, de fato, à sua
criação como personagem de uma história sem memória), mas do ponto de vista do
sujeito da enunciação pressupõe o homem europeu (inclusive se cruzou o
Atlântico, se se amancebou, se leva já nas suas veias sangue novo). É neste
sentido que temos que entender o problema levantado por Octavio Paz em El laberinto de la soledad (1950): a
América é uma ideia, invenção do espírito europeu, mas enquanto ser autónomo, a
América vê-se confrontada com essa ideia e é capaz de opor-lhe uma resistência
imprevisível [16].
A América é uma complexa trama ficcional reconjugada pela evolução da
própria literatura americana. O novo mundo não é tão novo assim. Começo que já
é uma repetição, ocupa de facto um espaço duplamente fictício: um fornecido
pela tradição europeia e reelaborado pelos escritores americanos, que tentam
reinventar-se a si próprios e à América num movimento sem fim [17].
Assim, a fundação mítica ou ficção originária, que se postulava de forma
dogmática, passa a ser lida com diversos graus de cepticismo. E a literatura,
correlativamente, deixa de aspirar à totalização imaginária da realidade para
passar a assinalar as suas brechas, os seus desajustamentos, as suas
possibilidades desapercebidas; passa a compreender-se e a expressar-se como
divergência fundamental, como desvio, como dispersão. Assim, em Rayuela (1963), Cortázar escreve: “Se o
volume ou o tom da obra podem levar a crer que o autor tentou uma summa, apressar-se a assinalar que está
ante a tentativa contrária, a de uma subtracção”
[18].
Os grandes romances contemporâneos re-escrevem ou des-escrevem as ficções
fundacionais latino-americanas. Opõem formas de desincorporação literária às
identificações imaginárias forjadas durante o século XIX (e não só), isto é,
colocam em causa, segundo um deslocamento estratégico da perspectiva, essa
política ficcional que não logrou reconciliar as classes em luta, nem aproximar
o campo à cidade, nem unir os pais europeus com as mães da terra (ou que só
logrou essa reconciliação subordinando, silenciando ou eliminando um dos
termos).
Então, como assinala Doris Sommer, os amores fundacionais próprios dos
romances do século XIX revelam a sua intrínseca violência, e as mentiras
piedosas aparecem como estratégias para controlar conflitos raciais, regionais
e económicos que ameaçavam o desenvolvimento das novas nações (na sua evolução
burguesa e capitalista, claro). Esses romances aparecem como parte do projecto
da burguesia para conquistar (para assegurar) a hegemonia desta cultura que se
encontrava em estado de formação (uma cultura que, idealmente, seria uma
cultura acolhedora, que ligaria as esferas pública e privada, dando lugar a
todos, desde que todos soubessem qual o seu lugar).
Sommer propõe como exemplo deste último tipo de ficções La muerte de Artemio Cruz (1964), de
Carlos Fuentes. Entre batalhas, Artemio e Regina lembram a conversa amorosa do
seu primeiro encontro, sentados na praia, contemplando as suas imagens reflectidas
na água. Uma lembrança dourada para encobrir a cena original da violação (que
foi o que efectivamente tivera lugar). Fuentes escreve: “essa ficção...
inventada por ela para que ele se sentisse limpo, inocente, seguro do seu
amor... essa bela mentira... Não era
verdade. Ele não entrara na sua aldeia, como em tantas outras, procurando a
primeira mulher que passasse desprevenida pela rua. Não era verdade que aquela
rapariga de dezoito anos tinha sido subida à força num cavalo e violada em
silêncio no dormitório comum dos oficiais, longe do mar.” [19]
De alguma forma, os escritores, antes alentados a preencher os vazios de
uma história que contribuía para legitimar o nascimento de uma nação e
impulsionar essa história no sentido de um futuro ideal, procuram dizer agora o
não dito nas ficções fundacionais, tentam reintroduzir a contingência no
passado, destruindo as estruturas imaginárias e materiais sobre as quais
assenta o presente, propiciando a resistência e a abertura de novos espaços de
possível.
