ee
As Cidades Improváveis
Rodrigo Cardoso
Nenhum
relato sobre cidades é completo e verosímil. Cada um omite tanto sobre a cidade
de que fala, como aprofunda outros aspectos que pertencem a muitas outras
cidades. Os relatos sobre cidades inexistentes agravam esta condição, por
descreverem situações que, não existindo em si, estão um pouco por toda a
parte. Assumindo este fracasso como ponto de partida, propõem-se aqui três
imagens, três futuros em forma de cidade. Nenhum é muito credível, lá está,
porque as cidades nunca são uma coisa só. São antes o vislumbre de algumas
pontas soltas por resolver: descrevem futuros absurdos para ilustrar coisas que
se podem perder e que podem fazer falta (ou que podem simplesmente mudar de
natureza até se tornarem irreconhecíveis) – liberdade (e abuso), lugar (e
supressão), e história (e poder). Em última análise, como as cidades fazem
sempre o contrário do que se lhes diz, a estas pode-se-lhes chamar cidades
improváveis.
Liberdade. Assangia, cidade
transparente
“Não pense. Se tiver
que pensar, não fale. Se tiver que falar, não escreva. E se escrever, não
assine. E se fizer tudo isso, não se admire.”
Anedota
contada no antigo bloco soviético
Quem queria visitar Assangia, a cidade transparente, devia
chegar muito cedo, quando a luz da manhã é clara e, diz quem a conheceu, mais
fazia brilhar os magníficos vidros e cristais de que era feita a cidade. Hoje,
já nada resta desse antigo esplendor: Assangia está soterrada sobre o que
parecem ser inúmeros registos, arquivos, artefactos que contam cada minuto da
sua história e da dos seus habitantes. Mas o que desilude o visitante ansioso é
uma sorte (ou um tédio) para os arqueólogos que vão desenterrando a cidade: não
há qualquer mistério, tudo está registado, e a morte de Assangia pode ser assim
reconstituída.
Em Assangia, alguns cidadãos deliberaram um dia que era
ilegítimo existirem segredos. Como a omissão, ou a possibilidade de omissão,
era indefensável em absoluto, todos os passos e gestos do governo da cidade
passaram a ser imediatamente expostos, sem consentimento ou contextualização
prévia. Sem as ferramentas essenciais da reconsideração, da diplomacia e do
compromisso, cedo o poder político se declarou incapaz de governar. Em
resposta, os mesmos cidadãos deliberaram que, de qualquer forma, era ilegítimo
serem governados.
Isto despoletou um período de gestão arbitrária e perseguição
feroz à ideia de privacidade, tomada sempre por segredo e omissão. Depressa se
considerou, tacitamente pois não havia governo, que as opacas paredes de pedra
dos edifícios de Assangia eram um convite ao segredo, pelo que, com gastos emormes,
a cidade foi inteiramente demolida e reconstruída em vidro e cristal. Assangia
era agora um livro aberto, mas, todos os fins de tarde, o poente queimava.
Inventou-se um serviço de recolha e registo para que qualquer transacção
comercial, conversa privada, encontro furtivo e declaração amorosa fosse devidamente
registado em papel, afixado por trinta dias num local público (o que não fazia
sentido porque qualquer sítio servia), e depois arquivado. Como no mapa
desmedido de outro Império, a quantidade de informação em arquivo material
acabou por equiparar-se à quantidade de comunicação, sob qualquer forma, que
acontecia ou alguma vez acontecera em Assangia.
