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Transcrição de conversa imaginada entre
Deus, J.W. Goethe, Karl Marx, Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke, August
Stahl, Franz Kafka, Walter Benjamin, T.S. Eliot, Le Corbusier, Jorge Luis
Borges, René Char, Guy Debord, Gilles Deleuze, Aldo Rossi, Sophia de Mello
Breyner, Jacques Derrida, Jean Baudrillard, Álvaro Siza, Giorgio Agamben e Domenico (Andrei Tarkovsky)
{
abertura }
Deus: Eis que o
homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal. E agora, para que não estenda a
sua mão, e tome também da árvore da vida, e coma e viva eternamente.
(O Senhor
Deus, pois, lançou-o fora do jardim do Éden, para lavrar a terra de que fora
tomado. E havendo lançado fora o homem, pôs querubins a oriente do jardim do
Éden, e uma espada inflamada que andava ao redor, para guardar o caminho da
árvore da vida)
Rainer Maria Rilke: Encontrar. Perder. Será que o leitor
reflectiu bem sobre o que é a perda? Não é apenas a negação desse generoso
instante que vem preencher uma espera de que nem o próprio leitor suspeitava.
Porque entre esse instante e a perda há sempre aquilo a que se chama – muito
desajeitadamente, concordo – a posse. Ora, a perda, por mais cruel que seja, não pode nada contra a
posse, completa-a, se assim quiserem; afirma-a; no fundo, é apenas uma segunda
aquisição, completamente interior desta vez e muito mais intensa.
August Stahl: Aquilo
que não se pode perder também não se pode possuir.
Sophia de Mello Breyner:
A memória longínqua de uma pátria
Eterna mas perdida e não sabemos
Se é passado ou futuro onde a perdemos
Aldo Rossi: Na verdade, a
pátria pode ser tão-somente uma rua ou uma janela.
Álvaro Siza: Havia uma janela de comboio na qual surgia
subitamente a cidade. Uma visão rápida, quase irreal. Era necessário treino e
truques para apreender tudo. Em cada viagem se apreendia alguma coisa de novo e
em cada viagem era mais difícil o exercício de repetir e de descobrir, de
copiar o próprio olhar e transgredir, no caminho-de-ferro. E logo a visão era
memória, apareciam imagens incertas como numa viagem de pavilhão de feira,
túnel, divertimento. Sempre o mesmo, sempre diferente. Os minúsculos
alargamentos da ponte de Eiffel cruzavam a janela, sobrepunham-se os monumentos
dos quais a memória constantemente recompunha a linha sinuosa. Aí está. Já não
existe o sobressalto daqueles instantes, a ponte nova não treme, os bancos do
comboio são mais confortáveis, os cavaletes dos carris elevados invadem os
socalcos cobertos de lixo. Compro um vídeo de Aniki-Bobó, de Douro Faina
Fluvial, penduro uma gravura antiga do Porto no quarto, parto de avião. À
distância mantém-se uma beleza essencial. Mas já não apetece viver nesta
cidade.
Giorgio Agamben: Ingemor
Bachmann comparou uma vez a língua a uma cidade. A cidade e a língua comportam
a mesma utopia e a mesma ruína, sonhamo-nos e perdemo-nos na nossa cidade como
na nossa língua, ou antes, uma e outra são somente a forma desse sonho e dessa
desorientação. Quanto comparamos Veneza a uma língua, habitar Veneza passa a
ser como estudarmos o latim. A língua morta é, na verdade, como Veneza, uma
língua espectral, na qual não podemos falar, mas que à sua maneira vibra e
acena e sussurra e que, embora com esforço e com o auxílio do dicionário,
podemos entender e decifrar. A quem fala uma língua morta? A quem se dirige o
espectro da língua? Decerto que não a nós; mas também não aos seus
destinatários de outrora, dos quais já não tem recordação alguma. No entanto,
precisamente por isso, é agora como se fosse ela só pela primeira vez a falar,
essa língua, da qual o filósofo, sem se dar conta de lhe atribuir assim uma
consistência espectral, diz que ela fala - não a nós.
Friedrich Nietzsche: Deixem os
mortos enterrar os vivos.
J.W. Goethe: O que
quer que haja de grande, de belo, de significativo, que se encontre connosco
não tem primeiramente, de ser recordado a partir de fora, não tem de ser, por
assim dizer, apanhado, tem, ao invés, de se entretecer no nosso interior, desde
o início, constituir com ele uma unidade, produzir em nós um eu novo e melhor,
e, desse modo, formando-nos, continuar a viver em nós e a criar-nos. Não existe
passado, para o qual tenhamos de olhar para trás, só existe um eterno novo que
se conforma a partir dos elementos, em expansão, do passado, e a verdadeira
nostalgia tem de ser continuamente produtiva, tem de criar uma coisa melhor, de
cada vez nova.
