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Ser Pós Moderno
entre o Frágil e o Acarte
Ana Bigotte Vieira
“A análise do arquivo comporta, portanto, uma região privilegiada: ao mesmo
tempo próxima de nós, mas diferente da nossa actualidade, é o contorno do tempo
que rodeia o nosso presente, que se lhe sobrepõe e delimita a nossa alteridade;
é o que, fora de nós, nos delimita. A descrição do arquivo desdobra as suas
possibilidades (e o domínio das suas possibilidades) a partir dos discursos que
justamente acabam de ser nossos (...). Neste sentido vale para nós como
diagnóstico. (...) O diagnóstico assim entendido não estabelece a comprovação
da nossa identidade a partir do jogo das distinções. Estabelece que somos
diferença, que a nossa razão é a diferença dos discursos, a nossa história a
diferença dos tempos, o nosso eu a diferença das máscaras. Que a diferença, longe
de ser origem esquecida e recoberta, é essa dispersão que somos e fazemos.”
Michel Foucault, Arqueologia do Saber
Em Janeiro de 2013 teve
lugar no Centro de Arte Moderna a conferência O CAM na Cultura Portuguesa dos Anos 80, coordenada pelo Arquitecto Nuno Grande. O texto que se
segue foi escrito para esta ocasião, evento invulgar tanto no que diz respeito
à escolha do objecto como do seu tratamento. De facto, não apenas a reflexão
histórica sobre aquilo a que se chama “os Anos 80” está em grande parte por
fazer, como é pouco comum uma abordagem onde cultura, arte, sociedade e formas
de vida – vistas como construções humanas, históricas, e não como dados
naturais – são entendidas como inextrincáveis e passíveis de se darem a uma
reflexão.
Ser Pós Moderno Entre o
Frágil e o Acarte foi redigido para o
painel com o mesmo nome e moderação de Isabel Carlos, no qual participaram Luís
Serpa, Manuel Graça Dias, Jorge Figueira e Ana Bigotte Vieira.
Escrito para ser lido na Sala
Polivalente do Centro de Arte Moderna em 2014, este texto, fruto de uma investigação
de Doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa à
época ainda em curso, procura interrogar este espaço na sua espessura histórica
e função epocal. Dividido em duas partes, cada uma delas corresponde a uma
ideia-chave. Na primeira, tratar-se-ia da ‘disjunção Anos Sessenta/Anos
Oitenta’ proposta, entre outros, pelo historiador Luís Trindade [1]; já na segunda, para
dar conta da acção de Madalena Perdigão, fundadora e primeira Directora do
Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian, avançar-se-ia a noção de ‘Curadoria
da Falta’.
Situado no agora e a
pensar numa abertura de possibilidades para amanhã, trata-se de uma análise
esboçada por alguém que nasceu em 1980 a tentar um diálogo com quem viveu essa
época – não para a reconstruir mas, como diz Michel Foucault na epígrafe acima,
para compreender o que no que somos hoje
há de diferente do que deixámos de ser
– e com isso contribuir para um possível diagnóstico daquilo que poderemos devir. É que na melhor das hipóteses,
estando a História desta época em grande parte ainda por fazer, eventos como
aquele, caso consigam resistir a uma tentação nostálgica [2], contribuem para a sua
construção.
1.
“SER PÓS-MODERNO ENTRE O
FRÁGIL E O ACARTE.”
Entre
“Ser Pós-Moderno Entre o Frágil e o
Acarte” : a proposta identitária que a
afirmação que dá nome a este painel alberga "Ser pós moderno" coloca dois lugares da cidade de Lisboa em
relação e fá-lo por via de uma circulação, de um entre. Os lugares são a discoteca Frágil, no Bairro Alto, aberta por Manuel Reis em 1982 e o Serviço
ACARTE, Serviço de Animação, Criação
Artística e Educação pela Arte da
Fundação Calouste Gulbenkian fundado por Maria Madalena de Azeredo Perdigão
em 1984, um ano depois do Centro de Arte Moderna abrir, e nele sediado.
