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Guy Debord
e a
clandestinidade
da vida privada
Giorgio Agamben
Nota de edição
Foi lançado em Setembro, em Itália, "L'Uso dei
Corpi" [O Uso dos Corpos], de Giorgio Agamben. Com este volume o filósofo
italiano termina a sua série "Homo Sacer", iniciada em 1995 com
a publicação de "Homo Sacer: O Poder Soberano e a Vida Nua". Deixamos
aqui uma tradução livre do seu prólogo “Guy Debord e a clandestinidade da vida
privada”, um olhar extremamente lúcido sobre a figura de Debord.
Tradução por Luhuna Carvalho.
1. É curioso como em Guy Debord uma consciência lúcida da insuficiência da
vida privada era acompanhada pela mais ou menos consciente convicção de que
existia, na sua própria existência ou na dos seus amigos, algo de único e de
exemplar que exigia ser recordado e comunicado. Já em Critique
de la séparation Debord
evoca, enquanto algo de certo modo intransmissível, “essa clandestinidade da
vida privada sobre a qual nunca temos mais do que documentos derisórios”. E, todavia,
nos seus primeiros filmes e ainda em Panégyrique não cessam de desfilar os rostos dos
seus amigos um após outro, o de Asger Jorn, o de Maurice Wyckaert, o de Ivan
Chtcheglov, e, finalmente, o seu próprio rosto, junto às das mulheres que amou.
E não só, em Panégyrique surgem também as casas que habitou, o
nº 28 da via delle Caldeie em Florença, a casa de campo em
Champot, o Square des missions étrangères em Paris (na verdade o nº 109 da rue
du Bac, o seu último endereço parisiense, na sala do qual uma fotografia
de 1984 o retrata sentado num divã de couro inglês que parecia agradar-lhe).
Dá-se aqui uma contradição central que os situacionistas
não conseguiram superar e, simultaneamente, algo de precioso que exige ser
retomado e desenvolvido: essa talvez obscura e inconfessada consciência de que
o elemento genuinamente político consiste exactamente nesta incomunicável e
quase ridícula clandestinidade da vida privada. Já que mesmo essa – a vida
clandestina, a nossa forma de vida – é
tão intima e próxima, que se a tentamos capturar nos deixa nas mãos apenas a
impenetrável e tediosa quotidianidade. E, todavia, talvez seja mesmo esta
homónima, promíscua e sombria presença a custodiar o segredo da política. A
outra face do arcanum imperii na qual naufraga toda a biografia e
toda a revolução. E Guy, que era tão hábil e perspicaz quando tinha de analisar
e descrever as formas alienadas da existência na sociedade espectacular, é
então assim tão cândido e impotente quando tenta comunicar a forma da sua vida
e quando tenta olhar na cara e explodir a clandestinidade com a qual partilhou
a viagem até ao último momento.
2. In Girum imus nocte et consumimur igni (1978) abre com uma declaração de guerra contra o seu
tempo e prossegue com uma análise inexorável das condições de vida que a
sociedade mercantil no estádio supremo do seu desenvolvimento instaurou sobre a
totalidade do planeta. Inesperadamente, a meio do filme, a descrição detalhada
e impiedosa cessa para dar lugar à evocação melancólica e quase débil das
memórias e eventos pessoais que antecipam a intenção declaradamente
autobiográfica de Panégyrique. Guy recorda a
Paris da sua juventude, que já não existe, em cujas ruas e cafés tinha partido
com os seus amigos em obstinada busca desse “Graal nefasto, que ninguém
deseja”. Embora o Graal em questão, “fugazmente vislumbrado” mas nunca
“encontrado”, tivesse indiscutivelmente um significado político, já que os que o
procuravam “se encontraram capazes de compreender a vida falsa à luz da
verdadeira”, o tom da comemoração, marcado por citações de Eclesiastes, de
Omar Khayyan, de Shakespeare e de Bossuet, é, no entanto, indiscutivelmente
nostálgico e sombrio: “a meio do caminho da verdadeira vida, fomos rodeados por
uma melancolia escura, expressa por palavras tristes e de escárnio, no café da
juventude perdida”. Desta juventude perdida, Guy recorda a desordem, os amigos
e os amores (“como não recordar os bandidos charmosos e as prostitutas
orgulhosas com quem habitei esses ambientes duvidosos”), enquanto no ecrã
surgem imagens de Gil J. Wolman, de Ghislain de Marbaix, de Pinot-Gallizio, de
Attila Kotanyi e de Donald Nicholson-Smith. Mas é no fim do filme que o impulso
autobiográfico reaparece com mais força e a visão de Florença quando
era livre se entrança
com as imagens da vida privada de Guy e das mulheres com quem viveu nessa
cidade na década de setenta. Veem-se depois passar rapidamente as casas onde
Guy viveu, o Impasse de Clairvaux, a rue
St Jacques, a rue St. Martin, uma igreja em
Chianti, Champot e, mais uma vez, os rostos dos amigos, enquanto se escutam as
palavras da canção de Gilles em Les Visiteurs du soir: “Tristes enfants perdus, nous errons dans la
nuit...”. E, poucas sequências antes do final, os retratos de Guy
aos 19, 25, 27, 31, e 45. O nefasto Graal, do qual os situacionistas partiram
em busca, concerne não apenas a política, mas de certo modo também a
clandestinidade da vida privada, da qual o filme não hesita em exibir,
aparentemente sem pudor, os “documentos ridículos”.