Friedrich Nietzsche: A
primeira categoria da consciência histórica não é a memória ou a lembrança, é o
anúncio, a expectativa, a promessa.
Jacques Derrida: A herança nunca é um dado, é sempre uma tarefa.
Le Corbusier: Regressado
ao Ocidente, tendo passado por Nápoles e por Roma, onde vi as “ordens da
arquitectura” fazerem um eco discutível àquela verdade conhecida na Acrópole,
foi-me impossível – como compreendereis – aceitar os ensinamentos “do Vignola”. Este
Vignola! Porquê o Vignola? Qual seria o pacto infernal que ligaria as sociedades
modernas ao Vignola? Mergulhava no abismo académico. Não nos iludamos: o
academismo é uma maneira de não pensar que convém àqueles que receiam as horas
de angústia da invenção, todavia compensadas pelas horas de alegria da
descoberta.
René Char: A nossa
herança não foi precedida de nenhum testamento.
Aldo Rossi: O que mais me espanta é o passado de um homem
que está como que mergulhado num estado em que o desejo pelo presente está
morto; pelo que, paradoxalmente, o passado possui as cores do porvir e da
esperança. A bela ilusão do movimento moderno, calma e moderada, havia-se
despedaçado sob a queda brutal mas concreta das bombas. Era talvez esta a
vitória das vanguardas; não os restos dos bairros de Frankfurt. Só entre as
ruínas, estava a vitória e a derrota das vanguardas. Uma tangível paisagem
surrealista, o amontoamento dos escombros foi certamente um gesto, ainda que de
destruição.
T.S. Eliot:
O tempo passado e o tempo futuro
Permitem apenas uma pequena consciência.
Ser consciente é não estar no tempo
Mas só no tempo pode o momento no jardim de
rosas,
o momento no arvoredo onde a chuva batia
Ser recordado; envolvido com o passado e o futuro.
Só pelo tempo o tempo é conquistado.
Walter Benjamin: Articular
historicamente o passado não significa reconhecê-lo «tal como ele foi».
Significa apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge num momento de
perigo. O perigo ameaça tanto o corpo da tradição como aqueles que a recebem.
Para ambos, esse perigo é um e apenas um: o de nos transformarmos em
instrumentos das classes dominantes. Cada época deve tentar sempre arrancar a
tradição da esfera do conformismo que se prepara para a dominar. Pois o Messias
não vem apenas como redentor, mas como aquele que superará o Anticristo. Só
terá o dom de atiçar no passado a centelha da esperança aquele historiador que
tiver apreendido isto: nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E
este inimigo nunca deixou de vencer.
Guy Debord: O fim da história
é um agradável repouso para todo o poder presente. Todos os usurpadores
quiseram fazer esquecer que acabam de chegar.
{ pausa }
Franz Kafka: Ele tem dois adversários. O primeiro
empurra-o pelas costas, desde a origem. O segundo bloqueia o caminho à sua
frente. Ele dá luta a ambos. Na verdade, o primeiro apoia-o no seu combate
contra o segundo, ao empurrá-lo para diante; e, do mesmo modo, o segundo
apoia-o no seu combate contra o primeiro, ao fazê-lo retroceder. Mas isto é
assim apenas em teoria. Pois não existem apenas os seus adversários, existe ele
próprio também, e quem sabe realmente quais são as suas intenções? O seu sonho,
porém, é ver chegar um momento de menor vigilância – o que exigiria uma noite
mais negra do que alguma vez se viu – em que pudesse fugir de frente de batalha e ser
promovido, à conta da sua experiência de combatente, à posição de árbitro na
luta entre os outros dois adversários.
T.S. Elliot: Ide, ide,
ide, disse o pássaro: a espécie humana não pode suportar muita realidade.
Jean Baudrillard: Quando o
real já não é o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido.
Sobrevalorização dos mitos de origem e dos signos de realidade.
Sobrevalorização de verdade, de objectividade e de autenticidade de segundo
plano.
Gilles Deleuze: A
tristeza, os afectos tristes, são todos aqueles que diminuem a nossa potência
de agir. Os poderes estabelecidos precisam das nossas tristezas para fazer de
nós escravos. O tirano, o padre, os ladrões de almas, necessitam de nos
persuadir de que a vida é dura e pesada. Os poderes precisam menos de nos
reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virilio, de administrar e
organizar os nossos pequenos e íntimos terrores. A longa lamentação universal
sobre a vida: a falta-de-ser que é a vida. Podemos dizer «dancemos», que nem
por isso ficamos alegres. Podemos dizer «que desgraça é a morte», mas era
preciso que tivéssemos vivido para termos algo a perder.