Como pano de fundo está uma época:
os anos 80; um país: Portugal; e uma cidade: Lisboa. A identidade implícita na
expressão Ser pós-moderno e a sua
relação com a circulação entre estes dois lugares coloca-os em recorte, como se
fosse pela circulação entre eles que esse
Ser pós-moderno se produzisse. É importante notar que, na produção desse ser(-se) pós moderno (de quem? do país?
da cidade? das pessoas?), estes dois lugares não serão os únicos nem serão
estanques, antes pelo contrário – um recorte é sempre recortado de algo maior,
algo onde se insere e com que se relaciona, nem que seja por meio de uma
qualquer excepcionalidade (caso, por ex. da Fundação Calouste Gulbenkian,
muitas vezes equiparada a um “oásis”, ou do Centro de Arte Moderna, o primeiro
Museu de Arte Moderna no país), ou de uma aparente negação (caso, por ex., do
Frágil e da “noite lisboeta”, sítio de extravagâncias).
Como refere Nuno Grande (GRANDE
2009), a década de 80 em Portugal, aparece como que cortada ao meio: por um
lado, o pedido de auxílio financeiro ao FMI em 1983 e um crescente afastamento
dos resquícios do pós-revolução; e, por outro, a eufórica adesão à União
Europeia em 1985-1986 com as pressões de construção de uma “portugalidade”
capaz de figurar numa mitificada Europa.
Mais do que procurarmos
aqui uma definição estável de que ser pós-moderno possa ser esse que se é ou se quer ser, ou mesmo uma caracterização sociológica dos seus sujeitos
(esses, que seriam pós-modernos),
gostaríamos de tentar olhar para estes lugares, debruçando-nos em particular
sobre o segundo, o ACARTE, enquanto espaços activos numa produção de processos
de subjectivação em curso [3], reparando que parece haver características que os
unem.
Complexo Exibicionário
Tony Bennet em The Birth of the Museum (BENNET 1995) – partindo de uma grelha
foucauldiana onde justapõe a emergência simultânea, no século XIX, do museu e
de espaços como a escola, as bibliotecas, as galerias, as arcadas, os grandes
armazéns e as exposições internacionais – deu o nome de “complexo
exibicionário” a um conjunto de instituições e de lugares que tinham por
objectivo a auto-formação dos cidadãos dos recém laicizados estados. De acordo
com Bennet, é justamente pela modelação dos modos como se circula entre e se
age (n)estes lugares que uma série de rotinas e comportamentos sociais se
constituem. Capaz de iluminar a relação entre espaços aparentemente tão opostos
como os grandes armazéns, as feiras populares e as bibliotecas, a noção de
“complexo exibicionário”, ao complicar as relações entre “alta” e “baixa”
cultura, cultura “nacional” e cultura “internacional”, cultura “urbana” e
cultura “rural” parece-nos particularmente útil para abordar o tal entre de que falámos a início.
Numa transposição,
talvez precipitada (sem dúvida caricatural) desta noção para o contexto
português dos anos 80 outros prováveis lugares, para além do Frágil e do
ACARTE, apareceriam como possível parte integrante deste “complexo
exibicionário”: espaços de consumo como o Amoreiras ou os grandes hipermercados,
fenómenos como a emergência do chamado Rock Português ou a Moda Lisboa, o
crescimento dos subúrbios, a massificação das férias ou um pouco mais tarde, o
despontar de um certo tipo de escrita cultural, entre outros.