Dizia-se, nas cidades vizinhas, que Assangia era
uma revista cor-de-rosa viva. Os historiadores sugeriam uma cortina de ferro
transparente. Havia, sem dúvida, uma visão desse tipo, mas a aparente extinção
das estruturas de poder tornava impossível saber de onde ela vinha, para assim
derrubá-la. Ou seja, as relações sociais na cidade deixaram de se basear na
tolerância mútua para se obrigar à aprovação imediata, por via da auto-censura
e do politicamente correcto, e sem a noção de privacidade, extinguiu-se a de
individualidade. Os habitantes viviam duas vidas: uma oral e pública,
escrutinada de imediato, e outra mental, que guardavam para si; se falassem, os
habitantes de Assangia gabariam a riqueza da sua imaginação! Mas depressa
cessaram todas as relações humanas e passaram a imperar o silêncio e a
imobilidade. Pouco depois, Assangia morria, enterrada debaixo de toneladas de
papelada em arquivo.
Memória. ___________, cidade urbanalizada
“Mesmo em Kyoto --
Ao ouvir o canto do cuco
--
Anseio por Kyoto.”
Matsuo
Basho (1644-1694)
O senhor G. vivia em ___________.
Ou melhor, estava lá mas não vivia, porque, notava o senhor G., ao longo do
tempo a cidade como que ia desaparecendo diante dos seus olhos, sendo
substituída por uma paisagem nada familiar, vaga e genérica, que lhe parecia
tudo menos uma cidade.
O senhor G. julgava sofrer de algum problema mental que o
levava a confundir a memória com a observação da realidade. Aquilo que esquecia
sobre ___________ deixava realmente de existir na vida real: ou seja, o senhor
G. via aquilo de que se lembrava e deixava de ver o que esquecia. Se se
esquecia da cor da mesa do café habitual, esta parecia-lhe transparente quando
lá voltasse; se não recordava qualquer percurso, edifício ou pormenor da
cidade, estes literalmente desapareciam do mapa. A cidade real só resistia
enquanto tivesse uma correspondência directa na memória.
Isto fazia do senhor G. uma pessoa muito nostálgica, porque
a cidade que ainda recordava era de facto muito bela - e era a sua casa, além
de tudo. Mas havia coisas que ele inevitavelmente esquecia e que sabia que não
voltaria a ver. Pelo menos era essa a interpretação do senhor G. – a diferença
entre o sujeito (ele e a sua memória) e o objecto (a cidade e a sua realidade) parecia
ser apagada no interior da sua mente, e isso era essencial para fechar o
circuito da realidade.
Mas este esforço não podia durar sempre e, um dia, a
realidade ultrapassou-o. O senhor G. saiu à rua e deu consigo numa qualquer paisagem
anónima, uma amálgama de construções sem história, ruas cinzentas e gente toda
parecida. Era ali que o senhor G. vivia, afinal, o que o fez dar conta de que o
seu real problema era um défice de atenção: a envolvente era de tal forma vaga
e indiferente que não chegava a produzir excitação suficiente para o que os
sentidos do senhor G. a captassem. E como o cérebro tem horror ao vácuo, este
contexto foi substituído pela muito mais rica recordação de ___________.
Quando a tensão se tornou demasiada, a mente do senhor G.
como que baixou as expectativas, e finalmente percebeu que ___________ era toda
uma memória do seu passado, uma cidade ansiada mas já perdida - como se chamava
afinal? - cuja identidade ia fugindo da sua memória a um ritmo mais lento do
que tinha efectivamente desaparecido da face da Terra.
História. ANODINA, cidade subvertida
Em ANODINA não havia nomes de
ruas. Também não existiam monumentos, edifícios históricos preservados ou
praças. Os edifícios e espaços públicos da cidade não pareciam ter qualquer
intencionalidade, servindo apenas a sua estrita função. Em contraste com este
panorama austero, ANODINA era servida por uma infra-estrutura extraordinária.
Estradas, túneis, caminhos-de-ferro, e até cabos, ductos e condutas pareciam
justificar-se a si próprios e apareciam orgulhosamente à luz do dia, extremamente
bem planeados, desenhados e mantidos.
