Devir menor, espaço, território e emancipação social. Perspectivas a partir da Ibero-América ▬ Susana Caló





Devir Menor, Espaço, Território e Emancipação Social. Perspectivas a partir da Ibero-América é uma investigação que tem como objectivo interrogar a dimensão espacial das formas e práticas de emancipação social na contemporaneidade. Inicialmente formulado no âmbito de um pensamento ético-político da literatura na filosofia política de Deleuze e Guattari na obra sobre Kafka e retomado no volume II de Capitalismo e Esquizofrenia, o conceito de devir menor serve de ponto de partida ao projecto, e refere-se ao processo pelo qual se criam aberturas à variação num contexto determinado por uma língua dominante, segunda a ideia de que subjacente a uma língua unitária está uma operação de poder que se impõe sobre uma multiplicidade política. Mais concretamente, refere-se a uma prática de contra-investimento, exercida sobre as estruturas de poder por forma a abrir espaços para a vida e para a heterogeneidade.
Tendo no horizonte a crescente mercantilização da cidade e do território que cada vez mais se afirma como uma tendência dominante, com consequências directas sobre as formas de vida, procuramos traçar alternativas a este modelo e examinar processos de resistência como são, entre outros, a tomada de terras na Argentina, as lutas dos sem-terra no Brasil, ou também as ocupações do espaço público que têm ocorrido agora com grande visibilidade no Sul da Europa.
O conjunto de contribuições aqui reunido foca principalmente três dimensões:
– a ficção do território enquanto disputa sobre identidade;
– a questão da terra enquanto luta por direitos a outras formas de produção e modos de existência;
– e a questão do habitar na luta pela politização colectiva da cidade e do urbano.

Da mesma forma, e reconhecendo a transversalidade destas problemáticas, esta investigação confere particular atenção à articulação entre campos profissionais e disciplinares (urbanismo e arquitectura) e práticas espaciais desenvolvidas por movimentos sociais no âmbito de processos de autonomização cívica e emancipação social.
Finalmente, o próprio contexto geográfico em que este projecto se insere assume contornos que exigem problematização. É preciso ter em atenção que a Ibero-América enquanto constructo projecta sobre um amplo e diverso território uma ideia de unidade que remete a um passado colonial. Numa primeira instância esta aproximação entre a América Latina e a Península Ibérica não pode, portanto, ser entendida sem a consciência de uma história colonial e de uma modelação identitária que resulta na ofuscação da divergência e da diversidade existente no espaço deste território. Contudo, mais do que uma limitação, aqui a Ibero-América é uma possibilidade de trabalho. E ao contrário da unidade investida no constructo, o resultado que se procura não é uma mostra unitária, mas uma multiplicidade e heterogeneidade de práticas espaciais e concepções de território que emergem deste espaço e das quais é possível tirar partido. Assim, centrarmo-nos aqui nas possibilidades de abertura a outras experiências e práticas de emancipação, procurando estabelecer ligações e cruzamentos entre diversas noções de território e de prática, de vida e de relações sócio-espaciais.
Por último, a pergunta que quisemos colocar foi de que modo um entendimento menor das práticas do espaço abre possibilidades para a emergência de formas de viver e de habitar mais democráticas. Como conclusão, ressalva-se um entendimento ético-político do menor, isto é, que segue o imperativo de uma prática, que diz respeito a uma tensão e articulação produtiva entre movimentos sociais e instituições, com vista à consagração em direito a outros modos de organização, outros modos de produção, outros territórios e modos de vida.
Deste modo, iniciamos este dossier com a exploração cuidada do conceito de devir menor avançado por Deleuze e Guattari, e o seu desenvolvimento por relação com a axiomática do capital na forma do problema do minoritário. Neste texto, intitulado Devir Autónomo e Imprevisto: Por novos espaços de liberdade, proponho reavaliar o conceito na medida de uma prática de resistência que articula uma micropolítica e uma macropolítica, alertando para os perigos de confundir o menor com o pequeno, o independente ou o marginal. Trabalha-se a ideia de que a luta pelos espaços da existência é uma luta pela vida, e que defender o direito ao território é também defender o direito à participação na invenção de um mundo.
Prosseguimos com O Sul também não existe. A arquitectura ficcional da América Latina de Eduardo Pellejero, em que o autor explora uma série de casos da literatura do último século - ficções coloniais e nacionalistas modernas e, em contraste, formas "menores" de ficção e "desincorporação literária" - para desenvolver uma ideia de literatura que se opõe a narrativas hegemónicas e às identificações imaginárias que modelam o território permitindo-nos compreender o seu potencial de resistência.
O terceiro ensaio, Devir-Mundo das Práticas Menores é de Anne Querrien que a partir da ideia da escola enquanto lugar de articulação da heterogeneidade do território procura expandir o pensamento das práticas espaciais críticas com vista a uma abertura à participação e autogestão do espaço.
A reflexão seguinte, desenvolvida por Patricio del Real, com o título Dionora. Para Uma arquitectura menor, contrasta a ideia de território ou meta-geografia ibero-americana com a multiplicidade social e cultural que corresponde a esse território. Em alternativa, encetando também uma crítica ao fascínio pelo informal, sugere que se foque a atenção não sobre a escala do território, mas sobre a escala da cidade, por forma a pensar as condições para um processo de menorização da prática da arquitectura.
Nesta sequência, a contribuição de Godofredo Pereira Feitiço, Arquitectura e Território, sugere a desconexão contemporânea entre a profissão de arquitectura e a necessidade de uma política espacial crítica. Partindo da influência que os "anos entre os brancos" tiveram sobre o posicionamento político da obra de Lina Bo Bardi, assim como a proximidade desta com a conceptualização de uma ecologia radical desenvolvida por Félix Guattari, procura pensar a importância "feiticista" de certos objectos enquanto elementos transversais que dão corpo uma relação entre território e existência, enquanto lugar de transformação e luta política.
Ainda sobre a problemática da emancipação social no Brasil, a contribuição de Paulo Tavares, Abertura - Trilogia da Terra é um projecto vídeo de investigação sobre os desdobramentos urbanos e territoriais do processo de redemocratização no Brasil no período designado de "Abertura". A partir de um conjunto de entrevistas e dos registos das viagens de Félix Guattari ao Brasil, documentada em Micropolítica: cartografias do desejo, o autor mostra como a questão do direito à terra estava no centro das lutas políticas e sociais, à escala urbana, agrária e territorial.
Prosseguimos com o Colectivo Situaciones que nos traz uma reflexão produzida com outros colectivos no Taller Hacer Ciudad. Cidade Multiforme: o caso do Indoamericano analisa a ocupação do parque indoamericano em Buenos Aires por emigrantes, em Dezembro de 2010, que desaguou em violência, terminando com a sua evacuação. Na análise do processo, os autores identificam uma complicada trama económica e governamental de micro-gestão territorial e especulação imobiliária conjugada com problemas de emigração, racismo e nacionalismo.
Ainda no âmbito de projectos de trabalho colectivo e militante, em Algumas Considerações a cerca da Prática do Mapeamento Colectivo, o colectivo Iconoclasistas parte de uma crítica ao uso hegemónico da representação cartográfica para mostrar através da sua extensa experiência como os mesmos recursos podem ser usados de um modo contra-hegemónico. Os autores desenvolvem um método de cartografia participativa, com vista à produção de novas subjectividades e territorialidades.
No encadeamento desta reflexão crítica, a entrevista a Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, cuja extensa obra se debruça sobre processos de emancipação social, particularmente no Sul Global, vem providenciar uma importante ligação entre práticas espaciais e lutas sociais. Neste entrevista Boaventura Sousa Santos percorre as lutas pelo direito à terra na América Latina, quer de comunidades agrícolas ou populações indígenas, às lutas urbanas e em torno ao espaço público. Em particular, a relação entre movimentos sociais e a consagração institucional de direitos ou a democratização do espaço como condição para uma democracia participativa foram aspectos importantes salientados permitindo focar a dimensão politica e social do espaço.
As contribuições aqui reunidas para formar especialmente este dossier foram desenvolvidas durante o ano de 2012.