Um processo coreopolítico
É que Portugal entra para a
Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, e os termos “Europa”, “Nação”,
“Moderno” – e, em corolário, mesmo que em “curto-circuito” [4], como defende
Boaventura de Sousa Santos (SANTOS 1984), ‘Pós Moderno’ – constituem nesta
altura, e antes de mais, um apelo, o omnipresente slogan de um processo coreopolítico
em curso, como sustenta André Lepecki em Dancing
Without the Colonial Mirror: Modernity, Dance and nation in the works of Vera
Mantero and Francisco Camacho (1985-1997). Um processo cujo passo,
necessariamente demasiado veloz, acarreta consigo um esforço generalizado de
amnésia: amnésia de um território entendido enquanto império ultramarino, da
guerra colonial...do passado recente de Abril tanto quanto dos 48 anos
de ditadura [5] ...implicando, como qualquer transformação histórica
abrupta, uma reconfiguração da experiência da corporalidade dos sujeitos, o
que, longe de ser um processo pacífico é um processo atravessado e acompanhado
por tensões e contradições várias, possíveis cristalizações identitárias e os seus
devires minoritários. [6]
A reconfiguração da experiência da corporalidade
É neste terreno, o da reconfiguração
desta experiência da corporalidade, que, como veremos, o ACARTE com os seus
desfiles de corpos em performance (corpos nus, urbanos, cosmopolitas,
multiculturais, exageradamente rápidos ou lentos); com os magotes de gente que
acorria às suas iniciativas povoando os seus jardins, com os seus ciclos de
eventos onde a participação e a discussão se tornam prática comum e a ida ao
museu um hábito – será pródigo. O que se dá em simultâneo com a emergência
daquela que viria a ser uma certa elite cultural a operar num Portugal já
Europeu, numa Europa que, pela primeira vez, começa a incluir a cultura na sua
agenda de prioridades e se organiza numa série de redes, onde os encontros e a
troca de ideias se fazem cada vez mais essenciais. [7]
É eventualmente também
nestes terrenos que o Frágil, como espaço social informal que é (e não obstante
aquele que virá a ser o seu peso na organização formal da sociedade Lisboeta
dos Anos Oitenta) [8] se recortará, ainda que de outra forma. A uni-los, estará
a presença lúdica e expressiva de um corpo que dança, que é exposto, e que,
agindo, relacionando-se, considerando-se objeto de experimentação e de
elocução, se oferece performativamente em
si como discurso e matéria: seja em espectáculo tout court, como no caso do ACARTE (e lembro-me, por exemplo, de “A
vitória dos sentidos sobre o sentido”, título de uma crítica de José Ribeiro da
Fonte aos primeiros Encontros ACARTE, em 1987) ou, como no caso do Frágil, pelo
gozo de uma “noite lisboeta” que acontece cada vez mais num ambiente
cosmopolita de festa com pista de dança e copo na mão, do que a uma mesa de
café, e onde a aparência das roupas ou das maneiras pode ditar a possível
entrada no estabelecimento.
À porta do Frágil
André Lepecki que, como muitos dos
entrevistados, aponta o Frágil nos anos 80 como um espaço contemporâneo do
ACARTE, explicava-me em conversa que parte da aventura do Frágil consistiria em
entrar e ser (ou não) barrado – coisa que não se passava no ACARTE, onde toda a
gente podia entrar, fazendo-me atentar nos modos como estas distribuições de
pertença não deixam de ser importantes numa altura em que se queria “pertencer”
e, por pertencer, passar a “ser” (“Europeu”, “contemporâneo”, “moderno”,
“pós-moderno”).
Sob este ponto de vista, “Ser
Pós-moderno” sinalizaria sempre uma cristalização identitária (e é bem sabido
como pós-modernismo e neoliberalismo se interrelacionam), onde uma idealizada
Europa cosmopolita, agindo por exclusão, marcaria o passo e ditaria o tom. O
que parece insuficiente para dar conta do tal entre de que falámos a início, não se adequando quase ao ACARTE, sobretudo nos seus
primeiros anos, durante a Direcção da Dr.ª Madalena Perdigão, onde cultura
“nacional” e “internacional”, “experimental” e “mainstream”, “amadora” e “profissional”, “alta” e “baixa” conviviam
lado a lado, enquadradas pelos muros dos jardins da Fundação Calouste
Gulbenkian.
Lepecki, que em Dancing Without The Colonial Mirror...,
traça as «interligações entre a emergência simultânea da dança contemporânea e
de um novo tipo de subjectividade em determinado contexto político, económico e
social – o de um país a sair de um passado de isolamento, colonialismo e
subdesenvolvimento, e a investir na criação de uma nova identidade com a qual
encontrar um lugar numa idealizada “modernidade europeia”» (LEPECKI 2001)
interpela-nos então a olhar para o que fica de fora, neste caso específico temporalmente (“um país a sair de um
passado”), ao mesmo tempo que atentamos no que está dentro, colocando-os em
relação. [9]
Anos Oitenta/ Anos Sessenta
E de facto, entre os chamados Anos
Oitenta e os chamados Anos Sessenta muita coisa muda. Em Portugal ainda mais.
