A produção de conhecimento científico \\ Álvaro Domingues



Justificadas pelas dificuldades financeiras, pela qualidade e pela utilidade, as opções de política que decorrem dos cortes d­­o financiamento público à investigação científica por parte da FCT, constituem um erro com repercussões muito graves no sistema de formação avançada em Portugal.
Em primeiro lugar para os bolseiros, os trabalhadores precários da ciência em Portugal. O modo como se fizeram os cortes e se justificaram, as irregularidades cometidas, são um atentado ao respeito e ao esforço devido aos investigadores. Com as carreiras universitárias congeladas, o congelamento da contratação de docentes e a escassez de oportunidade de trabalho em laboratórios e instituições públicas e privadas de investigação, a única hipótese é mudar de vida, emigrando. Não existe em Portugal um meio empresarial com suficiente escala e cultura empresarial, para que se possa dizer que a parte da investigação e desenvolvimento com ligação directa ao mundo empresarial ficará financiada por aí. As excepções confirmam a regra.
A ética da investigação científica pauta-se por princípios de clareza, transparência, independência e liberdade. A investigação feita e paga pelas empresas legitima-se pela estratégia empresarial e pelo mercado, e é desse único critério que decorre a sua utilidade. Em tempos de globalização e de concorrência aberta, a lógica mercantil é a lógica do dinheiro e do lucro.
Nos estabelecimentos públicos de Ensino Superior a questão é bastante diferente.
Como muitas outras a FAUP é uma instituição cuja missão é formar arquitectos. Sem quadros e carreiras próprios, a investigação tem um papel subsidiário: é uma actividade que acompanha a progressão na carreira docente (entretanto congelada) e os alunos dos programas de doutoramento. Actualmente a FAUP tem 139 alunos inscritos no PDA, 26% dos quais com bolsa FCT. A evolução do esforço de investigação levou à organização do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo, a um esforço continuado de investimento, e à estruturação de linhas de investigação. Aqui como noutras faculdades que não possuem quadro de investigadores, as áreas de investigação não podem seguir a via da especialização: a arquitectura e o urbanismo são campos disciplinares muito diversos, e os motivos de escolha das áreas e projectos de investigação – inseridos em doutoramento ou não -, são os mais variados e estruturam-se em práticas e culturas institucionais muito diferentes das ciências duras. Essa diversidade pertence a uma escola que tem um prestígio inquestionável de que é prova a notoriedade de muitos arquitectos, investigadores, professores e alunos que cá estão ou por aqui passaram.
A actividade de produção de investigação não pode, portanto, ser vista separadamente porque está estruturalmente cruzada com a actividade docente e, juntas, com o dia-a-dia da FAUP; é tão simples como entender que um investigador externo ligado a um projecto de investigação ou à docência num programa de doutoramento, é também um colaborador potencial em qualquer iniciativa da escola; ou perceber que um docente envolvido num determinado projecto de investigação repercutirá a inovação e a qualidade do seu trabalho na docência. Assim, ensino e investigação interligam-se
- nas parcerias e redes nacionais e internacionais;
- na estratégia de internacionalização;
- na renovação e qualificação dos conteúdos ensinados;
- no aumento do leque das opções;
- na multiplicação de actividades extra-curriculares (colóquios, seminários, exposições, conferências, etc.);
- nas acções de divulgação do conhecimento e da produção cultural.
Esta é a “utilidade” da investigação. Mais do que a bateria de indicadores usualmente utilizados e mais que discutíveis, a investigação é um multiplicador que se percebe claramente nos seus diversos afloramentos nas carreiras profissionais e nos dias normais ou extraordinários da vida académica e das actividades dos membros da academia.
Se as políticas públicas entendem que o esforço financeiro para a investigação científica se pode reduzir de forma tão grosseira e com as justificações mais bizarras e contraditórias, pense-se também que há bastante mais coisas que vão na enxurrada e de pouco vale o refinamento tecno-burocrático das avaliações, as bibliometrias, ou os planos estratégicos anuais ou de médio prazo. Tudo parece resultar de uma estratégia de dissipação da questão de fundo, estilhaçando-a  numa infinitude de discussões menores e conjunturais em torno de assuntos aparentemente pontuais mas que não passam de pontos na teia de que fazem parte.
Dissipação é coisa que não existe para quem se ocupa da universidade, da docência, da gestão, e da investigação (e das burocracias da investigação). As coisas caem invariavelmente sobre as mesmas pessoas e instituições, apesar das decisões terem partido de pessoas ou instituições diferentes, com ideias diferentes, por razões diferentes. Numa situação de crise, o pior é o desânimo e a desistência, como se sabe.
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Álvaro Domingues
Geógrafo, professor na FAUP (Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto).