Ser Pós Moderno entre o Frágil e o Acarte \ Ana Bigotte Vieira




_____
Ser Pós Moderno
entre o Frágil e o Acarte
Ana Bigotte Vieira

“A análise do arquivo comporta, portanto, uma região privilegiada: ao mesmo tempo próxima de nós, mas diferente da nossa actualidade, é o contorno do tempo que rodeia o nosso presente, que se lhe sobrepõe e delimita a nossa alteridade; é o que, fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo desdobra as suas possibilidades (e o domínio das suas possibilidades) a partir dos discursos que justamente acabam de ser nossos (...). Neste sentido vale para nós como diagnóstico. (...) O diagnóstico assim entendido não estabelece a comprovação da nossa identidade a partir do jogo das distinções. Estabelece que somos diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos, a nossa história a diferença dos tempos, o nosso eu a diferença das máscaras. Que a diferença, longe de ser origem esquecida e recoberta, é essa dispersão que somos e fazemos.”
Michel Foucault, Arqueologia do Saber

Em Janeiro de 2013 teve lugar no Centro de Arte Moderna a conferência O CAM na Cultura Portuguesa dos Anos 80, coordenada pelo Arquitecto Nuno Grande. O texto que se segue foi escrito para esta ocasião, evento invulgar tanto no que diz respeito à escolha do objecto como do seu tratamento. De facto, não apenas a reflexão histórica sobre aquilo a que se chama “os Anos 80” está em grande parte por fazer, como é pouco comum uma abordagem onde cultura, arte, sociedade e formas de vida – vistas como construções humanas, históricas, e não como dados naturais – são entendidas como inextrincáveis e passíveis de se darem a uma reflexão.
Ser Pós Moderno Entre o Frágil e o Acarte foi redigido para o painel com o mesmo nome e moderação de Isabel Carlos, no qual participaram Luís Serpa, Manuel Graça Dias, Jorge Figueira e Ana Bigotte Vieira.
Escrito para ser lido na Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna em 2014, este texto, fruto de uma investigação de Doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa à época ainda em curso, procura interrogar este espaço na sua espessura histórica e função epocal. Dividido em duas partes, cada uma delas corresponde a uma ideia-chave. Na primeira, tratar-se-ia da ‘disjunção Anos Sessenta/Anos Oitenta’ proposta, entre outros, pelo historiador Luís Trindade [1]; já na segunda, para dar conta da acção de Madalena Perdigão, fundadora e primeira Directora do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, avançar-se-ia a noção de ‘Curadoria da Falta’.
Situado no agora e a pensar numa abertura de possibilidades para amanhã, trata-se de uma análise esboçada por alguém que nasceu em 1980 a tentar um diálogo com quem viveu essa época – não para a reconstruir mas, como diz Michel Foucault na epígrafe acima, para compreender o que no que somos hoje há de diferente do que deixámos de ser – e com isso contribuir para um possível diagnóstico daquilo que poderemos devir. É que na melhor das hipóteses, estando a História desta época em grande parte ainda por fazer, eventos como aquele, caso consigam resistir a uma tentação nostálgica [2], contribuem para a sua construção.


1.
“SER PÓS-MODERNO ENTRE O FRÁGIL E O ACARTE.”
Entre
“Ser Pós-Moderno Entre o Frágil e o Acarte” : a proposta identitária que a afirmação que dá nome a este painel alberga "Ser pós moderno"  coloca dois lugares da cidade de Lisboa em relação e fá-lo por via de uma circulação, de um entre. Os lugares são a discoteca Frágil, no Bairro Alto, aberta por Manuel Reis em 1982 e o Serviço ACARTE, Serviço de Animação, Criação Artística e Educação pela Arte da Fundação Calouste Gulbenkian fundado por Maria Madalena de Azeredo Perdigão em 1984, um ano depois do Centro de Arte Moderna abrir, e nele sediado.