A expressão Anos Sessenta (Sixties) sinaliza aqui não uma década
específica mas sim um conceito (JAMESON 1984) que, começando a meio dos Anos
Cinquenta prolonga-se até ao final dos Anos Setenta, abarcando a contestação à
Guerra na Argélia e do Vietname, a vaga de descolonizações, o Maio de 68 e o
movimento Hippie. Refere um período
marcado por uma intensa experimentação social, existencial e artística de
pendor emancipatório. Em Portugal, sem querer tirar importância às contestações
estudantis e a toda a experimentação artística que se dá em finais dos Anos
Sessenta – por ex., no campo do teatro ou da performance art (mas haverá outros...) –, poderá porventura
dizer-se que os Anos Sessenta enquanto época de massificação cultural são marcados pelo período a seguir à
revolução de Abril acontecendo em grande parte nos ‘Anos Setenta’. Assim, eles
teriam massivamente lugar com o fim da censura, a participação de rua, as
ocupações, o regresso das colónias..., estando intrinsecamente ligados a uma
intensa experimentação social, menos talvez que existencial,
experimentação existencial essa que assim se daria em grande parte já nos Anos
Oitenta (Eighties) num ambiente cultural radicalmente diferente, marcado
já pelo fim de Abril e pela entrada para a União Europeia – hipótese teórica
apontada por Luís Trindade (TRINDADE 2010) e Rui Bebiano (BEBIANO 2010), que um
olhar sobre os Anos Oitenta em Portugal me leva a partilhar, e as entrevistas
que fiz em torno do ACARTE parecem corroborar.
Haveria assim, para além de um curto
circuito entre modernidade e pós modernidade, como refere Boaventura de Sousa
Santos, uma espécie de disjunção de um período (os Sixties, tais como descritos por Jameson para o panorama Norte
Americano) por dois períodos (os Sixties
e os Eighties), com ambientes
culturais opostos – coisa que explicaria algumas das tensões, contradições, paradoxos
mas também potencialidades e linhas de fuga que os Anos Oitenta em Portugal
parecem conter, nomeadamente quando olhados a partir do momento presente e da
actual conjuntura Europeia.
Mas debrucemo-nos agora
especificamente sobre a acção do Serviço ACARTE da Fundação Calouste Gulbenkian
durante este período.
2.
Fazer
falta, Sentir falta, Estar em falta
O ACARTE
“Fazia falta no panorama cultural português um Serviço
voltado para a cultura contemporânea e/ou para o tratamento moderno de temas
intemporais, assim como um Centro de Educação pela Arte dedicado às crianças.
Tornava-se necessário assegurar ao Centro de Arte Moderna (...) a possibilidade
de ser, não apenas um Museu na acepção restrita do termo mas também um Centro
de Cultura.” [10]
Assim explica Madalena Perdigão as
razões para a criação do ACARTE, um Serviço, dependente directamente da
Presidência da Fundação, que afirmava não adoptar “conceitos estreitos de
nacionalismo estéril” mas sim “abrir-se à itinerância no país e no
estrangeiro”, tendo por vocação o apoio ao um experimentalismo que passava por
um “incentivo à colaboração entre artistas de diferentes áreas para a criação
multidisciplinar”.
Entre 1984 e 1989 passaram pelo
ACARTE nomes como:
- no teatro: O Bando, Fernanda Lapa,
Jan Fabre, Jorge Silva Melo, Jorge Listopad, Filipe La Féria, Ricardo Pais,
Giorgio Barberio Corsetti, Tadeus Kantor e muitos outros...
- na dança: Susanne Linke, Rui
Horta, Olga Roriz, W.Vandekeybus, Elisa Worm, Anne Teresa de Keersmaeker,
Karine Saporta, Pina Bausch, Joseph Nadj, Reinhild Hoffman, Margarida
Bettencourt, Vera Mantero, Paula Massano, Clara Andermatt e muitos outros...
- na performance art Wolf Vostell, Fernando Aguiar, Marina
Abramovic/Ulay, Ulrich Rosenbach, Silvestre Pestana, Carlos Gordilho ou Miguel
Yeco,...