Exemplo: Em El siglo de las luces
[20]
(1962), de Alejo Carpentier, três adolescentes – Sofía e Carlos, irmãos, e
Esteban, o seu primo – perdem o pai e o tio, ficando sozinhos numa enorme casa
da Cuba colonial, até que um dia chega um estranho visitante – Víctor Hugues,
comerciante e partidário dos novos ideais políticos do século XVIII – que abre
a casa ao mundo e à época, implicando-os nos movimentos revolucionários. Mas as
ideias de liberdade, fraternidade e igualdade – e a declaração universal dos
direitos do homem, enquanto ficção fundacional ou constituinte –, são colocadas
em questão numa história difícil para as personagens, revelando a traição da revolução
francesa aos levantamentos dos negros do Caribe. Sofía, que se apaixona por
Víctor e pelas suas ideias (e se entrega a ambos), acaba por se desenganar:
Víctor, o mesmo que trouxera à América o decreto da abolição da escravidão,
acaba comprometido num falido intento de genocídio da população negra [21]. Ou
seja, o romance, longe de fundar alguma coisa, des-funda uma narrativa
hegemónica na qual se espera (ainda) que venham a alinhar-se as nações
latino-americanas [22].
Exemplo: Em Conversación en La Catedral (1969), de Mario Vargas Llosa,
Santiago e Ambrosio mantêm uma conversa num bar chamado La Catedral, durante a ditadura do general Odría, da qual resulta
uma exploração profunda das razões da corrupção e da desídia dos dirigentes,
assim como da resignação e da impotência dos peruanos. Isto é, Vargas Llosa não
nos oferece (mais) uma ficção fundacional para o Peru, mas, pelo contrário,
aplica-se à destruição (à desconstrução) de um estado de coisas insustentável,
que as ficções fundacionais pretendem passar por alto. De facto, o romance de
Vargas Llosa começa assim: “Da porta de La
Crónica, Santiago olha para a avenida Tacna, sem amor: carros, edifícios
desiguais e descoloridos, esqueletos de anúncios luminosos na névoa, o meio-dia
cinzento. Em que momento se tinha lixado o Perú?” [23]. A pergunta não tem
resposta, ou, melhor, não tem apenas uma resposta. Cada resposta (cada
história) levanta novas questões, cada questão dá lugar a novas histórias, e
assim. Não há verdade fundacional, apenas ficções que na tentativa de articular
o sentido do presente redeterminam (ou simplesmente apagam) o passado [24].
Exemplo: Em Yo, el supremo [25]
(1974), Augusto Roa Bastos reconstrói, utilizando indiferenciadamente elementos
históricos e fictícios, a biografia política de José Gaspar Rodríguez de
Francia (também conhecido como Doutor Francia, Karaí Guazú, e «el Supremo»), ditador do Paraguai durante 26 anos
(1814-1840). A biografia estrutura-se sob a forma de uma espécie de discurso
ditado, estrategicamente pontuado pelos comentários (sediciosos) do seu
secretário pessoal, multiplicando as vozes de tal modo que a ficção mística
sobre a qual se fundava o poder de Francia aparece atravessada de contradições,
de inconsistências e de mentiras. O ditador dita, mas o secretário adenda,
omite, repete, e em geral faz gaguejar o discurso. O escritor empreende um
trabalho de segunda mão, não funda nada, não pre-escreve nada com a sua
escrita, simplesmente re-escreve uma versão anterior. Sobre a literatura já não
repousa nada (não pode), mas no seu movimento desregrado a escrita pode fazer
tremer (e em última instância derruir) qualquer construção (cultural, social ou
política) que assente sobre bases ficcionais.