3. A intenção autobiográfica estava, de resto, já presente no palíndromo que
dá nome ao filme. Logo após invocar a sua juventude perdida, Guy acrescenta que
nada expressa melhor o dispêndio do que esta “antiga frase construída letra
após letra como um labirinto sem saída, de modo a recordar perfeitamente a
forma e o conteúdo da perda: in girum imus nocte et consumimur igni (‘Andamos em círculo pela noite e
somos devorados pelo fogo’) ”.
A frase, definida por vezes como o “verso do diabo”,
provém, na verdade, segundo uma cursiva indicação de Heckscher, da literatura
emblemática e refere-se às traças inexoravelmente atraídas pela chama da vela
que as consumirá. Um emblema é composto por uma empresa – uma frase ou um mote – e por uma imagem; nos livros que
pude consultar, a imagem da traça devorada pelo fogo surge frequentemente,
nunca associada ao livro em questão mas sim a frases que se referem à paixão
amorosa (“assim o prazer vivo conduz à morte”, “assim de bem amar porto
tempestuoso”) ou, em casos mais raros, à imprudência na política ou na guerra (“non temere est cuiquam temptanda potentia
regis”, “temere ac periculose”).
Nos Amorum emblemata de
Otto van Veen (1608), a contemplar as traças que se precipitam em direcção à
chama da vela está um amor alado e a empresa
diz: brevis et damnosa voluptas.
É provável, então, que Guy, escolhendo o palíndromo
enquanto título, paragonasse a si próprio e aos seus companheiros às traças,
que amorosamente e temerariamente atraídas pela luz estão destinadas a
perder-se e a consumir-se no fogo. Na Ideologia Alemã – uma obra que Guy conhecia
perfeitamente – Marx evoca criticamente a mesma imagem: “e é assim que as
borboletas nocturnas, quando o sol do universal se põe, procuram a luz de
lâmpada do particular”. Tanto mais singular é que, apesar desta advertência,
Guy tenha continuado a seguir esta luz, a espiar obstinadamente a chama da
existência singular e privada.
4. No final dos anos noventa, nas bancas de uma livraria parisiense, o segundo
volume de Panégyrique, contendo a
iconografia, estava exposto – por acaso ou por intenção irónica do livreiro –
ao lado da autobiografia de Paul Ricouer. Nada é mais instrutivo do que
comparar o uso das imagens em ambos os casos. Enquanto as fotografias do livro
de Ricoeur retratam o filósofo exclusivamente no decurso de convénios
académicos, como se ele não tivesse tido outra vida fora deles, as imagens de Panégyrique pretendiam um estatuto de verdade
biográfica que observava a existência do autor em todos os seus aspectos. “A
ilustração autêntica”, adverte a curta promessa, “ilumina o discurso
verdadeiro... saberemos finalmente então qual a minha aparência em diferentes
idades; e que tipo de rostos sempre me rodearam; e que lugares habitei...”. Uma
vez mais, não obstante a evidente insuficiência e banalidade dos seus
documentos, a vida – a vida clandestina – está em primeiro plano.