- na música: Constança
Capdeville/Grupo Colecviva, Jorge Peixinho /Grupo de Música Contemporânea de
Lisboa, Carlos Zíngaro, Olga Pratz, Jorge Lima Barreto, Vítor Rua, Maurizio
Kagel, Bow Gamelan, Pocket Opera, Derek Bailey/ Evan Parker, Touch Monkeys...
E ainda:
Bandas de Música no Anfiteatro ao ar
livre onde acorreram bandas do país inteiro, Concertos à Hora do Almoço, onde
se estrearam jovens intérpretes, “Músicas do Mundo” (conceito pouco em voga na
altura), actividades complementares às exposições do CAM, e, claro, o
incontornável Jazz em Agosto, que ainda hoje perdura e que começou em
iniciativa do Serviço ACARTE. O Serviço ACARTE, para além de manter aberto em
permanência um Centro de Arte Infantil, organizou ainda conferências, cursos,
workshops, um regular jornal falado de actualidade literária, bem como uma
série de cursos de Cinema de Animação, produzindo espectáculos e eventos, e
co-programando, a partir de 1987, iniciativas internacionais como os Encontros
ACARTE – Novo Teatro Dança da Europa (com o Springdance Festival da Holanda, e
o Inteatro Polveriggi, de Itália. Muitas das suas iniciativas eram temáticas,
agrupando em torno de um assunto uma série multidisciplinar de eventos. E
colocando frequentemente o foco no performativo e na presença, no encontro e no
diálogo, quase sempre o corpo se constituiu enquanto eixo central deste Serviço.
[11]
Fazia falta, tornava-se necessário – diz-nos aquela que é uma figura central nas artes
e na educação em Portugal sem que, porém, existam quase estudos sobre a sua
acção.
Maria Madalena de
Azeredo Perdigão
Combinando
uma formação em música no Conservatório Nacional e em matemática na
Universidade de Coimbra, Madalena Perdigão foi Directora do Serviço de Música
da Fundação Calouste Gulbenkian entre 1957-1974 onde foi responsável pela
criação da Orquestra Gulbenkian (1962), do Coro Gulbenkian (1964), do Ballet
Gulbenkian (1965), e pela organização de 13 Festivais Gulbenkian de Música.
Grande impulsionadora da Educação pela Arte, foi Presidente da Comissão
Orientadora da Reforma do Conservatório Nacional entre 1971-1974 no âmbito da
reforma Veiga Simão e, entre 1978 e 1984, Presidente do Grupo de Trabalho para
a Reestruturação do Ensino Artístico bem como Assessora do Ministro da
Educação, regressando à Fundação Calouste Gulbenkian em 1984 para a criação do
ACARTE de que viria a ser Directora até ao final da sua vida, em 1989.
A
criação deste Serviço corresponde assim à parte final de um longo percurso de criação
de estruturas nas quais o conhecimento, a prática, e a fruição das artes são
entendidos enquanto essenciais na formação humana, ou seja – e não obstante os
tempos sejam já outros –, é por já
existir uma Orquestra, um Ballet e um coro Gulbenkian (e em complementaridade
com estes), numa época em que Portugal estava prestes a ter uma Secretaria de
Estado da Cultura separada do Ministério da Educação (posteriormente Ministério
da Cultura), que a sua criação deve ser entendida, enquadrando-a na acção maior
da Fundação Calouste Gulbenkian, em tempos já de democracia.
Não podendo abordar aqui em detalhe o âmbito de actuação do Serviço área a
área, propomos que nos detenhamos um pouco na noção da “falta” tal como esta
foi teorizada por Roberto Esposito em Communitas
– The Origin and Destiny of The Community para a tentarmos aplicar ao
“fazer falta” de que nos fala a fundadora do ACARTE para depois, em conversa, o
relacionarmos com Portugal dos Anos Oitenta.