Exemplo: Em Respiração Artificial
[26] (1980),
Ricardo Piglia trama, a partir de fragmentos de cartas, monólogos, diálogos e
documentos, um romance que, contra o monopólio narrativo que tendem a impor as
ficções estatais, procura restaurar a polifonia de vozes silenciadas pela
ditadura. Renzi (um dos protagonistas) recebe os papéis (até então em posse do
seu tio, Marcelo Maggi) de um dos seus antepassados, Enrique Osório, dando
origem à descoberta de uma história não oficial, de uma história dos
derrotados, ou, melhor, de uma memória sem história. A sua reconstrução tem por
resultado uma versão sem pretensões de institucionalização, que nas margens de
um país das margens, torna possível (vivível) a desincorporação das personagens
(e dos leitores) em relação aos horizontes instituídos de sentido. Renzi
compreende com Tardewski (e nós compreendemos com ele) que o grande mérito de
um escritor não é a fundação do comum, mas a capacidade de ouvir a sua própria
época, de ouvir e fazer ouvir o murmúrio silenciado pela história oficial, de
trazer à luz a palavra dos esquecidos, mesmo se se trata da palavra da derrota,
da claudicação ou do desespero. A sociedade é para Piglia uma trama de relatos,
um conjunto de histórias que circulam entre as pessoas, pelo que traçar o mapa
ficcional da sociedade constitui a tarefa mais importante do escritor,
remetendo as ficções hegemónicas a uma região específica do plano, e
assinalando os lugares onde algo é dito e não é ouvido, algo é pensado e não é
considerado, algo é feito e não é visto [27].
Exemplo: Em Zama (1956) de
Antonio Di Benedetto, o romance fundacional é invertido através de uma paródia
do romance histórico. A estrutura de Zama
é aparentemente simples: o protagonista narra, na primeira pessoa, dez anos da
sua vida; anos cruciais, nos quais o protagonista experimenta os sintomas da
sua decadência física e moral (é, portanto, a história de um perdedor, com o
qual muda já o sujeito da história em relação ao sujeito heróico das ficções
fundacionais). Por outro lado, Di Benedetto não repete as velhas crónicas
familiares do romance burguês do século XIX, nem divide a realidade em nações,
não pretende ser a summa de nenhuma
classe ou território, mas, pelo contrário, multiplica as histórias, as
alegorias e as metáforas, anulando a ilusão biográfica e historicista. Essa fragmentariedade,
que contamina o livro, dispõe, aí onde as ficções fundacionais pressupunham a
identidade, a continuidade e a coerência no desenvolvimento, a heterogeneidade,
as diferenças, os acidentes, os acontecimentos mais insignificantes ou mais refractários
ao sentido [28].
Consideremos a passagem a seguir, onde esta espécie de contra-história aparece
de forma ímpar. Zama está a cruzar ingloriamente a selva paraguaia quando dá
com uma estranha tribo, que caminha pelas veredas abertas no mato, guiada por
crianças que levam os adultos pela mão. Zama diz: “Cegos. Todos os adultos eram
cegos. As crianças não. (...) Eram vítimas da ferocidade de uma tribo mataguaya. Tinham-nos cegado com facas
ao rubro. (...) Não viam e tinham eliminado deles o olhar dos outros. (...)
Quando a tribo se habituou a viver sem olhos foi mais feliz. Cada um podia
estar só consigo próprio. Não existiam a vergonha, a censura, a culpa; não eram
necessários os castigos. Acudiam uns aos outros para actos de necessidade colectiva,
de interesse comum: caçar um animal, reparar o telhado duma cabana. O homem
procurava a mulher e a mulher procurava o homem para o amor. Para se isolarem
mais, alguns batiam nos ouvidos até partir os ossos. Mas quando os filhos
alcançaram certa idade, os cegos compreenderam que os filhos podiam ver. Então
foram penetrados pelo desassossego. Não conseguiam estar em si mesmo.
Abandonaram as cabanas e internaram-se nos bosques, nas pradarias, nas
montanhas... Algo os perseguia. Era o olhar das crianças, que ia com eles, e
por isso não conseguiam deter-se em parte nenhuma” [29]. Na sua austeridade e o
seu laconismo, Zama não representa a
condição profunda da América, não é mais uma imagem da nossa fragilidade e da
nossa contingência (mesmo que isso possa ser reconfortante). Se o romance de Di
Benedetto evita qualquer exaltação patriótica, se recusa qualquer tentação de
historicismo ou de cor local, não o faz em nome de nenhuma nova identificação.