Como pano de fundo está uma época: os anos 80; um país: Portugal; e uma cidade: Lisboa. A identidade implícita na expressão Ser pós-moderno e a sua relação com a circulação entre estes dois lugares coloca-os em recorte, como se fosse pela circulação entre eles que esse Ser pós-moderno se produzisse. É importante notar que, na produção desse ser(-se) pós moderno (de quem? do país? da cidade? das pessoas?), estes dois lugares não serão os únicos nem serão estanques, antes pelo contrário – um recorte é sempre recortado de algo maior, algo onde se insere e com que se relaciona, nem que seja por meio de uma qualquer excepcionalidade (caso, por ex. da Fundação Calouste Gulbenkian, muitas vezes equiparada a um “oásis”, ou do Centro de Arte Moderna, o primeiro Museu de Arte Moderna no país), ou de uma aparente negação (caso, por ex., do Frágil e da “noite lisboeta”, sítio de extravagâncias).
Como refere Nuno Grande (GRANDE 2009), a década de 80 em Portugal, aparece como que cortada ao meio: por um lado, o pedido de auxílio financeiro ao FMI em 1983 e um crescente afastamento dos resquícios do pós-revolução; e, por outro, a eufórica adesão à União Europeia em 1985-1986 com as pressões de construção de uma “portugalidade” capaz de figurar numa mitificada Europa.
Mais do que procurarmos aqui uma definição estável de que ser pós-moderno possa ser esse que se é ou se quer ser, ou mesmo uma caracterização sociológica dos seus sujeitos (esses, que seriam pós-modernos), gostaríamos de tentar olhar para estes lugares, debruçando-nos em particular sobre o segundo, o ACARTE, enquanto espaços activos numa produção de processos de subjectivação em curso [3], reparando que parece haver características que os unem.  



Complexo Exibicionário
Tony Bennet em The Birth of the Museum (BENNET 1995) – partindo de uma grelha foucauldiana onde justapõe a emergência simultânea, no século XIX, do museu e de espaços como a escola, as bibliotecas, as galerias, as arcadas, os grandes armazéns e as exposições internacionais – deu o nome de “complexo exibicionário” a um conjunto de instituições e de lugares que tinham por objectivo a auto-formação dos cidadãos dos recém laicizados estados. De acordo com Bennet, é justamente pela modelação dos modos como se circula entre e se age (n)estes lugares que uma série de rotinas e comportamentos sociais se constituem. Capaz de iluminar a relação entre espaços aparentemente tão opostos como os grandes armazéns, as feiras populares e as bibliotecas, a noção de “complexo exibicionário”, ao complicar as relações entre “alta” e “baixa” cultura, cultura “nacional” e cultura “internacional”, cultura “urbana” e cultura “rural” parece-nos particularmente útil para abordar o tal entre de que falámos a início.
Numa transposição, talvez precipitada (sem dúvida caricatural) desta noção para o contexto português dos anos 80 outros prováveis lugares, para além do Frágil e do ACARTE, apareceriam como possível parte integrante deste “complexo exibicionário”: espaços de consumo como o Amoreiras ou os grandes hipermercados, fenómenos como a emergência do chamado Rock Português ou a Moda Lisboa, o crescimento dos subúrbios, a massificação das férias ou um pouco mais tarde, o despontar de um certo tipo de escrita cultural, entre outros.

