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Devir Autónomo e
Imprevisto
Por novos espaços de liberdade
Susana Caló
É a
variação contínua que constituiu o devir minoritário de toda a gente, por
oposição ao Facto maioritário de Ninguém. O devir minoritário como figura
universal da consciência chama-se autonomia. Não é, com certeza, ao utilizar
uma língua menor como dialecto, ao fazer do regionalismo ou do gueto que se devém
revolucionário; é ao utilizar muitos elementos5 de minoria, ao conectá-los, ao
conjugá-los que se inventa um devir específico autónomo, imprevisto. [1]
As
línguas menores não existem em si: só existem em relação a uma língua maior, são
também investimentos dessa língua para que ela própria se torne menor. [2]
Deleuze
e Guattari, Mil Planaltos
Quando
em Mille Plateaux Deleuze e Guattari
se referem ao projecto de devir menor
enquanto constituição de uma prática revolucionária com o potencial de evadir a
axiomática do capital é para o investir de uma dimensão política que merece ser
explorada, para além do campo da literatura em que foi inicialmente formulado [3]. É
neste movimento que se podem especular linhas de pensamento sobre a questão da
relação entre espaço, política e emancipação a partir dos conceitos de devir menor e minoria. Neste âmbito, há duas ideias chave: primeiro, a virtude de
questionar o critério epistemológico que define maiorias e minorias e, segundo,
a qualificação de uma prática que toma lugar no seio do maior para o menorizar. A primeira e a segunda complementam-se
na definição de uma prática orientada para a abertura de espaços de conexão à
experiência múltipla do mundo, ou a criação de condições de possibilidade para
outras formas de pensamento e de vida. Contudo, é importante notar que, como
bem nota Maurizio Lazzarato [4], o conceito de devir menor traduz
o período das lutas da década de 60, num ambiente em que se procurava encontrar
linhas de fuga através de formações minoritárias à rigidez política dos grandes
ajuntamentos sociais, institucionais e partidários. Ora, hoje em dia, passa-se
um pouco a situação contrária. Ao passo que o modelo neoliberal se afirma
duplamente, quer a um nível micro-político, na captura da produção de
subjectividade, quer a um nível macro-político, nas formas de estado e
instituições ao seu serviço, tanto movimentos sociais como partidos, manifestam
uma dificuldade de expressão e articulação que consiga conectar estes dois
planos. É neste sentido que vale a pena reavaliar a questão do menor. Importa
distingui-lo claramente de uma apologia do marginal, do pequeno, ou do
não-institucional. Por isso, vamos enfatizar essa implicação mútua, em que a
política é sempre uma micro e uma macro-política, pois parece-nos que se hoje o
conceito é válido é porque convoca a necessidade de procurar formas de
articulação e de formalização entre estas.
I.
Formulado
no âmbito de um pensamento político da literatura através do estudo da obra de
Kafka [5], o conceito
de devir menor refere-se ao processo
pelo qual, num contexto dominado por uma língua hegemónica, se criam espaços e
passagens para a variação e multiplicidade que não é reflectida nas formas de
representação dominantes. Segundo a ideia de que «a unidade da língua revela
uma manobra política» e que as línguas hegemónicas reforçam a homogeneização, a
identidade e as «constantes de expressão ou conteúdo», de acordo com um regime
de representação, devir menor deve
ser entendido como um tratamento da língua maior cujo propósito é de arrancar a
língua às relações de poder que a aprisionam, para a re-conectar com a variação
e heterogeneidade que caracteriza a experiência do mundo. Neste sentido, o
menor ou o maior não dizem respeito a duas línguas, mas a diferentes
tratamentos ou usos de uma língua. O que importa reter é que o maior determina
o padrão ou a regra a partir da qual todos os outros usos são avaliados: implementa
normas e leis, imanentes tanto ao conteúdo como à forma, que regulamentam não
só as práticas discursivas, mas também comportamentos, formas de falar, de
fazer e de pensar.
Parece-me
então que face a esta homogeneização, o tratamento menor da língua encontra a
sua mais alta justificação na premissa de que esta deve ser devolvida à
multiplicidade do mundo para salvaguardar condições de possibilidade de
enunciação e de formulação de novos problemas. Ou seja, a introdução de novos
objectos de luta no espaço político.