A agonia do seu protagonista, o seu inevitável declínio, é apenas metonímia da
desorientação e da falta de sentido (histórico) do tempo no qual Di Benedetto
escreve a sua história. E nesse sentido Saer tem razão: Zama propõe-nos, não uma evasão do presente, mas um trabalho
(necessariamente paciente) sobre a sua irresolução e a sua problematicidade,
sendo o afastamento metafórico em direcção ao passado apenas um mecanismo para
a sua irrealização. Na sua leitura desconhecemo-nos enquanto sujeitos de uma
história que acreditávamos ser nossa, estranhamo-nos de nós próprios, isto é,
colocamos em causa os fundamentos da nossa identidade e os alicerces das
construções imaginárias às quais a nossa identidade se encontra associada
(simplesmente, já não nos sentimos parte).
Poderíamos multiplicar os exemplos indefinidamente. As obras de Felisberto
Hernández, Haroldo Conti, José Donoso, Alfredo Bryce Echenique, Manuel Puig,
José Revueltas, Ernesto Sabato, Osvaldo Soriano, Juan José Saer, Roberto
Bolaño, e boa parte da literatura da americana hispânica permitem uma leitura
deste tipo, e compreendem uma relação problemática, difícil, irresoluta, com as
fábulas fundacionais que demarcam o território ficcional no qual se movem.
Durante séculos, o norte impôs ao sul a sua espada e a sua pena. Cavou, no
vazio da sua própria dispersão, um lugar ficcional a partir do qual pretendia
afirmar-se apesar de todas as suas diferenças, das suas falhas e contradições.
O sul era uma miragem: a ilusão mínima necessária para manter as coisas a funcionar
(outro mundo é possível, mas do outro lado do mundo, elusivo, inatingível,
proibido).
Os poetas, os loucos e os desesperados procuraram-no de diversas formas, e
de diversas formas o encontraram, mas não como paraíso perdido nem como
território virgem (nem, certamente, como terra da liberdade).
“Com a sua fome disponível (...) e a sua esperança dura” [30], o
sul insinua-se nas margens das línguas e do imaginário que chegaram do norte,
mas não existe, pelo menos não como
lugar de identificação.
Se o sul é alguma coisa, é uma diferença, ou, melhor, a promessa (sempre
diferida) de uma diferença. A diferença, sempre conflituosa, entre a
representação que a Europa fazia de nós, a representação que os fundadores das
nações americanas faziam de nós, e as representações que nós próprios fazemos
de nós. Uma diferença que a literatura frequenta de forma clandestina. Uma
diferença na qual não se joga destino nenhum, mas em virtude da qual resiste
aquilo que mantém viva a imaginação daquilo que ainda não somos, daquilo que
ainda não dissemos nem sonhámos, daquilo que apenas nos atrevemos a pensar.
Entre as fábulas da sua origem e uma origem sempre por fabular [31], entre
as identificações imaginárias que dão forma ao horizonte da sua história e as
desincorporações estéticas que relançam continuamente o devir da sua
consciência, o sul debate-se por esta diferença sem modelo, isto é, pela utopia
desrazoável de uma liberdade sem determinação.
É, claro, um sonho de loucos, de desesperados e de
poetas. Que outra coisa podem ser os mares do sul? Que mais?
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Referências
1. “La chair est triste, hélas! et j'ai
lu tous les livres. / Fuir! là-bas fuir! Je sens que des oiseaux sont ivres /
D'être parmi l'écume inconnue et les cieux! / Rien, ni les vieux jardins
reflétés par les yeux / Ne retiendra ce coeur qui dans la mer se trempe / O
nuits! ni la clarté déserte de ma lampe / Sur le vide papier que la blancheur
défend / Et ni la jeune femme allaitant son enfant. / Je partirai! Steamer
balançant ta mâture, / Lève l'ancre pour une exotique nature! / Un Ennui,
désolé par les cruels espoirs, / Croit encore à l'adieu suprême des mouchoirs!