Um processo coreopolítico
É que Portugal entra para a Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, e os termos “Europa”, “Nação”, “Moderno” – e, em corolário, mesmo que em “curto-circuito” [4], como defende Boaventura de Sousa Santos (SANTOS 1984), ‘Pós Moderno’ – constituem nesta altura, e antes de mais, um apelo, o omnipresente slogan de um processo coreopolítico em curso, como sustenta André Lepecki em Dancing Without the Colonial Mirror: Modernity, Dance and nation in the works of Vera Mantero and Francisco Camacho (1985-1997). Um processo cujo passo, necessariamente demasiado veloz, acarreta consigo um esforço generalizado de amnésia: amnésia de um território entendido enquanto império ultramarino, da guerra colonial...do passado recente de Abril tanto quanto dos 48 anos de ditadura [5] ...implicando, como qualquer transformação histórica abrupta, uma reconfiguração da experiência da corporalidade dos sujeitos, o que, longe de ser um processo pacífico é um processo atravessado e acompanhado por tensões e contradições várias, possíveis cristalizações identitárias e os seus devires minoritários. [6]

A reconfiguração da experiência da corporalidade
É neste terreno, o da reconfiguração desta experiência da corporalidade, que, como veremos, o ACARTE com os seus desfiles de corpos em performance (corpos nus, urbanos, cosmopolitas, multiculturais, exageradamente rápidos ou lentos); com os magotes de gente que acorria às suas iniciativas povoando os seus jardins, com os seus ciclos de eventos onde a participação e a discussão se tornam prática comum e a ida ao museu um hábito – será pródigo. O que se dá em simultâneo com a emergência daquela que viria a ser uma certa elite cultural a operar num Portugal já Europeu, numa Europa que, pela primeira vez, começa a incluir a cultura na sua agenda de prioridades e se organiza numa série de redes, onde os encontros e a troca de ideias se fazem cada vez mais essenciais. [7]
É eventualmente também nestes terrenos que o Frágil, como espaço social informal que é (e não obstante aquele que virá a ser o seu peso na organização formal da sociedade Lisboeta dos Anos Oitenta) [8] se recortará, ainda que de outra forma. A uni-los, estará a presença lúdica e expressiva de um corpo que dança, que é exposto, e que, agindo, relacionando-se, considerando-se objeto de experimentação e de elocução, se oferece performativamente em si como discurso e matéria: seja em espectáculo tout court, como no caso do ACARTE (e lembro-me, por exemplo, de “A vitória dos sentidos sobre o sentido”, título de uma crítica de José Ribeiro da Fonte aos primeiros Encontros ACARTE, em 1987) ou, como no caso do Frágil, pelo gozo de uma “noite lisboeta” que acontece cada vez mais num ambiente cosmopolita de festa com pista de dança e copo na mão, do que a uma mesa de café, e onde a aparência das roupas ou das maneiras pode ditar a possível entrada no estabelecimento.

À porta do Frágil
André Lepecki que, como muitos dos entrevistados, aponta o Frágil nos anos 80 como um espaço contemporâneo do ACARTE, explicava-me em conversa que parte da aventura do Frágil consistiria em entrar e ser (ou não) barrado – coisa que não se passava no ACARTE, onde toda a gente podia entrar, fazendo-me atentar nos modos como estas distribuições de pertença não deixam de ser importantes numa altura em que se queria “pertencer” e, por pertencer, passar a “ser” (“Europeu”, “contemporâneo”, “moderno”, “pós-moderno”).
Sob este ponto de vista, “Ser Pós-moderno” sinalizaria sempre uma cristalização identitária (e é bem sabido como pós-modernismo e neoliberalismo se interrelacionam), onde uma idealizada Europa cosmopolita, agindo por exclusão, marcaria o passo e ditaria o tom. O que parece insuficiente para dar conta do tal entre de que falámos a início, não se adequando quase ao ACARTE, sobretudo nos seus primeiros anos, durante a Direcção da Dr.ª Madalena Perdigão, onde cultura “nacional” e “internacional”, “experimental” e “mainstream”, “amadora” e “profissional”, “alta” e “baixa” conviviam lado a lado, enquadradas pelos muros dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian.
Lepecki, que em Dancing Without The Colonial Mirror..., traça as «interligações entre a emergência simultânea da dança contemporânea e de um novo tipo de subjectividade em determinado contexto político, económico e social – o de um país a sair de um passado de isolamento, colonialismo e subdesenvolvimento, e a investir na criação de uma nova identidade com a qual encontrar um lugar numa idealizada “modernidade europeia”» (LEPECKI 2001) interpela-nos então a olhar para o que fica de fora, neste caso específico temporalmente (“um país a sair de um passado”), ao mesmo tempo que atentamos no que está dentro, colocando-os em relação. [9]

Anos Oitenta/ Anos Sessenta
E de facto, entre os chamados Anos Oitenta e os chamados Anos Sessenta muita coisa muda. Em Portugal ainda mais.