Fazer Falta
Interrogando-se sobre qual seria «a “coisa” que os membros de uma
comunidade teriam em comum», Roberto Esposito (ESPOSITO 1998), vai à etimologia de communis que significaria «aquele que partilha um ofício, uma
tarefa, uma carga» para daí depreender que communitas seria
«a totalidade das pessoas unida não
por uma “propriedade” mas precisamente por uma obrigação ou por uma dívida, não
por uma adição, mas por uma subtracção: por uma falta, um limite que é
configurado como um ónus, ou mesmo por uma modalidade defectiva de quem é
“afectado”, por confronto de quem é isento».
Esposito localiza aqui, no contraste entre communitas e immunitas, a tradicional oposição associada com a alternativa entre
público e privado. Se communis
é o que tem de desempenhar uma tarefa – ou mesmo outorgar uma graça
– imune seria o que está dispensado de o fazer, permanecendo assim ingrato. Mas o caminho
pela etimologia de communitas «mostra que o munus que a communitas
partilha não é uma propriedade ou uma posse». Não seria um ter, mas em contrapartida, «uma
dívida, um depósito, uma prenda que tem de ser dada, estabelecendo uma falta.
Os sujeitos de uma comunidade estão unidos por uma “obrigação” no sentido em
que se diz “eu devo-te uma coisa”, mas não [no sentido em que se diz] “tu
deves-me uma coisa”». O que faria com que o comum fosse não «caracterizado
pelo que é próprio mas pelo que é impróprio, ou, mais drasticamente ainda, pelo
outro; por um esvaziar, seja ele parcial ou completo, da propriedade no seu
negativo; removendo o que é especificamente propriedade própria, forçando-o a
sair de si, a alterar-se a si».
O que nesta proposta nos
interessa para pensar o ACARTE é o questionamento radical de uma noção
identitária. Ao localizar a origem do comum não numa propriedade mas numa falta, numa lacuna, Esposito permite-nos
pensar produtivamente e em contínuo a comunidade: uma comunidade que não é um
dado adquirido, cuja identidade seria necessário estar sempre a afirmar em
competição com outras identidades.
Uma ‘Curadoria da Falta’
Ao pautar a sua programação por aquilo a que gostaríamos
de chamar uma “curadoria da falta” Madalena Perdigão (e talvez mais ninguém
senão ela o pudesse fazer) faz do ACARTE nos anos oitenta um espaço de encontro
que, mais do que estar ocupado com a sua identidade, se abre ao que “faz
falta”, sendo marcado por esta abertura – e marcando com ela uma época. Talvez
por isso a sua acção nestes anos de transformação histórica abrupta – a um
tempo só moderna e pós-moderna, clássica e experimental, rural e urbana, para
as elites e para as massas, para os adultos e para as crianças – seja sempre
tão difícil de definir nos moldes em que teve lugar. Com o seu enfoque no corpo
– ao mostrar corpos extremos, pelos quais toda uma tradição da dança
pós-moderna americana e da performance
art tinha já passado, tradição esta forjada nos tais Anos Sessenta de que Jameson nos fala (Jan Fabre, Anne Teresa de
Keersmaeker, Wim Vandekeybus, La Fura dels Baus); ou corpos clássicos, como o
de obras teatrais nunca anteriormente representadas no país (Hamlet, Ciclo
Retorno à Tragédia); ou corpos vindos de outras culturas e vistos como culturalmente
relevantes, cosmopolitas mesmo (Ka-ze-no-Ko,
Ciclo Músicas do Mundo, Jornadas de Artes e Letras dos PALOPS); ou pura e
simplesmente corpos com vontade de experimentar formas estéticas (Constança
Capdeville/Colecviva, Ciclo de música improvisada); ou apenas corpos com uma
predisposição geral para se cultivarem ou/e – sobretudo – por mostrar e colocar
em diálogo todos estes corpos juntos
– a sua acção irá, porventura, de encontro à disjunção que atrás mencionámos. O
que a torna, a um tempo só, tão particular e tão explosiva. É que abrir-se ao
que falta é, ainda assim, muito diferente de “superar um atraso” ou de “acertar
o passo”. O que faz com que este lugar se constitua como um dos lugares dos
anos 80, com o tal curto-circuito entre modernidade e pós modernidade de que
nos fala Boaventura de Sousa Santos, razão pela qual estamos hoje aqui.