Isto era assim porque naquela cidade, desgastada como todas
por décadas de desacordo e conflito, se fez o seguinte raciocínio: se a narrativa
histórica é a fonte da interpretação, se esta é a fonte da ideologia, e se a
ideologia, por sua vez, é a origem dos conflitos, então faz sentido eliminar,
até onde possível, a memória e a história da cidade, de modo a que elas deixem
de condicionar o comportamento das pessoas, interrompendo esse trágico
encadeamento. O processo de desmantelamento da história de ANODINA começou aí, com a eliminação de todos os sinais que
pudessem sugerir visões ideológicas ou memórias ambíguas: até o nome da cidade
era obrigatoriamente escrito em maiúsculas Times New Roman, para evitar
qualquer sugestão de intencionalidade do desenho.
Naturalmente, isto obrigava a redefinir o foco das políticas
públicas, o destino dos investimentos, e o objecto da imaginação dos
arquitectos de ANODINA. Daí a aposta na infra-estrutura, que, como sabemos, não
tem ideologia; é democrática, equitativa e imune a conflitos interpretativos. É
o que é, e significa o mesmo para todos: quem se lembraria de ‘interpretar’ a
cor de um tubo ou o tipo de asfalto de uma estrada?
Mas esvaziar a cidade de significado retrospectivamente não
evita a criação de novos significados, que aparecem insidiosamente onde houver
oportunidade. Ao estabilizarem-se novos modos de vida, materializam-se novas
práticas com base naquela, e nenhuma outra, condição urbana. E cedo a
infra-estrutura ‘neutra’ adquiriu o papel ambíguo que parecia impossível. A
intencionalidade não brota do espaço, é-lhe atribuída, e, tal como os
monumentos e praças de ANODINA, também a infra-estrutura
podia ser personalizada, privatizada, especializada e usada como fonte de
poder.
Era uma tentação demasiadamente grande aproveitar este novo
potencial segregador. Utilizadas como forma de controlo, as redes de transporte
começaram a ser geridas em tempo real para determinar a acessibilidade de
certas populações a certos locais: o sistema permitia alterações temporárias e
flexíveis, para definir o grau de liberdade que as pessoas tinham para se
moverem na cidade. Por vezes, bairros inteiros eram mantidos à margem da
mobilidade por tempo indeterminado. Outras vezes, os horários eram alterados
para fomentar o recolher obrigatório dos grupos que importava afastar. O mesmo
valia para todas as outras redes, desde o controlo do abastecimento de água à
disponibilidade das comunicações sem fios, desde que servisse para exercer
poder e definir as regras em ANODINA. Em resposta, regressou
o conflito ideológico, agora baseado na negociação do acesso e no significado social
da infra-estrutura. As manifestações de rua, por exemplo, foram substituídas
pelo cibercrime e pela sabotagem dos sistemas digitais que controlavam as
redes.
Não se perceberam várias questões: primeiro, que o desgaste, o
conflito, e a sua síntese são uma força criativa que faz resistir as cidades;
segundo, que também eles são factores de agregação e pertença; finalmente, que
os significados ambíguos e as demarcações de poder podem ser atribuídos a
qualquer espaço material: como parasitas, limitaram-se a procurar outro
hospedeiro, com outro potencial. ANODINA
continuou a ser uma cidade de conflitos e, pior, agora tinha também perdido a
memória de como os reconciliar.
ee
IMAGENS
Imagens 1 e 2 do autor. Imagem
3: http://www.travelandlifestylediaries.com/2013/04/miradouro-da-vitoria-fantastic-viewing.html
ee
Rodrigo Cardoso é estudante de
doutoramento na Bartett School of Planning, em Londres (bolseiro FCT), onde
prepara uma tese sobre os processos de metropolização das segundas cidades
Europeias, com orientação do Professor Peter Hall. Entre 2002 e 2011 trabalhou
como arquitecto no Porto, tendo completado uma variedade de projectos. Estudou
arquitectura na FAUP (Porto, 2001) e concluiu o Metropolis Masters Program na
UPC (Barcelona, 2009).