A expressão Anos Sessenta (Sixties) sinaliza aqui não uma década específica mas sim um conceito (JAMESON 1984) que, começando a meio dos Anos Cinquenta prolonga-se até ao final dos Anos Setenta, abarcando a contestação à Guerra na Argélia e do Vietname, a vaga de descolonizações, o Maio de 68 e o movimento Hippie. Refere um período marcado por uma intensa experimentação social, existencial e artística de pendor emancipatório. Em Portugal, sem querer tirar importância às contestações estudantis e a toda a experimentação artística que se dá em finais dos Anos Sessenta – por ex., no campo do teatro ou da performance art (mas haverá outros...) –, poderá porventura dizer-se que os Anos Sessenta enquanto época de massificação cultural são marcados pelo período a seguir à revolução de Abril acontecendo em grande parte nos ‘Anos Setenta’. Assim, eles teriam massivamente lugar com o fim da censura, a participação de rua, as ocupações, o regresso das colónias..., estando intrinsecamente ligados a uma intensa experimentação social, menos talvez que existencial, experimentação existencial essa que assim se daria em grande parte já nos Anos Oitenta (Eighties) num ambiente cultural radicalmente diferente, marcado já pelo fim de Abril e pela entrada para a União Europeia – hipótese teórica apontada por Luís Trindade (TRINDADE 2010) e Rui Bebiano (BEBIANO 2010), que um olhar sobre os Anos Oitenta em Portugal me leva a partilhar, e as entrevistas que fiz em torno do ACARTE parecem corroborar.
Haveria assim, para além de um curto circuito entre modernidade e pós modernidade, como refere Boaventura de Sousa Santos, uma espécie de disjunção de um período (os Sixties, tais como descritos por Jameson para o panorama Norte Americano) por dois períodos (os Sixties e os Eighties), com ambientes culturais opostos – coisa que explicaria algumas das tensões, contradições, paradoxos mas também potencialidades e linhas de fuga que os Anos Oitenta em Portugal parecem conter, nomeadamente quando olhados a partir do momento presente e da actual conjuntura Europeia.
Mas debrucemo-nos agora especificamente sobre a acção do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian durante este período. 




2.
 Fazer falta, Sentir falta, Estar em falta
O ACARTE
“Fazia falta no panorama cultural português um Serviço voltado para a cultura contemporânea e/ou para o tratamento moderno de temas intemporais, assim como um Centro de Educação pela Arte dedicado às crianças. Tornava-se necessário assegurar ao Centro de Arte Moderna (...) a possibilidade de ser, não apenas um Museu na acepção restrita do termo mas também um Centro de Cultura.” [10]
Assim explica Madalena Perdigão as razões para a criação do ACARTE, um Serviço, dependente directamente da Presidência da Fundação, que afirmava não adoptar “conceitos estreitos de nacionalismo estéril” mas sim “abrir-se à itinerância no país e no estrangeiro”, tendo por vocação o apoio ao um experimentalismo que passava por um “incentivo à colaboração entre artistas de diferentes áreas para a criação multidisciplinar”.
Entre 1984 e 1989 passaram pelo ACARTE nomes como:
- no teatro: O Bando, Fernanda Lapa, Jan Fabre, Jorge Silva Melo, Jorge Listopad, Filipe La Féria, Ricardo Pais, Giorgio Barberio Corsetti, Tadeus Kantor e muitos outros...
- na dança: Susanne Linke, Rui Horta, Olga Roriz, W.Vandekeybus, Elisa Worm, Anne Teresa de Keersmaeker, Karine Saporta, Pina Bausch, Joseph Nadj, Reinhild Hoffman, Margarida Bettencourt, Vera Mantero, Paula Massano, Clara Andermatt e muitos outros...
- na performance art Wolf Vostell, Fernando Aguiar, Marina Abramovic/Ulay, Ulrich Rosenbach, Silvestre Pestana, Carlos Gordilho ou Miguel Yeco,...
- na música: Constança Capdeville/Grupo Colecviva, Jorge Peixinho /Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, Carlos Zíngaro, Olga Pratz, Jorge Lima Barreto, Vítor Rua, Maurizio Kagel, Bow Gamelan, Pocket Opera, Derek Bailey/ Evan Parker, Touch Monkeys...    