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 Susana Caló
Eduardo Pellejero
Anne Querrien
Patricio del Real
Godofredo Pereira
Paulo Tavares
Atelier Hacer Ciudad e Colectivo Situaciones
Iconoclasistas
Entrevista a Boaventura de Sousa Santos


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Nota da edição
O Dossier “Devir Menor, Espaço, Território e Emancipação Social. Perspectivas a partir da Ibero-América” teve a coordenação editorial de Susana Caló e foi publicado originalmente na Revista Lugar Comum, 41, da Universidade Nômade. Os artigos que compõem o dossier irão ser publicados na íntegra no site da Revista Punkto, durante as próximas semanas, e poderão ser pesquisados sob a etiqueta «Dossier Menor». A entrevista feita a Boaventura de Sousa Santos foi publicada no Punkto em Dezembro de 2013, sob o título Democratizar o espaço, democratizar o território.

Imagem
1. Situaciones + Atelier Hacer Ciudad. Primeira tentativa de mapa conceptual de Buenos Aires, segundo as perspectivas desdobradas pela ocupação do Parque Indoamericano, em Dezembro de 2010. Nota de tradução: por “Mercado de ‘Truchos'” deve entender-se “Mercado ‘Pirata’”

Susana Caló
É investigadora licenciada em Psicologia e mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela Universidade do Porto. Actualmente está a finalizar o doutoramento no Centre for Research in Modern European Philosophy (CRMEP), em Londres, com uma tese sobre a política da linguagem a partir de Félix Guattari e de Gilles Deleuze, que versa sobre as relações entre linguagem, semiótica e emancipação. É editora da revista Detritos. Em 2011/12 concebeu e foi co-curadora do projecto Devir Menor. Arquitectura e Práticas Espaciais Críticas para a Capital Europeia da Cultura – Guimarães 2012.