5. Uma noite, em Paris, Alice, quando lhe disse que muitos jovens em Itália
continuavam interessados nos escritos de Guy e que esperavam dele uma palavra,
respondeu: “Existimos, deveria ser-lhes suficiente”. Que queria dizer
“existimos”? Nesses anos viviam isolados e sem telefone entre Paris e Champot,
de certo modo com os olhos postos no passado, e a sua “existência” estava, por
assim dizer, totalmente achatada na “clandestinidade da vida privada”.
No entanto, ainda um pouco antes do seu suicídio em Novembro
de 1994, o título do seu último filme preparado para o Canal
Plus: Guy Debord, son art, son temps não parece – apesar do esse son
art realmente
inesperado – de todo irónico na sua intenção biográfica e, antes de se
concentrar com extraordinária veemência no horror do “seu tempo”, esta espécie
de testamento espiritual reitera com o mesmo candor e as mesmas velhas
fotografias a evocação nostálgica da vida transcorrida.
O que significa então “existimos”? A existência – este
conceito fundamental na primeira filosofia do ocidente – terá talvez constitutivamente
a ver com a vida. “Ser”, escreve Aristóteles, “para os vivos significa viver”.
E, alguns séculos depois, Nietzsche precisa: “ser: não temos outra
representação que viver”. Trazer à luz – fora de qualquer vitalismo – o intimo
cruzamento de ser e existir: esta é certamente hoje a tarefa do pensamento (e
da política).
6. A Sociedade do Espectáculo abre
com a palavra “vida” (“Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições
modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espectáculos)
e até ao último momento as análises do livro não cessam de pôr em causa a vida.
O espectáculo, onde “tudo o que era directamente vivido se distancia numa
representação”, é definido enquanto uma “inversão concreta da vida”. “Quanto
mais a vida do homem se torna no seu produto, tanto mais ele é separado da sua
vida”. A vida nas condições espectaculares é uma “falsa vida”, uma
“sobrevivência” ou um “pseudo-uso da vida”. Contra esta vida alienada e
separada, é postulado algo que Guy chama “vida histórica”, que surge logo no Renascimento
como uma “ruptura alegre com a eternidade”: “na vida exuberante das cidades
italianas... a vida é conhecida enquanto um disfrute da passagem do tempo”.
Anos antes, em Sur le passage de qualques personnes e em Critique de la séparation, Guy
afirma de si e dos seus companheiros que “queriam reinventar tudo todos os
dias, tornar-se patrões e donos da sua própria vida”, e que os seus encontros
eram como “sinais provenientes de uma vida mais intensa, que nunca foi
verdadeiramente encontrada”.
O que quer que fosse esta vida “mais intensa”, o que era
arruinado ou falsificado no espectáculo ou simplesmente o que deveria ser
entendido por “vida na sociedade” não é esclarecido em qualquer momento; e no
entanto seria demasiado fácil censurar ao autor incoerência ou imprecisão
terminológica. Guy não faz mais que repetir uma postura constante na nossa
cultura, na qual a vida não é nunca definida enquanto tal, mas é
recorrentemente dividida em Bios e Zoè, vida politicamente
qualificada e vida nua, vida pública e vida privada, vida vegetativa e vida de
relação, onde nenhuma das partições é determinável senão na sua relação com a
outra. E é, talvez em última análise, exactamente o indecidível da vida que faz
com que ela seja sempre de novo decidida singularmente e politicamente. E a
indecisão de Guy entre a clandestinidade da sua vida privada – que, com o
passar do tempo, devia parecer-lhe mais fugidia e indocumentável – e a vida
histórica, entre a sua vida individual e a época obscura e irrenunciável na
qual ela esteve inscrita, traduz uma dificuldade que, pelo menos nas condições
presentes, ninguém se pode iludir de ter resolvido de uma vez por todas. De
qualquer modo, o Graal obstinadamente procurado, a vida que inutilmente se
consome na chama, não era reduzível a nenhum dos termos opostos, nem à idiotez
da vida privada nem ao incerto prestígio da vida pública, revogando assim a
questão da própria possibilidade de as distinguir.