E ainda:
Bandas de Música no Anfiteatro ao ar livre onde acorreram bandas do país inteiro, Concertos à Hora do Almoço, onde se estrearam jovens intérpretes, “Músicas do Mundo” (conceito pouco em voga na altura), actividades complementares às exposições do CAM, e, claro, o incontornável Jazz em Agosto, que ainda hoje perdura e que começou em iniciativa do Serviço ACARTE. O Serviço ACARTE, para além de manter aberto em permanência um Centro de Arte Infantil, organizou ainda conferências, cursos, workshops, um regular jornal falado de actualidade literária, bem como uma série de cursos de Cinema de Animação, produzindo espectáculos e eventos, e co-programando, a partir de 1987, iniciativas internacionais como os Encontros ACARTE – Novo Teatro Dança da Europa (com o Springdance Festival da Holanda, e o Inteatro Polveriggi, de Itália. Muitas das suas iniciativas eram temáticas, agrupando em torno de um assunto uma série multidisciplinar de eventos. E colocando frequentemente o foco no performativo e na presença, no encontro e no diálogo, quase sempre o corpo se constituiu enquanto eixo central deste Serviço. [11]  
Fazia falta, tornava-se necessário – diz-nos aquela que é uma figura central nas artes e na educação em Portugal sem que, porém, existam quase estudos sobre a sua acção.

Maria Madalena de Azeredo Perdigão
Combinando uma formação em música no Conservatório Nacional e em matemática na Universidade de Coimbra, Madalena Perdigão foi Directora do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1957-1974 onde foi responsável pela criação da Orquestra Gulbenkian (1962), do Coro Gulbenkian (1964), do Ballet Gulbenkian (1965), e pela organização de 13 Festivais Gulbenkian de Música. Grande impulsionadora da Educação pela Arte, foi Presidente da Comissão Orientadora da Reforma do Conservatório Nacional entre 1971-1974 no âmbito da reforma Veiga Simão e, entre 1978 e 1984, Presidente do Grupo de Trabalho para a Reestruturação do Ensino Artístico bem como Assessora do Ministro da Educação, regressando à Fundação Calouste Gulbenkian em 1984 para a criação do ACARTE de que viria a ser Directora até ao final da sua vida, em 1989.
A criação deste Serviço corresponde assim à parte final de um longo percurso de criação de estruturas nas quais o conhecimento, a prática, e a fruição das artes são entendidos enquanto essenciais na formação humana, ou seja – e não obstante os tempos sejam já outros –, é por existir uma Orquestra, um Ballet e um coro Gulbenkian (e em complementaridade com estes), numa época em que Portugal estava prestes a ter uma Secretaria de Estado da Cultura separada do Ministério da Educação (posteriormente Ministério da Cultura), que a sua criação deve ser entendida, enquadrando-a na acção maior da Fundação Calouste Gulbenkian, em tempos já de democracia.
Não podendo abordar aqui em detalhe o âmbito de actuação do Serviço área a área, propomos que nos detenhamos um pouco na noção da “falta” tal como esta foi teorizada por Roberto Esposito em Communitas – The Origin and Destiny of The Community para a tentarmos aplicar ao “fazer falta” de que nos fala a fundadora do ACARTE para depois, em conversa, o relacionarmos com Portugal dos Anos Oitenta.

Fazer Falta
Interrogando-se sobre qual seria «a “coisa” que os membros de uma comunidade teriam em comum», Roberto Esposito (ESPOSITO 1998), vai à etimologia de communis que significaria «aquele que partilha um ofício, uma tarefa, uma carga» para daí depreender que communitas seria «a totalidade das pessoas unida não por uma “propriedade” mas precisamente por uma obrigação ou por uma dívida, não por uma adição, mas por uma subtracção: por uma falta, um limite que é configurado como um ónus, ou mesmo por uma modalidade defectiva de quem é “afectado”, por confronto de quem é isento».
Esposito localiza aqui, no contraste entre communitas e immunitas, a tradicional oposição associada com a alternativa entre público e privado. Se communis é o que tem de desempenhar uma tarefa – ou mesmo outorgar uma graça – imune seria o que está dispensado de o fazer, permanecendo assim ingrato. Mas o caminho pela etimologia de communitas «mostra que o munus que a communitas partilha não é uma propriedade ou uma posse». Não seria um ter, mas em contrapartida, «uma dívida, um depósito, uma prenda que tem de ser dada, estabelecendo uma falta. Os sujeitos de uma comunidade estão unidos por uma “obrigação” no sentido em que se diz “eu devo-te uma coisa”, mas não [no sentido em que se diz] “tu deves-me uma coisa”». O que faria com que o comum fosse não «caracterizado pelo que é próprio mas pelo que é impróprio, ou, mais drasticamente ainda, pelo outro; por um esvaziar, seja ele parcial ou completo, da propriedade no seu negativo; removendo o que é especificamente propriedade própria, forçando-o a sair de si, a alterar-se a si».