A faltar, o conhecimento
aprofundado do que foi o ACARTE pode, quem sabe, fazer-nos sentir menos em falta quando vemos o actual momento em
que estamos, 30 anos passados sobre a inauguração deste Centro. E, quem sabe,
pode mesmo este Centro de Arte Moderna voltar a ter um peso central nisso.
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Referências
1. Ver a este respeito por exemplo Luís Trindade em Os 3 D’s da Derrota Revolucionária:
despolitização, desideologização, desmobilização, disponível aqui ou Pano Cru – a inscrição da memoria do passado revolucionário,
disponível aqui.
2. A respeito desta
‘tentação nostálgica’ em que pode rapidamente incorrer um olhar sobre “estas e
outras (pós) modernices de que Lisboa já sente falta,” como se podia ler no
programa do evento, veja-se a segunda parte do texto de António Araújo A Cultura de Direita em
Portugal, publicado cerca de um
ano depois da intervenção que aqui se publica.
3. Para usar uma
terminologia Foucauldiana. Ver Foucault A
vontade de saber (1976).
4. Em Pela Mão de Alice – o social e o político na Pós Modernidade,
Boaventura de Sousa Santos (1994), o autor sustenta que o facto de a sociedade
portuguesa ser semiperiférica, acarretaria consigo uma “dupla exigência: (1) na
formulação de alguns dos objectivos de desenvolvimento deve proceder como se o
projecto da modernidade não estivesse ainda cumprido ou não tivesse sequer sido
posto em causa; (2) na concretização desses objectivos deve partir do princípio
(para ela de algum modo mais vital do que para as sociedades centrais) de que o
projecto da modernidade está historicamente cumprido e que não há a esperar o
que só um novo paradigma pode tornar possível.” (p.84) de onde deduz que: “a
sociedade portuguesa tem ainda de cumprir algumas das promessas da modernidade,
mas tem de as cumprir à revelia da teoria da modernização. Desta posição
decorrem duas implicações principais. A primeira é que as promessas da
modernidade a cumprir têm de ser cumpridas em curto-circuito com as promessas
emergentes da pós-modernidade. Assim, como atrás referi, as duas importantes
promessas da modernidade ainda a cumprir são, por um lado, a resolução dos
problemas da distribuição (ou seja, das desigualdades, que deixam largos
estratos da população aquém da possibilidade de uma vida decente ou sequer da
sobrevivência); por outro lado, a democratização política do sistema político
democrático (ou seja, a incorporação tanto quanto autónoma das classes
populares no sistema político, o que implica a erradicação do clientelismo, do
personalismo, da corrupção e, em geral, da apropriação privatística da actuação
do Estado por parte de grupos sociais ou até por parte dos funcionários do
Estado). Qualquer dessas promessas deve, no entanto, ser cumprida em conjunção
com o cumprimento, igualmente veemente, das promessas da pós-modernidade. Deste
modo, a promessa da distribuição deve ser cumprida em conjunção com a promessa
da qualidade das formas de vida (da ecologia à paz, da solidariedade
internacional à igualdade sexual) e a promessa da democratização política do
sistema político deve ser cumprida em conjunção com a ampliação radical do
conceito de política, e, consequentemente, com as promessas de democratização
radical da vida pessoal e colectiva, do alargamento incessante dos campos de
emancipação, as quais podem começar a ser cumpridas precisamente na articulação
entre a democracia representativa e a democracia participativa. Ora, esta
conjunção é interdita pelo princípio da modernização, pois, nos seus termos,
enquanto não forem resolvidos os problemas da modernidade não faz sentido
sequer pôr os problemas da pós-modernidade. Este princípio, que é hoje
hegemónico entre nós e que é adoptado tanto pelo Estado como pelos partidos de
direita e de esquerda, só poderá conduzir ao bloqueamento da sociedade
portuguesa numa semiperiferia crescentemente estúpida.
A segunda implicação do
cumprimento da modernidade à revelia da modernização é que é preciso combater a
ideia de que tudo o que na sociedade portuguesa é diferente das sociedades
centrais é sinal de atraso e deve ser erradicado no processo de desenvolvimento.
A contabilidade profunda da sociedade portuguesa está ainda por fazer.