Ivan Illich observou que a noção corrente de vida (não
“uma vida”, mas “a vida” em geral) é percepcionada enquanto “facto científico”,
que não tem já qualquer relação com a experiência do vivente singular. A vida é
algo anónimo e genérico, que pode designar tanto um espermatozóide, uma pessoa,
uma abelha, um urso ou um embrião. Deste “facto científico”, tão genérico que a
ciência renunciou a procurar-lhe uma definição, a Igreja fez o último receptáculo
do sagrado, e a bioética o termo chave da sua impotente absurdez.
Assim como nessa vida se insinuou um resíduo sacro, a
outra, a clandestina, que Guy seguia, tornou-se ainda mais indescritível. A
tentativa situacionista de restituir a vida à política esbarra com uma
dificuldade posterior, mas não é por isso menos urgente.
O que significa que a vida privada nos acompanhe enquanto
vida clandestina? Antes de tudo, que está separada de nós como está um
clandestino, e simultaneamente, que é de nós inseparável no modo como, enquanto
clandestino, partilha sub-repticiamente a vida connosco. Esta cisão e
inseparabilidade definem tenazmente o estatuto da vida na nossa cultura. A vida
é algo que pode ser dividido – e, no entanto, sempre articulado e reunido numa
máquina médica, filosófico-teológica ou biopolítica. Assim, não é apenas a vida
privada que nos acompanha enquanto clandestina na nossa breve ou longa viagem,
mas a própria vida corpórea e tudo o que tradicionalmente se inscreve na esfera
da chamada “intimidade”: a nutrição, a digestão, o urinar, o defecar, o sono, a
sexualidade... E o peso desta companheira sem rosto é tão forte que todos o
procuramos partilhar com um outro – e, todavia, a estranheza e a clandestinidade
nunca desaparecem e permanecem irresolúveis até na mais amorosa das
convivências. A vida aqui é verdadeiramente como a raposa roubada que o rapaz
esconde sob as suas roupas e não pode confessar ainda que lhe dilacere
atrozmente a carne.
É como se cada um sentisse obscuramente que a própria
opacidade da vida clandestina encerra em si um elemento genuinamente político,
e como tal por excelência partilhável – e todavia, se o tentamos partilhar,
foge obstinadamente à sua prisão e não deixa senão um resíduo ridículo e
incomunicável. O castelo de Silling, no qual o poder político não tem outro
objecto que a vida vegetativa dos corpos, é neste sentido a figura da verdade
e, do mesmo modo, o fracasso da política moderna – que é na verdade uma biopolítica.
Ocorre mudar a vida, levar a política ao quotidiano – e, no entanto, no
quotidiano, o político não pode senão naufragar.
E quando, como sucede hoje, o eclipse da política e da
esfera pública não deixa subsistir senão o privado e a vida nua, a vida
clandestina, que se torna a única dona do campo, deve, enquanto privada,
publicitar-se e tentar comunicar os seus próprios já não risíveis (e todavia
ainda tais) documentos que coincidem agora imediatamente com ela, com as suas
jornadas indistintas filmadas ao vivo e transmitidas pelos ecrãs uns aos outros,
uma após a outra.
E, no entanto, só se o
pensamento for capaz de encontrar o elemento político que se escondeu na
clandestinidade da existência singular, só se para lá da cisão entre público e
privado, política e biografia, Zoè e
Bios, for possível delinear os contornos de uma forma de vida e de um uso comum dos corpos, poderá a política sair
do seu mutismo e da biografia individual da sua idiotez.
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Imagem
Fotograma final do filme “In Girum imus nocte et consumimur igni” (1978)
de Guy Debord. “A reprendre depuis le début”
(“Para retomar a partir do início”) é a frase com que Debord termina o seu
filme, em vez do tradicional “Fim”. Como escreve o mesmo Agamben em “Diferença
e Repetição: sobre os filmes de Debord”, isto é não apenas uma referência ao
palíndromo que dá o nome ao filme, como a uma própria condição de palíndromo do
cinema de Debord [nota de edição].
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Giorgio
Agamben
Filósofo. Nasceu em Roma em 1942. É fundamentalmente
conhecido pela sua obra magna Homo Sacer,
publicada parcialmente em português, nomeadamente “Poder Soberano e Vida Nua” e “Estado
de Excepção”. É autor também de “Ideia da prosa” e “A comunidade que vem”. O
prólogo que aqui se faz publicar foi uma tradução livre da versão original em
Italiano.