O que nesta proposta nos interessa para pensar o ACARTE é o questionamento radical de uma noção identitária. Ao localizar a origem do comum não numa propriedade mas numa falta, numa lacuna, Esposito permite-nos pensar produtivamente e em contínuo a comunidade: uma comunidade que não é um dado adquirido, cuja identidade seria necessário estar sempre a afirmar em competição com outras identidades.

Uma ‘Curadoria da Falta’
Ao pautar a sua programação por aquilo a que gostaríamos de chamar uma “curadoria da falta” Madalena Perdigão (e talvez mais ninguém senão ela o pudesse fazer) faz do ACARTE nos anos oitenta um espaço de encontro que, mais do que estar ocupado com a sua identidade, se abre ao que “faz falta”, sendo marcado por esta abertura – e marcando com ela uma época. Talvez por isso a sua acção nestes anos de transformação histórica abrupta – a um tempo só moderna e pós-moderna, clássica e experimental, rural e urbana, para as elites e para as massas, para os adultos e para as crianças – seja sempre tão difícil de definir nos moldes em que teve lugar. Com o seu enfoque no corpo – ao mostrar corpos extremos, pelos quais toda uma tradição da dança pós-moderna americana e da performance art tinha já passado, tradição esta forjada nos tais Anos Sessenta de que Jameson nos fala (Jan Fabre, Anne Teresa de Keersmaeker, Wim Vandekeybus, La Fura dels Baus); ou corpos clássicos, como o de obras teatrais nunca anteriormente representadas no país (Hamlet, Ciclo Retorno à Tragédia); ou corpos vindos de outras culturas e vistos como culturalmente relevantes, cosmopolitas mesmo (Ka-ze-no-Ko, Ciclo Músicas do Mundo, Jornadas de Artes e Letras dos PALOPS); ou pura e simplesmente corpos com vontade de experimentar formas estéticas (Constança Capdeville/Colecviva, Ciclo de música improvisada); ou apenas corpos com uma predisposição geral para se cultivarem ou/e – sobretudo – por mostrar e colocar em diálogo todos estes corpos juntos – a sua acção irá, porventura, de encontro à disjunção que atrás mencionámos. O que a torna, a um tempo só, tão particular e tão explosiva. É que abrir-se ao que falta é, ainda assim, muito diferente de “superar um atraso” ou de “acertar o passo”. O que faz com que este lugar se constitua como um dos lugares dos anos 80, com o tal curto-circuito entre modernidade e pós modernidade de que nos fala Boaventura de Sousa Santos, razão pela qual estamos hoje aqui.
A faltar, o conhecimento aprofundado do que foi o ACARTE pode, quem sabe, fazer-nos sentir menos em falta quando vemos o actual momento em que estamos, 30 anos passados sobre a inauguração deste Centro. E, quem sabe, pode mesmo este Centro de Arte Moderna voltar a ter um peso central nisso.
__
Referências
1. Ver a este respeito por exemplo Luís Trindade em Os 3 D’s da Derrota Revolucionária: despolitização, desideologização, desmobilização, disponível aqui ou Pano Cru – a inscrição da memoria do passado revolucionário, disponível aqui.
2. A respeito desta ‘tentação nostálgica’ em que pode rapidamente incorrer um olhar sobre “estas e outras (pós) modernices de que Lisboa já sente falta,” como se podia ler no programa do evento, veja-se a segunda parte do texto de António Araújo A Cultura de Direita em Portugal, publicado cerca de um ano depois da intervenção que aqui se publica.
