Devir Menor, Espaço, Território e Emancipação Social. Perspectivas a partir
da Ibero-América é uma investigação que tem como
objectivo interrogar a dimensão espacial das formas e práticas de emancipação
social na contemporaneidade. Inicialmente formulado no âmbito de um pensamento
ético-político da literatura na filosofia política de Deleuze e Guattari na
obra sobre Kafka e retomado no volume
II de Capitalismo e Esquizofrenia, o
conceito de devir menor serve de
ponto de partida ao projecto, e refere-se ao processo pelo qual se criam
aberturas à variação num contexto determinado por uma língua dominante, segunda
a ideia de que subjacente a uma língua unitária está uma operação de poder que
se impõe sobre uma multiplicidade política. Mais concretamente, refere-se a uma
prática de contra-investimento, exercida sobre as estruturas de poder por forma
a abrir espaços para a vida e para a heterogeneidade.
Tendo no horizonte
a crescente mercantilização da cidade e do território que cada vez mais se
afirma como uma tendência dominante, com consequências directas sobre as formas
de vida, procuramos traçar alternativas a este modelo e examinar processos de
resistência como são, entre outros, a tomada de terras na Argentina, as lutas
dos sem-terra no Brasil, ou também as ocupações do espaço público que têm
ocorrido agora com grande visibilidade no Sul da Europa.
O conjunto de
contribuições aqui reunido foca principalmente três dimensões:
– a ficção do território
enquanto disputa sobre identidade;
– a questão da
terra enquanto luta por direitos a outras formas de produção e modos de
existência;
– e a questão do
habitar na luta pela politização colectiva da cidade e do urbano.
Da mesma forma, e
reconhecendo a transversalidade destas problemáticas, esta investigação confere
particular atenção à articulação entre campos profissionais e disciplinares
(urbanismo e arquitectura) e práticas espaciais desenvolvidas por movimentos
sociais no âmbito de processos de autonomização cívica e emancipação social.
Finalmente, o
próprio contexto geográfico em que este projecto se insere assume contornos que
exigem problematização. É preciso ter em atenção que a Ibero-América enquanto
constructo projecta sobre um amplo e diverso território uma ideia de unidade
que remete a um passado colonial. Numa primeira instância esta aproximação
entre a América Latina e a Península Ibérica não pode, portanto, ser entendida
sem a consciência de uma história colonial e de uma modelação identitária que
resulta na ofuscação da divergência e da diversidade existente no espaço deste
território. Contudo, mais do que uma limitação, aqui a Ibero-América é uma
possibilidade de trabalho. E ao contrário da unidade investida no constructo, o
resultado que se procura não é uma mostra unitária, mas uma multiplicidade e
heterogeneidade de práticas espaciais e concepções de território que emergem
deste espaço e das quais é possível tirar partido. Assim, centrarmo-nos aqui
nas possibilidades de abertura a outras experiências e práticas de emancipação,
procurando estabelecer ligações e cruzamentos entre diversas noções de
território e de prática, de vida e de relações sócio-espaciais.
Por último, a
pergunta que quisemos colocar foi de que modo um entendimento menor das práticas do espaço abre
possibilidades para a emergência de formas de viver e de habitar mais
democráticas. Como conclusão, ressalva-se um entendimento ético-político do
menor, isto é, que segue o imperativo
de uma prática, que diz respeito a uma tensão e articulação produtiva entre
movimentos sociais e instituições, com vista à consagração em direito a outros
modos de organização, outros modos de produção, outros territórios e modos de
vida.
Deste modo,
iniciamos este dossier com a exploração cuidada do conceito de devir menor avançado por Deleuze e
Guattari, e o seu desenvolvimento por relação com a axiomática do capital na
forma do problema do minoritário.
Neste texto, intitulado Devir Autónomo e
Imprevisto: Por novos espaços de liberdade, proponho reavaliar o conceito
na medida de uma prática de resistência que articula uma micropolítica e uma
macropolítica, alertando para os perigos de confundir o
menor com o pequeno, o independente ou o marginal. Trabalha-se a ideia de que a
luta pelos espaços da existência é uma luta pela vida, e que defender o direito
ao território é também defender o direito à participação na invenção de um
mundo.
Prosseguimos com O
Sul também não existe. A arquitectura ficcional da América Latina de Eduardo Pellejero, em que o autor explora uma série de casos da
literatura do último século - ficções coloniais e nacionalistas modernas e, em
contraste, formas "menores" de ficção e "desincorporação
literária" - para desenvolver uma ideia de literatura que se opõe a narrativas
hegemónicas e às identificações imaginárias que modelam o território
permitindo-nos compreender o seu potencial de resistência.
O terceiro ensaio, Devir-Mundo das Práticas Menores é de
Anne Querrien que a partir da ideia da
escola enquanto lugar de articulação da heterogeneidade do território procura expandir
o pensamento das práticas espaciais críticas com vista a uma abertura à
participação e autogestão do espaço.
A reflexão
seguinte, desenvolvida por Patricio del Real, com o título Dionora. Para Uma arquitectura menor, contrasta a ideia de território ou meta-geografia ibero-americana
com a multiplicidade social e cultural que corresponde a esse território. Em
alternativa, encetando também uma crítica ao fascínio pelo informal, sugere que
se foque a atenção não sobre a escala do território, mas sobre a escala da
cidade, por forma a pensar as condições para um processo de menorização da
prática da arquitectura.