/ Et, peut-être, les mâts, invitant les orages / Sont-ils de ceux qu'un vent
penche sur les naufrages / Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots... /
Mais, ô mon coeur, entends le chant des matelots!!” (Mallarmé, «Brise marine»,
1887)
2. As mesmas contradições que inspiravam fantasias, por
outra parte, davam lugar na mesma época a outra utopia, esta vez imanente e
materialista, que afirmava que o mundo estava por ver, pensar e fazer em todas
partes e a todo o momento.
3. Sobre a fundação ficcional da América,
cf. Todorov, «Fictions et vérités », in: L'Homme, Volume 29, Numéro 111
, Paris, 1989, pp. 7-33; cf. Octavio Paz, El laberinto de la soledad,
Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1998; p. 71: “A América é uma utopia, isto
é, é o momento no qual o espírito europeu se universaliza, se desprende das
suas particularidades históricas e se concebe como uma ideia universal que,
quase milagrosamente, encarna e afiança-se numa terra e num tempo preciso: o
porvir. Na América a cultura europeia concebe-se como unidade superior”; cf.
Dieter Richter, El sur. Historia de un punto cardinal. Un recorrido cultural
a través del arte, la literatura y la religión, tradução espanhola de María Condor , Madrid,
Ediciones Siruela, 2011; p. 30: “Com a descoberta da América, o «Novo Mundo», o
Ocidente converte-se em terra verdadeira de promissão. (…) A chave mais
importante deste ocidente será o ouro. A ideia de «El Dorado» (uma lenda índia
que chegou aos ouvidos dos espanhóis no século XVI), deu asas à fantasia e à
cobiça dos europeus. O Ocidente passará a ser – a partir das expedições dos
conquistadores do século XVI até à «quimera do ouro» californiana na época
posterior a 1848 –, o ponto cardeal dos caçadores de tesouros. (…) Mas o
Ocidente converte-se em terra promisionis também em sentido político.
Durante séculos, a América constituirá a meta de inúmeros emigrantes que,
abandonando as estreitas e opressivas condições europeias, procuravam no
«dourado Ocidente» liberdade individual, independência e riqueza, ou – como os
padres peregrinos, os quáqueres e muitos outros grupos – queriam tornar
realidade, com a fundação de novas comunidades, uma ordem social ideal”.
4. Para uma visão mais apurada da questão da ficção
na América colonial, cf. Antonio Antelo, «Literatura y sociedad en la América
Española del siglo XVI: Notas para su estudio», in: Thesaurus, tomo
XXVIII, nº 2, 1973. Como seria de esperar, e apesar da repetição dos
editais, os documentos sobreviventes da época registam uma animada circulação
de romances proibidos, demonstrando que a censura da coroa nunca conseguira
instaurar-se totalmente; cf. Doris Sommer, Ficciones fundacionales,
tradução espanhola de José Leandro Urbina e Ángela Pérez, FCE, Bogotá, 2004; p.
27.
5. Espanha aspirava controlar totalmente a vida nas colónias americanas, e
pretendia portanto deter também o monopólio da ficção. É difícil de
compreender, contudo, que tenha tentado submeter a literatura a uma forma tão
sistemática de censura. O certo é que se o poder pretende, por um lado, enclausurar ou expulsar a ficção (pensem na expulsão dos poetas da república platónica, que inaugura esta história de exílios que se estende tristemente até aos nossos dias), por outro lado, o poder também procura apropriar-se da potência da ficção para os seus próprios fins (lembrem também, neste sentido, que na República, Platão funda a divisão do trabalho numa ficção ou num mito: o da implantação do ouro, da prata, do bronze e do ferro nas almas dos homens). A associação imediata, claro, é 1984, de George
Orwell: “Quem domina o presente, domina o passado. Quem domina o passado,
domina o futuro”. Cf. Mario Vargas Llosa, La verdad de las mentiras, Buenos
Aires, Alfaguara, 2002; pp. 15-16.