5. Ver a este respeito a
proposta de Luís Trindade em “Os Excessos de Abril", in REVISTA História, n.º 65, Abril de 2004.
6. De acordo com Gilles Deleuze um devir seria sempre um
devir minoritário. Ver a esse respeito Mil Platôs, vol. 4. pág.88.
7. Ver a este respeito o
website Europeana: “In 1973, the first significant steps towards defining the
cultural basis for a European Union were made when the European Economic
Community (EEC) signed the ‘Declaration on the European Identity’. This step
was the first attempt to create a European awareness. The declaration led to
the introduction of several measures to improve the visibility of Europe in the
daily lives of the European citizens. A European flag was created, Beethoven’s
‘Ode to Joy’ was chosen as the European anthem and a standardised European
passport created. In 1988, a new policy was introduced which focused
specifically on using cultural heritage to demonstrate our common history,
involving Europe’s architectural and artistic heritage. The EEC sponsored
various arts-related craft and restoration projects and helped preserve a
number of monuments that played a big role in the European history, such as the
Acropolis, the Parthenon and Mount Athos.” In http://penguincompaniontoeu.com/additional_entries/declaration-on-european-identity/, consultado a 16/1/13.
8. A esse respeito João Fiadeiro contou-me anedoticamente
que assinara o seu contrato com a Europália neste local. Anedótico ou não a
verdade é que muitos são os testemunhos sobre a importância formal do Frágil na
sociedade Lisboeta da época. Ver a este respeito a imprensa aquando dos 30 anos
desta discoteca ou o recente projecto de compilação de fotos da noite nesta discoteca, levado
a cabo por Catarina Portas e Tiago Manaia.
9. O ensaio de António Araújo A Cultura de Direita em
Portugal, publicado cerca de um
ano depois da intervenção que aqui se publica, reúne um conjunto notável de
informações sobre o ‘dentro’ ao qual aqui se sugere a necessidade de pensar as
continuidades com o que (e quem) ficaria então de fora.
10. Brochura bilíngue ACARTE 5 anos.
11. É desta altura a emergência de termos como “Artes do
Corpo”, termo cunhado por António Pinto Ribeiro, que chegou mesmo a trabalhar
neste Serviço (Ribeiro 1997).
__
Bibliografia
BARRETO, António
(org.) 2006,
Fundação Calouste Gulbenkian,
Cinquenta Anos 1956-2006, LISBOA,
FCG.
BEBIANO, RUI «’Povo pop’, mudança cultural e dissensão»,
in Como Se Faz Um Povo. Ensaios
em História Contemporânea de Portugal, coordenação de José Neves,
Lisboa, Tinta-da-China, 2010, pp. 441-454.
Dionísio, Eduarda (1993): Títulos, acções, obrigações – sobre a
cultura em Portugal 1984-1994, Edições Salamandra, Lisboa.
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Gilles
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Site Oficial da Fundação Calouste Gulbenkian, http://www.gulbenkian.pt/historia consultado em 30/10/11.
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Imagens
1.Imagem gráfica do
colóquio (disponível no site do CAM). Imagens dos cartazes
do ACARTE disponíveis na net no arquivo digital da Biblioteca Nacional.
4. Interface digital cronológico ACARTE 1984 - 1989, projecto
de Ana Bigotte Vieira com design gráfico Ana Teresa Ascensão e programação
Isabel Brison.
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Ana Bigotte Vieira
Doutoranda em Estudos
Artísticos, Visiting Scholar na NYU-TISCH entre 2009 e 2012. Estudou História
Moderna e Contemporânea no ISCTE. Pós-graduação em Ciências da Comunicação:
“Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias” (UNL-FCSH). Dramaturgista e
investigadora, trabalhou com Gonçalo Amorim, Miguel Castro Caldas e Bruno
Bravo, Manuel Henriques, Raquel Castro e Mariana Tengner Barros, Traduziu Mark
Ravenhill, Annibale Ruccello, Spiro Scimone, Pirandello e Giorgio Agamben.
Integra o grupo de Teoria e Estética das Artes Performativas do CET (FLUL). Em
2010, recebeu o Dwight Conquergood registration Award na PSi conference #17,
Utrecht. É co-curadora de Baldio.