3. Para usar uma terminologia Foucauldiana. Ver Foucault A vontade de saber (1976).
4. Em Pela Mão de Alice – o social e o político na Pós Modernidade, Boaventura de Sousa Santos (1994), o autor sustenta que o facto de a sociedade portuguesa ser semiperiférica, acarretaria consigo uma “dupla exigência: (1) na formulação de alguns dos objectivos de desenvolvimento deve proceder como se o projecto da modernidade não estivesse ainda cumprido ou não tivesse sequer sido posto em causa; (2) na concretização desses objectivos deve partir do princípio (para ela de algum modo mais vital do que para as sociedades centrais) de que o projecto da modernidade está historicamente cumprido e que não há a esperar o que só um novo paradigma pode tornar possível.” (p.84) de onde deduz que: “a sociedade portuguesa tem ainda de cumprir algumas das promessas da modernidade, mas tem de as cumprir à revelia da teoria da modernização. Desta posição decorrem duas implicações principais. A primeira é que as promessas da modernidade a cumprir têm de ser cumpridas em curto-circuito com as promessas emergentes da pós-modernidade. Assim, como atrás referi, as duas importantes promessas da modernidade ainda a cumprir são, por um lado, a resolução dos problemas da distribuição (ou seja, das desigualdades, que deixam largos estratos da população aquém da possibilidade de uma vida decente ou sequer da sobrevivência); por outro lado, a democratização política do sistema político democrático (ou seja, a incorporação tanto quanto autónoma das classes populares no sistema político, o que implica a erradicação do clientelismo, do personalismo, da corrupção e, em geral, da apropriação privatística da actuação do Estado por parte de grupos sociais ou até por parte dos funcionários do Estado). Qualquer dessas promessas deve, no entanto, ser cumprida em conjunção com o cumprimento, igualmente veemente, das promessas da pós-modernidade. Deste modo, a promessa da distribuição deve ser cumprida em conjunção com a promessa da qualidade das formas de vida (da ecologia à paz, da solidariedade internacional à igualdade sexual) e a promessa da democratização política do sistema político deve ser cumprida em conjunção com a ampliação radical do conceito de política, e, consequentemente, com as promessas de democratização radical da vida pessoal e colectiva, do alargamento incessante dos campos de emancipação, as quais podem começar a ser cumpridas precisamente na articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa. Ora, esta conjunção é interdita pelo princípio da modernização, pois, nos seus termos, enquanto não forem resolvidos os problemas da modernidade não faz sentido sequer pôr os problemas da pós-modernidade. Este princípio, que é hoje hegemónico entre nós e que é adoptado tanto pelo Estado como pelos partidos de direita e de esquerda, só poderá conduzir ao bloqueamento da sociedade portuguesa numa semiperiferia crescentemente estúpida.
A segunda implicação do cumprimento da modernidade à revelia da modernização é que é preciso combater a ideia de que tudo o que na sociedade portuguesa é diferente das sociedades centrais é sinal de atraso e deve ser erradicado no processo de desenvolvimento. A contabilidade profunda da sociedade portuguesa está ainda por fazer.
5. Ver a este respeito a proposta de Luís Trindade em Os Excessos de Abril", in REVISTA História, n.º 65, Abril de 2004.
6. De acordo com Gilles Deleuze um devir seria sempre um devir minoritário. Ver a esse respeito Mil Platôs, vol. 4. pág.88.
7. Ver a este respeito o website Europeana: “In 1973, the first significant steps towards defining the cultural basis for a European Union were made when the European Economic Community (EEC) signed the ‘Declaration on the European Identity’. This step was the first attempt to create a European awareness. The declaration led to the introduction of several measures to improve the visibility of Europe in the daily lives of the European citizens. A European flag was created, Beethoven’s ‘Ode to Joy’ was chosen as the European anthem and a standardised European passport created. In 1988, a new policy was introduced which focused specifically on using cultural heritage to demonstrate our common history, involving Europe’s architectural and artistic heritage. The EEC sponsored various arts-related craft and restoration projects and helped preserve a number of monuments that played a big role in the European history, such as the Acropolis, the Parthenon and Mount Athos.” In http://penguincompaniontoeu.com/additional_entries/declaration-on-european-identity/, consultado a 16/1/13.
8. A esse respeito João Fiadeiro contou-me anedoticamente que assinara o seu contrato com a Europália neste local. Anedótico ou não a verdade é que muitos são os testemunhos sobre a importância formal do Frágil na sociedade Lisboeta da época. Ver a este respeito a imprensa aquando dos 30 anos desta discoteca ou o recente projecto de compilação de fotos da noite nesta discoteca, levado a cabo por Catarina Portas e Tiago Manaia.