Se
retomarmos o ponto de vista de Deleuze e Guattari, a literatura menor implica
uma capacidade de afectar a língua maior com um grau relevante de
desterritorialização que provoca uma série de deslocamentos e renegociações que
a confrontam com o seu próprio limite. No caso de Kafka este efeito deve-se a
deslocamentos contextuais (em Metamorfose,
por exemplo) que produzem situações cuja natureza convoca simultaneamente a
renegociação de estruturas familiares, económicas, burocráticas ou jurídicas. Este
aspecto entende-se bem se seguirmos a proposta sugerida em Mille Plateaux de que a pragmática é a política da língua, isto é,
que a língua não existe em si mesma, mas depende de factores externos a si
própria ou pré-condições que permitem, ou não, a sua efectuação, em determinado
campo social ou contexto, e em dado momento no tempo.
Ora,
esta confrontação da língua com os seus limites expõe a rede de elementos da
qual a efectuação de um enunciado depende, deste modo entendendo-se melhor a
língua como um sistema dinâmico com quebras e transições, na fronteira de micro
e macro-lutas que reflectem modulações de poder, num certo momento do tempo e
revelam o contexto de relações de poder segundo as quais a expressão é
distribuída.
Se
continuarmos a extrapolar o sentido político do enquadramento da língua nessa
dinâmica de relações, então percebemos que, assim como o fechamento da língua
sobre si própria neutraliza a sua potência política revolucionária (porque
ofusca a sua dimensão colectiva e social), de igual forma o encerramento do
escritor sobre si próprio anula a potência política da criação literária. Como
tal, na perspectiva do menor, Deleuze e Guattari defendem que o verdadeiro
escritor é aquele que força sobre si próprio uma potência de desubjectivação da
experiência ou uma elevação ao impessoal, como condição necessária para a
articulação com a experiência colectiva (e singular) do mundo, assim como de
uma ligação do individual ao social. Neste sentido, a noção de agenciamento colectivo de enunciação,
também introduzida no livro dedicado a Kafka, é central para compreender o que
se entende por literatura menor. O escritor não escreve sobre as coisas, nem no
lugar delas, mas escreve com o mundo
ou em conjugação com o mundo – é, no fundo, essa a condição política da
literatura.
Trata-se
de defender que o fazer de uma língua não é uma coisa individual, mas diz
respeito a um processo de criação colectiva, assim como a um processo de
constituição de um colectivo. É também a esse respeito que Deleuze e Guattari propõem
que a literatura menor inventa condições de possibilidade de um povo por vir, povo esse que está em
falta. [6] Todavia,
é fundamental entender que este povo não se refere a um grupo particular ou
ideal, mas convoca a questão da política do por-vir,
sinónimo de outras formas de vida, outros valores e outros modos de pensamento
para os quais as condições de possibilidade de acontecimento têm de ser produzidas.
No domínio da língua ou da expressão, isso implica garantir que a enunciação e
a formulação de novos problemas sejam informadas por essa multiplicidade, e
sensíveis à formalização de novos problemas. É esse movimento de devir que forja articulações entre
vários regimes de poder, e que força o menor sobre o maior, que deve ser
relevado (enquanto uma prática).
II.
Partindo
destas considerações e tendo no horizonte a crescente mercantilização da cidade
e do território que cada vez mais se afirma como uma tendência dominante com
consequências directas sobre os modos de vida, tentarei agora sugerir a forma
como a ideia de devir menor pode
informar um pensamento e prática contra-hegemónicas do espaço e do território. Neste
âmbito, a hegemonia diz respeito ao processo global em que a urbanização hoje
promove a expansão do capital, estruturando tanto a cidade como o território de
maneiras que geram não só exclusão social e discriminação, mas inevitavelmente
resultam na afirmação de certas formas de relação com o espaço que acarretam
como consequência o estrangulamento de muitas outras. E com efeito, os aspectos
anteriormente mencionados – desterritorialização da língua maior; elevação ao
impessoal; conexão do individual ao social; agenciamento colectivo de
enunciação - revelam-se dimensões importantes para pensar práticas espaciais e
sociais comprometidas.
Mas
há ainda dois aspectos que resultam da reflexão prévia e que devemos notar: o reconhecimento
de que as formas de poder operam a diversos níveis, desde a produção de
subjectividade aos modos de relação social; e a necessidade de inventar modos
de articulação entre as dimensões subjectivas, movimentos sociais, formas de
representação e instituições. É claro que a política não pode ser reduzida à
dimensão maior das representações ou das instituições, pois passa também pelas
formas de vida e processos de produção de subjectividade, quer seja pelo “modo
como falamos” como por “aquilo que pode ser dito”. Ou seja, a política é algo que se faz e se pratica,
atravessando tanto o tecido do individual como do social. Esta tomada de
consciência é importante, pois a partir do momento em que a vida é tomada como
objecto de poder, nela reside também uma força estratégica que pode ser
canalizada para a resistência. Como disse Deleuze, «não é uma questão de nos
preocuparmos ou de esperar pelo melhor, mas de encontrar novas armas».
