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Hänsel e Gretel na floresta
A FCT, a
Universidade e o que há-de-vir
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Pedro
Levi Bismarck
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Quando
é que iremos reconhecer que o problema das bolsas de doutoramento da FCT não é
uma questão apenas de alguns, mas um problema comum de (não-) financiamento das
universidades? Quando é que iremos reconhecer que o que está em causa não são menos
alguns trocos na algorítmica infatigável dos dias, mas a concretização de um
programa ideológico que não quer outra coisa senão converter a universidade pública
num mero curso de formação profissional, definido por critérios de lucro e produtividade?
E, enfim, quando é que iremos reconhecer que o que esta em causa não é outra
coisa senão a imposição de um modelo que mais do que nos reduzir à miséria
financeira quer-nos reduzir à penúria intelectual e cultural?
Walter
Benjamin (já sob a sombra do nazismo) citava Marx, afirmando «que o humano que
não possua outra riqueza a não ser a força de trabalho será necessariamente
escravo dos outros seres humanos, os que se transformaram em proprietários».
Ora, se há alguma coisa ainda a defender numa certa ideia ocidental de
democracia será, precisamente, o facto desta ser o direito sem porquê à possibilidade
de emancipação intelectual, sempre com(o)um, sempre partilhada. Antes de ser “estilo
de vida” ou modo de exercer o poder ela é modo de subjectivação. Um falar
quando não é para falar, um aparecer quando não é para aparecer. Não há
democracia sem essa possibilidade de conhecimento, de um modo de conhecimento
que não é apenas de objectos singulares científicos, mas de nós próprios, neste
aqui e neste agora, neste instante de mundo em que somos. Se pudéssemos
arriscar um pouco diríamos que a democracia pertence a um movimento frágil que,
nos pequenos entrepausas do sagrado imperativo da economia, procurou sempre ir
ao encontro de uma exigência contra a
barbárie, procura de um tempo em comum, um tempo de “não-produção” entregue
ao conhecimento e à transmissão. Esse otium
romano de que se fala e que implicava sair do tempo do neg-ócio para participar num conhecimento de si.
É
inútil continuar a despender muitos mais caracteres sobre este assunto senão
formos capazes de endereçar a questão essencial que afinal poucos parecem
querer colocar. O que é certo é que o facto de estarmos já a defender uma certa
“utilidade” da universidade diz muito do ponto em que estamos. Todos os dias
são já uma derrota. Derrota de uma sociedade que deixou de possuir os
argumentos para defender uma ideia de escola e que já só pode concebê-la
enquanto curso de “empreendedorismo” ou enquanto conhecimento especializado
aplicado (veja-se o paradoxo das “meias licenciaturas”, mas de um modo geral a
redução do tempo das licenciaturas, a burocratização dos cursos, a difícil
sobrevivência das artes e humanidades convertidas em parentes pobres das
engenharias, mas sobretudo, o desprezo e a burocratização do trabalho
pedagógico do professor, que já só pode ser avaliado pela sua produtividade científica).
Enfim, derrota acima de tudo de uma sociedade que ao abdicar desses tempos
“não-produtivos” da escola e da cultura, não faz mais do que abdicar do seu
futuro. É preciso voltar a dizer: a democracia encontra o seu fundamento na
medida em que deixa aberto, em potência, estes espaços “não-produtivos”, no
facto de os dispor publicamente e ao serviço de todos. Sem esse tempo e espaço
da e para a emancipação intelectual não há democracia possível. Como dizia
Sophia de Mello Breyner no seu discurso na Assembleia Constituinte: “A cultura
não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem
possa construir e construir-se em consciência, em verdade e liberdade e em justiça”.
Antes
de debater as bolsas e a FCT, antes de olhar pasmadamente os rankings e os ratings, antes de preencher os
relatórios, os planos quinquenais e os cv’s,
o “degois”, o “orcid” e os infindáveis aparatos burocráticos que tomaram
conta da nossa vida, é preciso debater e defender aquilo que está
verdadeiramente em causa: a universidade pública como lugar para o conhecimento
e para a cultura: “para que o homem possa construir e construir-se em
consciência, em verdade e liberdade e em justiça”. Palavras certamente pouco
dadas a formulários e avaliações quantitativas. Mas, acima de tudo, não vale a
pena continuarmos obsessivamente à procura, por entre os discursos do poder
actual, das pequenas migalhas que nos permitam sobreviver ainda mais algum
tempo. Porque, tal como na pequena história de Hänsel e Gretel, à medida que se
forem comendo as migalhas de pão, mais difícil será encontrar o caminho de
regresso e o mais certo é ficarmos perdidos na floresta.
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Pedro
Levi Bismarck, PUNKTO, bolseiro doutoramento FCT
Texto
publicado originalmente no jornal I, 14 de Fevereiro 2014: http://www.ionline.pt/iopiniao/hansel-gretel-na-floresta-fct-universidade-ha-vir
Imagem: via Jornal I