6. Trata-se do romance de José Joaquín Fernández de Lizardi, El periquillo sarniento, publicado no México, em 1816.
7. A interpretação que Mitre faz de Schiller pode ser
posta em causa, mas certamente Mitre afeta a sua influência, chegando a
utilizar, no Prólogo, as categorias de homem moral e homem fisiológico.
8. “É por isso que gostaríamos que o romance criasse raízes no solo virgem de
América. O povo ignora a sua história, os seus costumes apenas formulados não
foram filosoficamente estudados, e as ideias e sentimentos modificados pelo
modo de ser político e social não foram apresentadas sob formas vivas e
animadas copiadas da sociedades na qual vivemos. O romance popularizaria a
nossa história apelando aos acontecimentos da conquista, da época colonial, e
das memórias da guerra da independência. Como Cooper no seu Puritano e o
espía, pintaria os costumes originais e desconhecidos dos diversos povos
deste continente, que tanto se prestam a ser poetizados, e dariam a conhecer as
nossas sociedades tão profundamente agitadas pela desgraça, com tantos vícios e
tantas grandes virtudes, representando-as no momento da sua transformação,
quando a crisálida se transforma em brilhante borboleta. Tudo isto faria o
romance, e é a única forma sob a qual podem apresentar-se estes diversos
quadros tão cheios de ricas cores e movimento.” (Bartolomé Mitre, Soledad,
Buenos Aires, Tor, 1952).
9. Deste modo, na América Latina, os romances, do mesmo
modo que as constituições e os códigos civis, vinham legislar sobre os costumes
modernos. A literatura fornecia uma espécie de «código» civilizador, que tinha
por objecto erradicar a barbárie, e de uma forma tão certa como os códigos
civis promulgados muitas vezes pelos mesmos autores; cf. Julio Ramos, Desencuentros
de la modernidad en América Latina: Literatura y Política en el siglo XIX,
México, FCE, 1989.
10. José Marmol, Amalia, Madrid, Cátedra, 2000.
11. Enquanto, por exemplo, na França, os romances de Balzac expunham as tensões
e as brechas da família burguesa, os latino-americanos tentavam reparar essas
fissuras, com a vontade de projectar histórias idealizadas que apontavam, ora
ao passado (enquanto espaço legitimador), ora ao futuro (enquanto meta
nacional).
12. Cf. Doris Sommer, Ficciones
fundacionales, pp. 41-65.
13. Frederic Jameson, «Third-World Literature in the Era of Multinational Capitalism», Social Text, nº 15, 1986.
14. Não se trata apenas de uma forma arcaica de funcionamento. A literatura, o
cinema, a televisão, conheceram sempre e continuam a conhecer um valor
substitutivo similar, sempre mais ou menos polarizado pelas apostas do poder.
Também não se trata de um fenómeno meramente local, uma deformação
terceiro-mundista da arte (atribuível, por exemplo, ao hipotético populismo
latino-americano). Nos Estados Unidos, por exemplo, Robert Burgoyne retoma o tema das ficções dominantes enquanto imagens de consenso social e o seu papel central na construção de uma identidade nacional por parte do cinema norte-americano do tipo The birth of a nation. Fabulação nacionalista que opera «de cima» (isto é, propiciada ou dirigida pelos poderes instituídos), e para a qual o cinema clássico teria constituído uma mediação fundamental, criando uma imagem da sociedade imediatamente acessível a todas as classes.
15. Borges seria um dos primeiros a assinalar a impostura
dos mitos da fundação («Fundação mítica de Buenos Aires»), reconhecendo
(criticamente) a superioridade da potência política da poesia sobre o espírito
das leis (Evaristo Carriego). Cf. Jorge Luis Borges, Obras Completas, Barcelona, Emecé Editores, 1989.