É
evidente que os domínios materiais e espaciais são atravessados por relações de
poder (de formas implícitas e explícitas) e necessariamente emitem
regulamentações sobre os modos de relação social, valores e formas de vida. Por
isso, o espaço não é, nem deve ser entendido, como um simples contentor
pacífico e neutral das relações sociais, mas sim como um elemento activo, com o
potencial de participar, tanto a um nível molecular, como molar, da singularização
e renovação dos modos de relação social e cultural. Como explicou Guattari, a
produção de subjectividade depende de uma série de factores polifónicos,
espaciais e materiais, discursivos e não discursivos, significantes e assignificantes.
Assumindo
como ponto de partida que as práticas de emancipação tomam lugar nos espaços
que habitamos e são tanto produtoras de espaço como contingentes ao espaço, deveríamos
ser capazes de operar uma análise dos lugares que habitamos, não só para
identificar modos de organização rígidos e hegemónicos, mas também para os
reformar. Estaríamos próximos do trabalho de crítica e análise institucional de
Guattari e Jean Oury no espaço da clínica La Borde [7], onde
se pode dizer que a estratégia era a de menorizar
o espaço institucional enquanto modo de singularização e autonomização da
diferença, e resolver um impasse entre uma horizontalidade e uma verticalidade
puras de poder, ou entre processos topo-base e base-topo.
Nesta
lógica, a questão que nos deveria orientar para pensar ideias de emancipação articuladas
por práticas espaciais seria: de que modo é que estas podem gerar formas de
habitar e de relação com o território que exponenciem processos de
singularização e autonomização cívica? Teríamos de pensar uma economia do
espaço e do território orientada para a emergência de concepções de liberdade,
de igualdade e de justiça capazes de constituir uma oposição crítica a critérios
epistemológicos maiores.
Embora
seja certamente possível definir certas minorias segundo um critério
quantitativo [8], esta definição é tão errada quanto
confundir a proposta do menor com a afirmação de espaços pequenos ou
independentes, desligados da sociedade e tentativamente separados da realidade,
em ruptura com as instituições e as estruturas de poder existentes. Não se
trata de evitar qualquer tipo ou forma de identidade ou de representação - dessa
forma anulando estrategizações formais chaves à prática política. Pelo
contrário, como sublinham Deleuze e Guattari, o menor deve mobilizar uma prática de articulação:
«as fugas e os movimentos moleculares não
seriam nada se não voltassem a passar pelas organizações molares, e se não
reconstituíssem os seus segmentos, as suas distribuições binárias de sexos, de
classes, de partidos.» [9]
Inevitavelmente
as lutas de emancipação social ocorrem às mais diversas escalas e nos mais
diversos contextos, produzindo formas de identidade, de associação e de
representação que se tornam a dado momento necessariamente maiores (desde o
grupo ao partido). Mas por isso mesmo é necessário identificar modos de interacção
do menor com o maior, que possam substituir a simples oposição (improdutiva)
entre espaços "menores" vs. "maiores", "marginal"
vs. "institucional", "formal" vs. "informal".
Neste
âmbito, as práticas espaciais que se debruçam sobre as relações de trabalho,
sobre o colectivo enquanto modo de criação, sobre protocolos de ocupação de
espaços ou sobre as políticas do território e as suas determinações legais, são
particularmente relevantes para imaginar possíveis práticas espaciais que
intervenham no âmbito de diferentes relações de poder. E por isso é crucial
prestar atenção também a modelos participativos promotores de outras formas de
relação social que potenciem estas articulações.
Por
outro lado, ao passo que é preciso não confundir metodologias participativas
com ausência de arquitectura, é crucial ter presente o que sugere o arquitecto
Teddy Cruz ao defender que «uma comunidade não será livre enquanto não for
capaz de resolver criativamente as suas necessidades de habitação, formas de
sustentabilidade socioeconómica, as suas próprias concepções de espaço público,
e os modos de relação com o território: no fundo a sua cultura cívica». [10]
III.
«Devir-minoritário
é uma questão política, e faz apelo para um trabalho de potência, para uma
micropolítica activa. É o contrário da macropolítica, e até da História, onde
se trata, antes, de saber como se vai conquistar ou obter uma maioria. Como
dizia Faulkner, não havia outra escolha senão devir-negro, para não se achar fascista.
Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e de futuro.