Jorge Luis Borges: Sei que
perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o
que é meu. Sei que perdi o amarelo e o negro e penso nessas impossíveis cores
como não pensam os que vêm. O meu pai morreu e está sempre ao meu lado. Quando
quero escandir versos de Swinburne, faço-o, dizem-me, com a voz dele. Só o que
morreu é nosso, só é nosso o que perdemos. Ílion passou, mas Ílion continua no
hexâmetro que a lamenta. Israel existiu quando era uma antiga nostalgia.
Qualquer poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos
deixaram, já não submetidos à véspera, que é aflição, nem aos alvoroços e
terrores da esperança. Não há outros paraísos senão os paraísos perdidos.
Franz Kafka: Existe um ponto de chegada, mas nenhum
caminho; aquilo a que chamamos caminho não é mais que a nossa hesitação.
Giorgio Agamben: Kafka inverteu a imagem benjamiana do anjo da história: na
realidade, o anjo já chegou ao Paraíso, e mais, já aí estava desde o princípio,
e a tempestade e a sua conseguinte fuga ao largo do tempo linear do progresso
não são mais que uma ilusão em que ele acredita com a intenção de falsificar a
sua própria consciência e de transformar aquela que é a sua condição permanente
num objectivo que está todavia por alcançar.
Karl Marx: Um dia se
mostrará que o mundo já há muito tempo que possui o sonho de uma coisa, da qual
apenas precisa de ter consciência para a possuir verdadeiramente
Giorgio Agamben: Certamente
que sim – mas, como se
possuem os sonhos, onde estão guardados? Porque aqui não se trata,
naturalmente, de realizar alguma coisa. Nada é mais entediante do que um homem
que tenha realizado os seus sonhos: é o zelo social-democrático e sem gosto da
pornografia. Mas tão-pouco se trata de guardar em câmaras de alabastro,
intocáveis e corados de rosas e jasmim, ideais que, ao tornar-se coisas, se
quebrariam: esse é o secreto cinismo do sonhador. Roberto
Bazlen dizia: aquilo que sonhámos é qualquer coisa que já tivemos. Há tanto
tempo, que já não nos recordamos disso. Não num passado, portanto – já lhe
perdemos os registos. Os sonhos e os desejos não realizados da humanidade são
antes os membros pacientes da ressurreição, sempre a ponto de despertar no dia
final. E não dormem fechados em preciosos mausoléus, mas estão pregnados, como
astros vivos, ao céu remotíssimo da linguagem, cujas constelações mal
conseguimos decifrar. E isso – pelo menos isso – não o sonhamos. Ser capaz de apanhar as
estrelas que, como lágrimas, caem do firmamento jamais sonhado da humanidade –
essa é a tarefa do comunismo.
Domenico: E vocês
sãos, o que significa a vossa saúde? Todos os olhos do mundo vêem o precipício
em que estamos a cair. A liberdade é inútil se não têm coragem de nos olhar nos
olhos, e de comer connosco, e de beber connosco e de dormir connosco. Foram os
assim chamados sãos que conduziram o mundo para a catástrofe.
{ silêncio }
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“Il Teatro del Mondo. Aqui, Onde a Terra se
Acaba e o Mar Começa” foi publicado originalmente na Revista Arqa, número
112, no tema “Ruínas Habitadas”.
Montagem de excertos, citações e edifícios feita a partir de “O Grande Atlas dos Edifícios Destruídos”
(número dois: “Destruição”- Maio 2011) e “Da
utilidade e dos Inconvenientes da Nostalgia para a Vida” (número três:
“Nostalgia” - Maio 2013). Leitura encenada deste texto foi apresentada no Porto,
na Matéria-Prima, no dia 1 de Junho de 2013, e em Lisboa na Galeria ZDB, no dia
29 de Junho, na apresentação do número três da Revista Punkto sob o nome “Todos
os paraísos são paraísos perdidos?”.
Contribuíram para o âmbito temático destes dois números entre outros:
José Bártolo, Álvaro Domingues, Tiago Lopes Dias, David Knight e Cristina
Monteiro, Tiago Casanova, Jorge Figueira, Godofredo Pereira, Vítor Moura, Nuno
Valentim, José Miguel Rodrigues, Pedro Baía, Pedro Bandeira, André Tavares,
Francisco Ferreira, Pedro Levi Bismarck, André Romão, Laetitia Morais e Paulo T
Silva, Susana Lourenço Marques, Diogo Seixas Lopes, Maria João Baltazar, Juan
José Lahuerta, Ana Maria, Gil Machado, Luís Piteira, Mariana Costa, Marta
Traquino.
Edição e montagem
Pedro Levi Bismarck, Joana Pestana e Pedro Oliveira.