Nesta sequência, a
contribuição de Godofredo Pereira Feitiço,
Arquitectura e Território, sugere a desconexão contemporânea entre a
profissão de arquitectura e a necessidade de uma política espacial crítica.
Partindo da influência que os "anos entre os brancos" tiveram sobre o
posicionamento político da obra de Lina Bo Bardi, assim como a proximidade desta
com a conceptualização de uma ecologia radical desenvolvida por Félix Guattari,
procura pensar a importância "feiticista" de certos objectos enquanto
elementos transversais que dão corpo uma relação entre território e existência,
enquanto lugar de transformação e luta política.
Ainda sobre a
problemática da emancipação social no Brasil, a contribuição de Paulo Tavares, Abertura - Trilogia da Terra é um
projecto vídeo de investigação sobre os desdobramentos urbanos e territoriais
do processo de redemocratização no Brasil no período designado de
"Abertura". A partir de um conjunto de entrevistas e dos registos das
viagens de Félix Guattari ao Brasil, documentada em Micropolítica: cartografias do desejo, o autor mostra como a
questão do direito à terra estava no centro das lutas políticas e sociais, à
escala urbana, agrária e territorial.
Prosseguimos com o
Colectivo Situaciones que nos traz uma reflexão produzida com outros colectivos
no Taller Hacer Ciudad. Cidade
Multiforme: o caso do Indoamericano analisa a ocupação do parque
indoamericano em Buenos Aires por emigrantes, em Dezembro de 2010, que desaguou
em violência, terminando com a sua evacuação. Na análise do processo, os
autores identificam uma complicada trama económica e governamental de
micro-gestão territorial e especulação imobiliária conjugada com problemas de
emigração, racismo e nacionalismo.
Ainda no âmbito de
projectos de trabalho colectivo e militante, em Algumas Considerações a cerca
da Prática do Mapeamento Colectivo, o colectivo Iconoclasistas parte de uma crítica ao uso
hegemónico da representação cartográfica para mostrar através da sua extensa
experiência como os mesmos recursos podem ser usados de um modo
contra-hegemónico. Os autores desenvolvem um método de cartografia
participativa, com vista à produção de novas subjectividades e
territorialidades.
No encadeamento
desta reflexão crítica, a entrevista a Boaventura de Sousa Santos, sociólogo, cuja extensa obra se
debruça sobre processos de emancipação social, particularmente no Sul Global,
vem providenciar uma importante ligação entre práticas espaciais e lutas
sociais. Neste entrevista Boaventura Sousa Santos percorre as lutas pelo
direito à terra na América Latina, quer de comunidades agrícolas ou populações
indígenas, às lutas urbanas e em torno ao espaço público. Em particular, a
relação entre movimentos sociais e a consagração institucional de direitos ou a
democratização do espaço como condição para uma democracia participativa foram
aspectos importantes salientados permitindo focar a dimensão politica e social
do espaço.
As contribuições
aqui reunidas para formar especialmente este dossier foram desenvolvidas
durante o ano de 2012.
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Susana Caló
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Eduardo Pellejero
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Anne Querrien
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Patricio del Real
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Arquitectura,
Feitiço e Território. Matéria e impulso de libertação na obra baiana de Lina Bo
Bardi.
Godofredo Pereira
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Paulo Tavares
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Atelier Hacer Ciudad e Colectivo
Situaciones
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Iconoclasistas
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Entrevista a Boaventura de Sousa
Santos
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Nota da edição
O Dossier “Devir Menor, Espaço, Território e
Emancipação Social. Perspectivas a partir da Ibero-América” teve a coordenação
editorial de Susana Caló e foi publicado originalmente na Revista
Lugar Comum, 41,
da Universidade Nômade. Os artigos que compõem o dossier irão ser publicados na
íntegra no site da Revista Punkto, durante as próximas semanas, e poderão ser
pesquisados sob a etiqueta «Dossier Menor». A entrevista feita a Boaventura de
Sousa Santos foi publicada no Punkto em Dezembro de 2013, sob o título Democratizar o espaço, democratizar o
território.
Imagem
1. Situaciones + Atelier Hacer Ciudad. Primeira tentativa
de mapa conceptual de Buenos Aires, segundo as perspectivas desdobradas pela
ocupação do Parque Indoamericano, em Dezembro de 2010. Nota de tradução: por
“Mercado de ‘Truchos'” deve entender-se “Mercado ‘Pirata’”
Susana Caló
É investigadora licenciada em Psicologia e mestre em Filosofia Moderna e
Contemporânea pela Universidade do Porto. Actualmente está a finalizar o
doutoramento no Centre for Research in Modern European Philosophy (CRMEP), em
Londres, com uma tese sobre a política da linguagem a partir de Félix Guattari
e de Gilles Deleuze, que versa sobre as relações entre linguagem, semiótica e
emancipação. É editora da revista Detritos. Em 2011/12 concebeu e foi
co-curadora do projecto Devir Menor. Arquitectura e Práticas Espaciais Críticas
para a Capital Europeia da Cultura – Guimarães 2012.