Um devir-revolucionário fica indiferente às questões de um futuro e de um
passado da revolução; ele passa entre os dois. Qualquer devir é um bloco de
coexistência.» [11]
Uma
prática menor começa por reconhecer que o pensar do espaço e do território é um
problema que diz respeito a todos. Tal como a invenção de uma língua diz
respeito a um colectivo, e não apenas a um indivíduo ou a um regime de
representação que se impõe de cima, também o espaço diz respeito a uma
comunidade, em prolongamento com a construção da sua autonomia cívica. Só
perspectivando as lutas em torno ao território enquanto lutas pela vida e
enquanto sintomas destes agenciamentos colectivos é que podemos fazer passar a
política pelo espaço, isto é, concebendo-o como território de existência. Deste
modo, a politização do espaço não termina no espaço, mas prossegue apontando
uma direcção para fora dele, indicando sempre a sua posição num regime
transversal de relações de forças, que prefigura a sua capacidade de
intervenção e afectação a diferentes níveis. Sem dúvida, a medida de afectação
mútua é a medida política do espaço.
Por
fim, reconhecer que a política se faz e se pratica nos espaços da existência
como uma luta pela vida, implica reconhecer e defender que o direito ao espaço
é também o direito à participação na invenção de um mundo. Uma participação que
depende da construção de articulações produtivas entre uma micro e uma macropolítica.
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Referências
1. Gilles Deleuze e Félix
Guattari, Mille plateaux. Paris:
Minuit, 1980. Mil planaltos. Capitalismo
e Esquizofrenia 2, Assírio & Alvim, Lisboa, 2007, 146.
2. Ibid., p. 144.
3. Isto não quer dizer que no
domínio literário devir menor não
tenha um cunho politico – pelo contrário, o explicitar da capacidade
ética-estética-política da literatura é central ao projecto crítico-clínico de
Deleuze e Guattari.
4. Entrevista não publicada,
realizada a Maio de 2013, Londres.
5. Gilles Deleuze e Félix
Guattari, Kafka: Pour une littérature
mineure. Paris: Minuit, 1975.
6. Esta articulação entre um
tratamento menor e a noção de um povo por
vir é melhor feita em Cinéma 2:
L’Image-temps (1985), Critique et
Clinique (1993) e Qu’est-ce que la
philosophie? (1991) por relação com o conceito de fabulação.
7. A primeira vez que tentei
analisar as implicações sociais e políticas do trabalho desenvolvido na análise
e crítica institucional foi através do estudo do caso da clínica La Borde em
"Félix Guattari e o colectivo em La Borde. Notas para uma concepção da subjectividade
para além do humano", em (dis)locations,
ed. Gabriela Vaz Pinheiro e Fbaup, 2011.
8. Como Deleuze e Guattari
explicam: «Por maioria, não entendemos uma quantidade relativa maior, mas a
determinação de um estado ou de um padrão em relação aos quais as quantidades
maiores assim como as mais pequenas serão ditas minoritárias.» Mil planaltos, p. 369. «Minoria e
maioria não se opõem de uma maneira apenas quantitativa. Maioria implica uma
constante de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação a que se
avalia (…) A maioria assume um estado de poder e de dominação, e não o inverso
(…). É claro que as minorias são estados definidos objectivamente, estados de
língua, de etnia, de sexo, com suas territorialidades de gueto; mas devem ser
consideradas também como germes, cristais de devir, que só valem ao libertar movimentos
incontroláveis e desterritorializações da média ou da maioria.» Mil planaltos, p. 145-146.
9. Ibid., p. 278.
10. Cf.: excelente discussão
on-line, em particular, os comentários de Teddy Cruz aqui "Re: [-empyre-]
Resilient Latin America: Reconnecting Urban Policy and the Collective's Imagination,
http://www.mail-archive.com/empyre@lists.cofa.unsw.edu.au/msg04012.html
(Acedido em Julho de 2012).
11. Mil planaltos, p. 371.
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Imagens
1. Rica del Sur, Horacio Zabala, 1974.
2. Deformaciones y hundimientos, Horacio
Zabala, 1974.
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Notas de edição
Artigo
de Susana Caló para o Dossier “Devir Menor, Espaço, Território e Emancipação
Social. Perspectivas a partir da Ibero-América” org. Susana Caló, publicado
originalmente na Revista Lugar Comum, 41,
Brasil, Universidade Nômade.
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Susana Caló
Escreve neste momento o
doutoramento no Centre for Research in Modern European Philosophy (CRMEP), em
Londres, com uma tese sobre a política da linguagem a partir de Gilles Deleuze
e de Félix Guattari em que aborda as relações entre linguagem, semiótica e
emancipação.