16. Cf. Lelia Madrid, La
fundación mitológica de América Latina, Madrid, Espiral Hispano Americana,
1989; p. 8.
17. Cf. Roberto González Echeverría, Alejo Carpentier: The pilgrim at Home, Cornell University Press, New York,
1977; p. 28.
18.Julio Cortázar, Rayuela, Buenos Aires,
Sudamericana, 1983.
19. Carlos Fuentes, La muerte de Artemio Cruz,
México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 1967.
Cf. Doris Sommer, Ficciones
fundacionales, p. 45.
20. Alejo Carpentier, El siglo de las luces,
Barcelona, Seix Barral, 1985.
21. No fim, procurando expiar a culpa ou conquistar a
redenção, Sofia viaja para Madrid, onde se faz matar (corajosamente,
desesperadamente) num levantamento popular contra Napoleão.
22.A proximidade de Carpentier à Revolução Cubana (1959)
e a data de publicação de El siglo de las luces (1962), podem transmitir
a ideia de que Carpentier escreve o seu livro na senda da revolução e que a sua
crítica da narrativa da revolução francesa é solidária deste acontecimento, mas
a verdade é que Carpentier declarou ter terminado de escrever o livro em 1958.
23. Mario Vargas Llosa, Conversación en La Catedral,
Buenos Aires, Sudamericana - Planeta, 1981.
24. Nesse sentido, Vargas Llosa não se limita conduzir a
sua genealogia até o momento da conquista, mas reconhece, nos próprios «povos
originários» (concretamente, nos Incas), o mesmo mecanismo mistificador de
ficcionalização total da realidade. (Mario Vargas Llosa, La verdad de las mentiras, pp. 25-28) Historicamente fiel ou não, a
proposição de Vargas Llosa é um princípio de interpretação: qualquer ficção
fundacional é a apropriação violenta de uma ficção anterior, não sendo
possível, por um exercício de regressão, dar com nenhuma palavra verdadeira (o
mito é um mito, dirá Jean-Luc Nancy); logo, não há comunidade originária,
apenas ficções da comunidade.
25. Augusto Roa Bastos, Yo, el Supremo, Buenos
Aires, Sudamericana, 1985.
26. Ricardo Piglia, Respiración artificial, Buenos
Aires, Sudamericana, 1988.
27. «Que estrutura
têm essas forças fictícias?»: talvez este seja o centro da reflexão política de
qualquer escritor” (Ricardo Piglia, Crítica y ficción, Buenos Aires, Seix Barral, 2000; p. 43).
28. Cf. Juan José Saer, Prólogo, in: Antonio Di Benedetto, Zama,
Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2000.
29. Antonio Di Benedetto, Zama, pp. 171-172.
30. Mario Benedetti, «El sur también existe», in: Mario
Benedetti, Preguntas al azar, Buenos Aires, Sudamericana, 2000.
31. Os produtos da ficção são
particulares e arbitrários, mas a faculdade de produzir ficções é universal e
necessária.
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Imagens
1. O magnífico mapa de América de Diego Gutiérrez (1562)
2. Alejandro Thornton, America, 2010.
3. Alejandro Thornton, AeA, 2012.
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Nota de edição
Este artigo faz parte do Dossier «Devir menor»
coordenado por Susana Caló e publicado na íntegra no Punkto. Foi publicado originalmente na Revista Lugar Comum, 41, Brasil,
Universidade Nômade. Tradução do espanhol por Susana Guerra.
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Eduardo Pellejero
Graduado em Filosofia na Faculdade de Filosofia da
Universidade do Salvador (Argentina, 2000) e doutorado em Filosofia
Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Portugal,
2006). Desde 2009 é professor de Estética na Universidade Federal de Rio Grande
do Norte (Brasil). Faz parte dos Programas de Pós-graduação em Estudos da
Linguagem e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da mesma universidade. Actualmente
desenvolve uma pesquisa no domínio da filosofia (política) da arte.