9. O ensaio de António Araújo A Cultura de Direita em Portugal, publicado cerca de um ano depois da intervenção que aqui se publica, reúne um conjunto notável de informações sobre o ‘dentro’ ao qual aqui se sugere a necessidade de pensar as continuidades com o que (e quem) ficaria então de fora.
10. Brochura bilíngue ACARTE 5 anos.
11. É desta altura a emergência de termos como “Artes do Corpo”, termo cunhado por António Pinto Ribeiro, que chegou mesmo a trabalhar neste Serviço (Ribeiro 1997).
__
Bibliografia
BARRETO, António (org.) 2006, Fundação Calouste Gulbenkian, Cinquenta Anos 1956-2006, LISBOA, FCG.
BEBIANO, RUI «’Povo pop’, mudança cultural e dissensão», in Como Se Faz Um Povo. Ensaios em História Contemporânea de Portugal, coordenação de José Neves, Lisboa, Tinta-da-China, 2010, pp. 441-454.
Dionísio, Eduarda (1993): Títulos, acções, obrigações – sobre a cultura em Portugal 1984-1994, Edições Salamandra, Lisboa.
FOUCAULT, Michel (1969): Arqueologia do Saber, Almedina 2006, Lisboa
FOUCAULT, Michel (1976), A vontade de saber , Relógio de Água, 1994, Lisboa.
Gilles Deleuze Félix Guattari (1980) MIL PLATÔS. Capitalismo e Esquizofrenia. Vol. 4. Coordenação da tradução Ana Lúcia de Oliveira. 1a Edição- 1997. EDITORA 34,  São Paulo.
Grande, Nuno (2009): Arquitecturas da Cultura: Política, Debate, Espaço, Dissertação de Doutoramento em Arquitectura apresentada ao DARQ/FCTUC, Porto.
JAMESON, FREDERIC (1984): Periodizing the Sixties in Social Text, No. 9/10, Spring - Summer, 1984 The 60's without Apology, New York.
PERNES, Fernando (2001), Panorama da Cultura Portuguesa Sociedade Porto 2001/Fundação de Serralves, Porto.
RIBEIRO, ANTÓNIO PINTO (2005): Fundação Calouste Gulbenkian, Cinquenta Anos Vol.I - Arte, pág. 371, FCG, Lisboa.
Fontes impressas
FCG (1989): Brochura Serviço Acarte 5 anos de actividades, Arquivo ACARTE.
Electrónicas
ARAÚJO, ANTÓNIO (2014): A Cultura de Direita em Portugal in http://malomil.blogspot.pt/2014/01/a-direita-portuguesa-contemporanea.html, consultado a 21-05-2014.
TRINDADE, LUÍS (2004): Excessos de Abril in http://barnabe.weblog.com.pt/arquivo/098036.html, consultado a 3-04-2011.
Site Oficial da Fundação Calouste Gulbenkian, http://www.gulbenkian.pt/historia consultado em 30/10/11.
__
Imagens
1.Imagem gráfica do colóquio (disponível no site do CAM). Imagens dos cartazes do ACARTE disponíveis na net no arquivo digital da Biblioteca Nacional.
2 e 3. Fotografias do Centro de Arte Moderna disponíveis online no site do CAM.
4. Interface digital cronológico ACARTE 1984 - 1989, projecto de Ana Bigotte Vieira com design gráfico Ana Teresa Ascensão e programação Isabel Brison.
__
Ana Bigotte Vieira
Doutoranda em Estudos Artísticos, Visiting Scholar na NYU-TISCH entre 2009 e 2012. Estudou História Moderna e Contemporânea no ISCTE. Pós-graduação em Ciências da Comunicação: “Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias” (UNL-FCSH). Dramaturgista e investigadora, trabalhou com Gonçalo Amorim, Miguel Castro Caldas e Bruno Bravo, Manuel Henriques, Raquel Castro e Mariana Tengner Barros, Traduziu Mark Ravenhill, Annibale Ruccello, Spiro Scimone, Pirandello e Giorgio Agamben. Integra o grupo de Teoria e Estética das Artes Performativas do CET (FLUL). Em 2010, recebeu o Dwight Conquergood registration Award na PSi conference #17, Utrecht. É co-curadora de Baldio.